terça-feira, 17 de janeiro de 2017

#22 Manchester by the Sea

Título oficial: Manchester by the Sea @ 2016
Realizador: Kenneth Lonergan
Actores principais: Casey Affleck, Michelle Williams, 
Classificação IMDb: 8,5
 Minha classificação: 9

Opinião: "Manchester by the Sea" é o primeiro filme que vi em 2017 e dificilmente verei melhor, pelo menos durante este ano. A sinopse é simples: o irmão de Lee Chandler (Casey Affleck) morre, e ele é chamado como guardião do sobrinho, Patrick (Lucas Hedges). Mas isto é apenas o aflorar da questão. Lee tem um passo mal-resolvido, se bem que o seu semblante, a todos os instantes, denuncia essa mágoa. A grandiosidade do filme assenta nos diálogos, no modo despretensioso como o filme não procura passar nenhuma lição, e na autenticidade dos sentimentos das personagens. (Por exemplo, o filho que acaba de perder o pai mas que se embrenha o mais possível nos melhores anos da sua adolescência para superar isso, ou o amigo que, sem ter qualquer responsabilidade sobre o assunto, retrocede nas suas intenções para ajudar alguém que lhe é importante). Fica consolidada a ideia de que uma história não precisa de ser épica para se entranhar sob a nossa pele - e também não se celebra aqui o culto da perda no momento (do choque, do grito, das lágrimas e do desespero), explora-se sim a estrada para superá-la. São duas horas em que as perdas moldam cada personagem de um modo diferente, nada fantasioso, e em que cada actor dá o melhor de si para mostrar a miríade de emoções que compõem o seu ângulo na trama. Casey Affleck agiganta-se a cada cena, o modo como os impulsos e a inanimidade lhe dançam no olhar é sublime. Julgo que seja o género de enredo que, quando vivido, nos suga um pouquinho da alma. Como escritora, só tenho pena de não ter escrito algo assim. Mas ficou-me na alma. Ando há dias a repensar o filme, as reacções, os picos de fraqueza e de fúria, e a saborear com isso as muitas nuances da natureza dos homens.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

#179 LONDON, Julia, A Vingança de Lorde Eberlin


Sinopse: Inglaterra, 1808 - De novo em Hadley Green após quinze anos, o jovem Tobin Scott, agora Lorde Eberlin, tem apenas um objetivo em mente: vingar a morte do pai, acusado injustamente de roubar as joias fabulosas dos Ashwood. Mas quando se vê do outro lado da rua em relação ao objeto do seu ressentimento, o plano pacientemente preparado toma um rumo surpreendente. Lily Boudine, condessa de Ashwood, já não é a menina que ele recordava, é uma bela mulher que está a fazer o possível por restituir à propriedade da família o seu antigo esplendor. Convencida da inocência de Joseph Scott, ela propõe a Tobin unirem forças para encontrar as famigeradas joias e restaurar a honra do seu pai. Em breve, porém, a paixão entre os dois incendeia-se, e um novo segredo chocante vem lentamente ao de cima...
Em 1793, um homem pagou com a vida por um crime que provavelmente não cometeu. Anos mais tarde, o mistério de Hadley Green continua sem solução. 

Opinião: Este livro deu-me sentimentos controversos. Estava desesperada por descobrir se ainda consigo começar e acabar um livro, pelo que o comprei por impulso no aeroporto. O início foi lento e não sabia o que esperar. Já li tantos livros do género... Mas foi ficando melhor. As personagens ficaram mais profundas e mantiveram o factor humano. Se leram a sinopse entenderam: a Lily testemunhou que viu o pai do Tobin a sair da mansão na noite em que umas jóias preciosas desapareceram. Tinha oito anos na altura e os juízes concluíram que o pai dele fora o autor do roubo. É condenado a morte e o Tobin e a família são destituídos. É mais original do que a maioria dos enredos do género. Há um óbvio dilema moral, mas a autora desenvolveu-o com graciosidade. As personagens não são unidimensionais, vão assimilando novos sentimentos enquanto lutam por lidar com os anteriores. Alguns momentos foram muito ternos. Percebe-se porque é que aquelas duas pessoas imperfeitas e feridas se apaixonam um pelo outro. Também há algum humor no livro, e alguma consideração pela época. Não é que toda a gente vá aceitar o Tobin só porque é bonito e rico. Comprou um título na Dinamarca, o que na maioria dos livros seria suficiente para atirar as solteiras para os pés da personagem principal masculina. Mas neste livro a Julia London respeitou as convenções. Ele é ainda mais desprezado por ter comprado o título. Não é bem recebido sequer pelas personagens simpáticas dos outros livros da série, apenas porque não é assim que as coisas funcionavam.
Há muitas dificuldades a ultrapassar neste livro, pelo que estive sempre na expectativa, sem saber que caminho a autora ia tomar. Felizmente, não escolheu o mais fácil - não houve perdões falsos nem alguém a dizer "se gostas dele esquece a tua posição, o que é a posição social comparada com o amor?", etc. Gostei disso. Para mais, o Tobin não é uma figura toda-poderosa. Não consegue subjugar as suas origens, o que o deixa frustrado porque também é orgulhoso. Além disso, ele tem (view spoiler), o que lhe acrescenta outro factor humano. Portanto ele tem falhas e é de carne e osso. Adorei a Lucy - uma menina que diz tudo o que lhe apraz - e McKenzie, o amigo escocês um tanto inconvencional do Tobin.
Houve algumas falhas, no entanto. Não sei se o problema é da tradução portuguesa - pejada de erros, a propósito (gralhas e verbos misturados, além de que ora se dirigem um ao outro por "tu" ora por "você" - mas estavam sempre a mencionar uma "lama negra" dentro do Tobin, e que estar perto da Lily abria frestas de luz nessa lama. Tudo bem se mencionado uma ou outra vez, mas sempre que estão juntos, a mesma metáfora? Foi parvo e aborrecido, a dada altura. Além disso, não havia grande negrume no carácter dele. Estava magoado e furioso com a injustiça no seu passado, mas conforme os factos lhe são apresentados, tem a mente aberta e vai aceitando. Também nunca é descrito como cruel ou maldoso. Simplesmente quer que alguém pague pelas consequências dos seus actos - e "alguém" é a Lily. Outra coisa é o facto de saltarem muito rápido do desprezo mútuo para o envolvimento físico, como se na época fosse assim tão fácil andar-se aos beijos. Teria apreciado alguma consideração pela época aqui também.
Em geral foi uma leitura agradável. Mal posso esperar por voltar para Portugal e comprar o primeiro livro da série. O terceiro já foi publicado? Vou ler de certeza!


Classificação: 3,75***/**

#178 CACHAPA, Possidónio, Viagem ao Coração dos Pássaros

Sinopse: Viagem ao Coração dos Pássaros remete-nos para um universo único mas que de repete sempre no tempo dos seres humanos. Fala-nos das contradições e dialética do mundo, do amor, da vida, mas também dos seus opostos. É um livro que se lê num sopro, como se fosse um instante, numa viagem que o leitor faz ao coração, o seu próprio, e o dos  protagonistas da história, realista, autêntica e bela. Possidónio Cachapa conduz-nos através da sua escrita profunda, revelando-nos os dons que todos temos e as nossas virtudes mas também as nossas debilidades e fraquezas, numa simplicidade narrativa que nos prende da primeira à última página.

Opinião: 

“— Kika – pediu ele, em lágrimas. – Gostas de mim?
Kika virou-se na cama e respondeu:
– Não.
E, dizendo isto, rodou no leito, onde uma mancha de pena se espalhara e lhe humedecera a face humana. O Escritor voltou a chorar, roído de piedade de si próprio e perguntando a ele mesmo o nome da fraqueza que o diminuía diante da mulher.
Ela, se não fosse ela, ter-lhe-ia passado a mão na face e dito que ele era tão perfeito quanto um homem pode ser. E se isso não lhe bastava, era porque a sua natureza era ruim e ambiciosa. Que todos a tomavam por boa por equívoco. E que amá-la era o mesmo que meter uma jibóia na cama; que nem com a barriga cheia de ratos a impediria de cumprir a sua natureza.”

Não fazia ideia do que esperar desta minha primeira abordagem a Possidónio Cachapa. Decerto não a dimensão que encontrei, nem as incertezas para onde a mesma me atirou. A história resume-se de modo simples: Evangelina casa-se com Filipe numa ilha que creio ser a Madeira, devido à menção às levadas. Têm uma menina que nasce prematuramente, chamada Maria Joaquina (Kika) e Filipe não consegue ficar, apesar de as amar, e sai de cena. Tudo o resto é preenchido por uma extensão da dimensão do espaço e do tempo, em que cada um é o que é, o que foi e o que há-de ser, e que esta é só uma vida de várias, sendo que se toma diversas formas a cada uma. E os mortos andam lado a lado com os vivos, e alguns vivos já transportam um pouco da morte consigo, porque os mal estares vêm da alma e acabam por levar ao enterro dos corpos. É então evidente que não há, realmente, nada de simples neste livro. Gosto quando os autores me atiram para este limbo, em que não sei onde acaba o criador e onde começa o narrador (isto é: alter-ego emprestado ao livro). Mais inquietante ainda: não sei onde acabam as crenças de quem o escreveu e onde começa o propósito com que o escreveu. Viagem ao Coração dos Pássarosé, assim, despretensioso. No entanto demonstra grandeza a cada virar de página. A condição da vida na Terra (mais do que a “humana”) é explorada de modo inventivo e desconcertante. Lê-se sobre um pássaro como se lê sobre gente. Lê-se sobre a carne como se fosse a mera morada do espírito no mundo sólido, e que por isso limita e por vezes até corrompe o dito espírito - é tudo parte de um plano maior. A existência singela por toda a parte, mas as luzes que se voltam para uma menina com um dom; e que fala por dentro da cabeça das pessoas, porque fez a promessa de se manter de boca fechada até o pai voltar. Uma menina que começa por contrariar o seu próprio destino, porque o universo dispõe de nós como lhe apraz, e apesar de não podermos fugir ao que nos foi traçado, por vezes perdemos alguma energia a tentar...
Vale a pena, lê-se bem. Não é fácil, contudo. Tira-nos de onde estamos e traz mais dúvidas do que respostas. Felizmente para mim – seja, ou não, um reflexo das crenças do autor -, acompanhei algumas coisas por serem familiares àquilo que também eu acredito. Coisas como sermos todos parte de um mesmo plano. Ou como termos várias passagens pela terra, umas como homens, outras como flores, outras ainda como pássaros. Vou estar atenta às suas obras, de modo a separar os universos “autor” e “livro”. Parecem-me ambos bastante interessantes. 

Classificação: 4****/*

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

#177 PLATH, Sylvia, A Campânula de Vidro


Sinopse: «The Bell Jar surgiu em Inglaterra, em 1963 com autoria atribuída a Victoria Lucas. O motivo que terá levado Sylvia Plath a recorrer a um pseudónimo, prende-se com a óbvia coincidência existente entre personagens, eventos e lugares ali descritos, e a realidade biográfica da autora.»

Do Posfácio

Opinião: Tentei gostar. A Sylvia Plath foi-me sempre incontornável. Infelizmente, sinto-me mais compreensiva quanto à sua história de vida (e ao seu desfecho) do que quanto a este romance. Começou lento, nada levava a crer que a personagem principal, Esther Greenwood, acabasse por cair em depressão e a sofrer de insónias e consequentes tendências suicidas. Não entendi de onde isso veio. Gostei do modo como o romance percorre a vida desta personagem com recurso a analepses, o que de início faz crer que a vida dela é perfeita, mas mais para o meio começa a entender-se que tinha uma relação distante com a mãe, e quase no fim finalmente menciona o pai, que morreu quando a Esther era pequena. Esther é escritora e tem um pseudónimo – Elaine. Faz questão de que partilhem o mesmo número de letras no nome. Elaine é Esther e Esther é Sylvia, ao que parece têm imenso em comum. São ambas americanas deslocadas, andaram pelos mesmos sítios e algumas personagens da vida de Sylvia reveram-se no leque de pessoas que, em “A Campânula de Vidro”, vieram cruzar-se com a Esther. Houve até quem viesse a público clamar que a Sylvia mentira quanto a alguns aspectos da sua vida, quando era demasiado óbvio que x na ficção era y na vida real. Acontece que este romance, publicado sob o pseudónimo Victoria Lucas, deve ter sido quase de imediato associado à sua verdadeira autora, porque poucos meses depois da sua publicação, a autora protegeu os filhos do frio londrino como pôde, isolou-os e isolou-se na cozinha e meteu a cabeça no forno. Já por várias vezes tentara suicidar-se, mas dessa foi bem sucedida.

Entende-se que o livro quebre com algumas tendências da literatura da época – diz-se que Sylvia Plath é uma percursora do feminismo pelo modo como, nesta mesma obra, se entende que a mulher deve procurar o sucesso, a carreira, a sua realização pessoal. O casamento surge como uma prisão e um modo de satisfazer apenas os homens, que são descritos como um tanto infantis e pouco dignos de confiança. É esse mundo de oportunidades e de frustrações que traz o caos à vida da menina Greenwood (ou quem sabe na da menina Plath). Não sabe o que fazer, o que escolher. Quando dá por si está no consultório de um psiquiatra, e depois de outro. Está ora a fazer terapia de choques, ora a admirar as cicatrizes da lobotomia da sua amiga Valerie, ou a tomar comprimidos que a arrastam para o limiar da inconsciência. 
Há uma altura mais negra do livro em que a personagem pensa constantemente em suicídio. Analisa todas as possibilidades com a sua mente lúcida e lógica: pondera uma lâmina Gilette nos pulsos, uma faca, nadar até fica sem pé, enforcar-se no laço de seda do robe, atirar-se de uma altura considerável, que garanta que morre e que não fica paralisada e impossibilitada de voltar a tentar. Tudo a desgosta: ler, comer, dormir. Quando se desprende de tudo o que era, sente que se fecha uma campânula de vidro em torno da sua existência, e que não pode respirar. 
Gostava que o desespero fosse mais evidente. A depressão é a doença do pensamento, mas aqui não se entende ao certo o que a desgosta. Aborrece-lhe que seja virgem – é para ela um fardo e um obstáculo no caminho da sua emancipação. Mas fora isso não são apresentados motivos que a angustiem. É apenas um pormenor. É até perigoso procurar-se razões para alguém estar deprimido. Apenas está.
Não deixa de ser um excelente retrato do estado depressivo e, creio, dos tratamentos disponíveis nos anos cinquenta na América para as doenças da mente. 
As metáforas, que lhe são elogiadas no estilo literário – sendo o próprio título uma –, são o meu odiozinho particular na escrita. Tenho procurado afastar-me o mais possível delas. Não gosto de ler, em vinte páginas, duas vezes a menção a “olhou para x como o gato perante o leite”. Ou mesmo a famosa citação: “To the person in the bell jar, blank and stopped as a dead baby, the world itself is a bad dream.” Imóvel, parado como um bebé morto... Não lhe encontro sentido. E por aí fora, era sempre x como y, e a repetição exaustiva deu-me vontade de corrigir o texto e de limar a palha. 
Mas quem sou eu? Nada entendo de literatura, só posso expor a minha opinião sincera, por muitas incongruências que possa apresentar.
Tenho de experimentar ler os poemas dela, talvez me venham mais directos à alma.

Classificação: 3***/**