sábado, 18 de janeiro de 2020

#239 AMARAL, Domingos, Quando Lisboa Tremeu

Sinopse: Lisboa, 1 de Novembro de 1755. A manhã nasce calma na cidade, mas na prisão da Inquisição, no Rossio, irmã Margarida, uma jovem freira condenada a morrer na fogueira, tenta enforcar-se na sua cela. Na sua casa em Santa Catarina, Hugh Gold, um capitão inglês, observa o rio e sonha com os seus tempos de marinheiro. Na Igreja de São Vicente de Fora, antes da missa começar, um rapaz zanga-se com sua mãe porque quer voltar a casa para ir buscar a sua irmã gémea. Em Belém, um ajudante de escrivão assiste à missa, na presença do Rei D. José. E, no Limoeiro, o pirata Santamaria envolve-se numa luta feroz com um gangue de desertores espanhóis.

De repente, às nove e meia da manhã, a cidade começa a tremer. Com uma violência nunca vista, a terra esventra-se, as casa caem, os tectos das igrejas abatem, e o caos gera-se, matando milhares. Nas horas seguintes, uma onda gigante submerge o terreiro do Paço e durante vários dias incêndios colossais vão atemorizar a capital do reino. Perdidos e atordoados, os sobreviventes andam pelas ruas, à procura dos seus destinos. Enquanto Sebastião José de Carvalho e Melo tenta reorganizar a cidade, um pirata e uma freira tentam fugir da justiça, um inglês tenta encontrar o seu dinheiro e um rapaz de doze anos tenta encontrar a sua irmã gémea, soterrada nos escombros. 

Opinião: E é o que se passa com este livro, está ok. É um tema fascinante, desafiante, que com certeza exige uma pesquisa minuciosa. É à pesquisa que atribuo as 2 estrelas. Estou envolvida no mesmo caminho, li inúmeras fontes, muitas delas contraditórias. Creio que os testemunhos em primeira mão são o que de que mais fidedigno julgo poder encontrar-se sobre a época. Ainda assim, nem todos os sobreviventes da tragédia tinham conhecimento de tudo o que se passava ao seu redor, e muitas vezes avançam com informação incorreta ou imprecisa sobre o rei, o governo, os trâmites que estão a ser postos em marcha para reconstruir a cidade.



Reconheci vários pontos da pesquisa que tenho levado a cabo neste livro, mas não me lancei a ele para aprender sobre o terramoto. Procurei empreender a viagem que um romance promete até ao tempo e ao local que explora, e é aí que surgem os problemas.

As personagens são ocas, superficiais, personagens-tipo. A freira bonita é boa, a freira velha e ignorante é má. O pirata alto e bonito é charmoso, o espanhol é abestalhado, o inglês só pensa em negócios e tem um linguajar sem qualquer critério, que aleija bastante o leitor, a escrava é espertalhona e fogosa, Sebastião de Carvalho e Melo é implacável, a rainha é dada a achaques e o rei é um fraco.

Este ramalhete pode ilustrar, muito à superfície, a sociedade portuguesa do século XVIII, mas falha na sua compreensão, na sua humanização; não lhe acrescenta nada. Malagrida diz algo como "as mulheres são aparentadas com o diabo". Pergunto-me se haverá fundamento aqui, porque pelas missões que o jesuíta terá empreendido na América do Sul, e a fama de santo que tinha, duvido que andasse pelas ruas, e muito menos junto da corte, a proferir esse tipo de opinião. Pelo que sei da rainha D. Mariana Vitória, era uma mulher de fibra, espírito forte, robusta e saudável, que caçava e montava melhor do que muitos fidalgos da sua corte (sendo inclusive elogiada por isso) e, por muito horrível que o terramoto fosse, até agora nenhum testemunho próximo da corte (o do Monsenhor Acciaioli por exemplo, núncio apostólico), dá a entender que esta tenha fraquejado.

Assumir-se que o rei dormia em barracas de pano e madeira porque tinha medo que o tecto lhe desabasse na cabeça é só pueril. Os livros de História perpetuam-no à primeira vista, porque há que resumir. Mas e se nos permitirmos reflectir mais além? O que significava a família real? Significava a soberania de todo um império, significava independência face a Espanha (que ainda no tempo do seu pai lutava por nos dominar), e significava assegurar que Portugal mantinha as suas possessões, a sua história, a sua língua, os seus tratados e compromissos, a sua dignidade e a sua paz e interesses, bem como os dos súbditos. D. José não pretendia apenas salvar a cabeça das pedras, mas um universo de possivelmente milhões de pessoas de cair em mãos hostis. Assim sendo, também D. Mariana Vitória, lado a lado com a Princesa do Brasil, D. Maria Francisca, herdeira do trono, não dorme em carruagens "apenas" porque tem medo de novos abalos, ou porque ficou traumatizada e era fraca de nervos.

O romance é inverosímel em muitas frentes... Antes de mais, a quantidade de gente que "corre" em fuga. É-me difícil imaginar tanta destreza para escapar a obstáculos ou perseguidores quando as fachadas se tinham derramado para o meio da rua, e o entulho cobria as vias estreitas. Segundo, o retrato psicológico das personagens falha a todos os níveis. Custa-me a crer que num cenário de horror inimaginável, de Apocalipse, de fim do mundo, em que os cadáveres decepados de entes queridos fariam os lisboetas recear um desfecho semelhante para si mesmos, surgisse qualquer tipo de luxúria, de "divertimento", de brejeirice nas horas subsequentes ao primeiro abalo. Também não apreciei a sugestão de que as mulheres seriam todas promíscuas, à excepção do nosso anjo, Irmã Margarida, que por algum motivo nunca teve direito a um artigo definido até meio da narração.

A linguagem é quase atual, e estou convencida de que muitos vocábulos não existiriam ainda, ou não eram usados, tais como "sismo", pelo menos tendo em conta de que nem havia uma palavra em português para "maremoto", à época. Os diálogos preocupam-se mais em soar espirituosos do que em retratar o século XVIII, as hierarquias sociais, os estratos de uma sociedade profundamente desigual.

Como informa a sinopse, esta é a história entrecruzada de várias personagens aquando do abalo sísmico de 1755. O pirata, as freiras, o comerciante inglês, a escrava, "o rapaz", com laivos de aparições do ministro dos Negócios Estrangeiros (Sebastiã de Carvalho e Melo), de Malagrida, da Casa Real, etc. Mas até meio (altura em que abandonei a leitura), não tinha acontecido coisa alguma. Tudo bem, a terra tremeu, há poeira e toda a gente tem imensa sede. Mas num cenário tão caótico, estas personagens andam para cima e para baixo, Terreiro do Paço, Rossio, Rua da Madalena, Alfândega, Patriarcal, Paço da Ribeira, Bairro Alto. A sério? A sério que com a cidade em chamas, as ruas intransitáveis, um maremoto, as paredes a desabarem a cada novo abalo, porque foram vários, estas pessoas conseguiram encontrar-se no meio de milhares, tantas vezes, em situações tão caricatas, trocar três palavras, ver-se de novo daí a nada? Forjar alianças, amizades, criar rivalidades, inimigos em comum, etc.?

E a escrita pobre, gráfica e cinematográfica, de vocábulos sem sal, que jamais entra pelas personagens adentro e lhes expõe a alma ou lhes empresta espírito...

Não gosto. Ressalvo que a classificação é pelo trabalhão que com certeza deu ao autor, mas falta-lhe o cunho de um romancista e a substância mágica que permite a um autor moldar personagens credíveis, com as quais nos importamos de facto. Aqui, tudo é vento...

Por sorte, emprestado. 

Classificação: 2**

#238 ACCIAIUOLI, Filippo, O Terrível Terramoto da Cidade que foi Lisboa - Correspondência do Núncio Filippo Acciaiuoli: Arquivos Secretos do Vaticano

Sinopse: O cataclismo que desabou sobre a cidade de Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 anda ligado a uma memória indelével da história. De tão grande tragédia se faz eco na correspondência do Núncio Apostólico, que desde o dia 4 desse mesmo mês envia semanalmente para Roma informações dirigidas à Secretaria de Estado e ao Papa, às quais se devem acrescentar as cartas endereçadas ao Cardeal Secretário, que era então o Cardeal Silvio Valenti Gonzaga, e aos familiares.


É essa correspondência, depositada no Arquivo Secreto do Vaticano, que Arnaldo Pinto Cardoso traduz para português, dando a conhecer relatos vivos e quase diários das aflições vividas em Lisboa e das reacções que se fizeram sentir no Vaticano, numa obra ilustrada com iconografia da época.


Monsenhor Arnaldo Pinto Cardoso é natural de Penso, Sernancelhe. Sacerdote da diocese de Lamego, licenciou-se em Teologia pela Pontíficia Universidade Gregoriana (1967-69) e em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico (1969-72), de Roma. Foi director do Serviço de Pastoral do Secretariado do Episcopado e professor na Universidade Católica. Conselheiro Eclesiástico na Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. Prelado de Sua Santidade. É sócio da Academia Portuguesa de História. Autor de diversas obras, entre as quais Santuário da Lapa – História e Tradição (Alêtheia Editores, 2007), integrou ainda a equipa de tradutores da Bíblia Sagrada, em 1998.


Opinião: Um bom apanhado de cartas trocadas entre o Núncio Apostólico em Lisboa e o Vaticano, às quais juntou anexos de descrições do desastre elaboradas por indivíduos de nacionalidade espanhola, francesa e italiana. 

A experiência do Núncio é ilustrativa de como a catástrofe foi democrática: não poupou ninguém. A miséria atravessou-se no caminho de todos. Artistas estrangeiros a servir a corte portuguesa, embaixadores estrangeiros, a nobreza portuguesa que gozava a opulência do barroco até vésperas do desastre, a casa real e os seus projectos magnânimos, como a Ópera de Lisboa, o seu palácio real na Ribeira, a sua residência em Belém, tudo engolido pelo sacudir da terra, pela voragem das águas, pelo castigo das chamas. Estas cartas, em particular, focam-se na desgraça das elites, pois que o Núncio priva com o rei em pessoa. Assim ficamos a saber como eram as "tendas" e as "barracas", qual o espírito geral no governo aquando da catástrofe, e como Carvalho e Mello surgiu no leme das operações, cumprindo (e até antecipando) as vontades de D. José.

É um bom ilustrador do que se seguiu ao terramoto, de como se viveram os dias e meses que se seguiram, quais as dificuldades, que estados vieram oferecer apoio, quais os danos específicos que o os elementos, em fúria, inflingiram à população. Porém, a sua visão limita-se a Belém, que, apesar de tudo, não é onde se concentrava a maioria da população (portanto onde o horror terá sido maior), e o que se passa no coração da cidade, onde os danos foram apocalípticos, raramente é mencionado, e apenas o é como relatos de terceiros/notícias a que teve acesso.

As 9h30 da manhã de 1 de Novembro de 1755 foram apenas um anúncio impiedoso do que estava por vir. Estes testemunhos exploram as ondas sísmicas que se lhe seguiram, a destruição do fogo, a inquietude do mar, os moribundos e os seus gemidos sob pilhas de entulho, as estradas intransitáveis, as inundações (inclusive de hospitais trazendo a morte aos enfermos), as sepulturas colectivas, as penitências, as procissões, o horror generalizado.

Na primeira pessoa!

Classificação: 4****/*

#237 MOLESKY, Mark, O Abismo de Fogo


Sinopse: No Dia de Todos os Santos, em 1755, um sismo abalou a terra, desde o fundo do oceano Atlântico até às costas ibérica e africana. No caminho estava Lisboa, então uma das cidades mais ricas do mundo e capital de um vasto império. Em minutos, parte da cidade transformou-se em ruínas.Mas isto foi apenas o começo. Meia hora depois, um maremoto originado pelo terramoto atingiu o litoral português, provocando uma enchente no rio Tejo, arrastando milhares de pessoas para o mar. No final do dia, ondas gigantes haviam feito vítimas em quatro continentes.Completando a destruição, uma tempestade de fogo engoliu quase tudo o que restava da cidade, atingindo os sobreviventes com temperaturas que excederam os 1000 ºC. As chamas prolongaram-se por várias semanas.Tendo por base novas fontes, as últimas descobertas científicas e um profundo conhecimento da história da Europa, Mark Molesky dá-nos um relato do Grande Desastre de Lisboa e do seu impacto no Ocidente, em que se inclui a descrição do primeiro movimento de ajuda humanitária mundial, do aparecimento de uma ditadura em Portugal (que, apesar de tudo, serviu para modernizar o país) e do efeito da catástrofe no Iluminismo europeu.Muito mais do que uma crónica sobre destruição, O Abismo de Fogo é um emocionante drama humano onde surgem personagens inesquecíveis, como o marquês de Pombal, que encontra no caos o caminho para o poder, ou Gabriel Malagrida, o carismático jesuíta que acabou por ser morto devido à sua interpretação do terramoto como castigo divino.



«As batalhas perenes da humanidade entre a fé e a razão sempre foram postas à prova nos momentos de calamidade. O terramoto de 1755 foi o primeiro e mais dramático desses momentos na era moderna, e aguardava pacientemente o seu historiador. Tem finalmente, em Mark Molesky, o seu brilhante analista.»[Simon Schama]

Opinião: Li atentamente cerca de 70% do livro, as partes que se referiam aos vários rostos do desastre e da reconstrução, surpreendida pela horda de novidades sobre esta época tão complexa que o livro oferece. 

O terramoto, os seus meandros e implicações, o sol a nascer Às 06h02 desse dia fatídico, e a pôr-se às 17h47, para lá de nuvens de fumo e cinzas, fogo e gritos de desalento. Esses são os detalhes que me interessam. O livro explora e complementa muitas outras fontes. É uma obra descomunal de pesquisa e interpretação de um momento complexo que perdurou no tempo, que marcou a civilização europeia, que permitiu a ascensão de um déspota ao governo de Portugal, e que trouxe Portugal, do modo mais violento possível, para a era das luzes.

(Passei por cima das explicações científicas, isto é: daquilo que hoje se sabe sobre a possível origem deste terramoto, e também da parte do processo dos Távoras e de outras medidas do Marquês, no Douro, Coimbra, além-fronteiras, etc.).


Classificação: 4****/5