segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

7# A Queda


Título oficial: Der Untergang @ 2004
Realizador: Oliver Hirschbiegel
Banda Sonora: Blutrote Rosen
Actores principais: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara
Classificação IMDb: 8,3
Minha classificação: 6,5
Prémios:
Nomeado para Melhor Filme de Língua Estrangeira (USA),
Nomeado para Melhor Filme de Língua Não Espanhola (Argentina), 
Nomeado para Melhor Actor Bruno Ganz (European Film Awards), etc.
Melhor Filme Estrangeiro (Amanda Awards, Noruega),
Melhor Filme Nacional (Bambi Awards, Alemanha)
Melhor Filme Estrangeiro Independente (British Independent Films Awards)
Etc.

Estive o dia todo de cama, possivelmente com outra das minhas infecções respiratórias e apeteceu-me ver um filme. Die Untergang, ou Downfall, “A Queda”, de 2004, é de realizador alemão, natural de Hamburgo. Eu não sabia muito a respeito da Alemanha ou dos alemães até à minha curta estadia de uma semana em Richtweg, mas uma coisa soube ler nos seus rostos: desolação. Não entendia o porquê do peso que Hamburgo transportava em cada esquina. Toda a cidade parecia nova e cuidada, mas havia qualquer coisa que me mantinha de pêlos eriçados quando caminhava sozinha por aquelas ruas. E então descobri a Igreja e Torre de São Nicolau, o único edifício que parece velho em Hamburgo. Agregado à torre, existe um museu que é, na realidade, uma lembrança viva do que foi o suplício da II Guerra Mundial para os alemães. Em Hamburgo, ofereciam-se jogos de tabuleiro às crianças onde os ensinavam a como se proteger de um raid aéreo. Em Julho de 1943, grande parte da cidade foi arrasada por um raid aéreo – a Operação Gomorrah -, levada a cabo sobretudo por britânicos. Para a Alemanha nazi, desviar a atenção da capital para outro ponto de interesse estratégico como Hamburgo era essencial. Para as pessoas que lá viviam, foi um horror que, mesmo setenta anos depois, continua impresso nos olhares de toda a gente.

É impensável que num mundo esclarecido, num século XX tão prometedor, algumas mentes tenham sido capazes de se sobrepor a outras de modo tão efectivo que causaram a miséria de todo um continente e quase o colapso de uma civilização.
Em “A Queda”, Hitler surge como um velhinho trémulo e orgulhoso, que deixou de fazer sentido e, portanto, de ser obedecido. É educado e cortês, mas sofre assomos de fúria. Recusa-se a acreditar que o seu sonho de uma Europa unida se desfaça assim, com os Russos a sobrevoarem Berlim e a bombardearem o coração do III Reich. Mesmo nos seus últimos dias, o Führer não acredita que vá fracassar. Movimenta esquadrões militares que já pereceram a esquematiza ataques que estão fora de questão. A Alemanha já não se pode defender e os últimos crentes rodeiam-no nas suas horas finais, demonstrando fé na sua pessoa e no ideal de Nacional Socialismo.

Segundo o filme, criação alemã sobre um momento tão significativo para a história alemã, o Füher demonstra um total desrespeito para com os civis e para com a vida humana. Oficiais são executados sumariamente, civis são enforcados, hospitais são encerrados com dezenas de idosos apinhados na cave à espera que os Russos cheguem e decidam sobre os seus destinos. Toda a gente parece pronta a suicidar-se por este ideal e por este homem que lhes pede que o façam, se tudo se resumir a isso ou ao cárcere às mãos dos russos, e mesmo uma mãe é retratada a levar todas as suas crianças a engolir pílulas suicidas. A pastora alemã de Hitler e Eva Braun não se salva ao capitular do Império, sendo mais uma das vítimas inocentes que narram o absurdo desses últimos dias. Os oficiais de patentes superiores suicidam-se das mais diversas formas, sobretudo os membros da SS, que se recusam a cair nas mãos dos Russos. Dizem que não faz sentido "sobreviverem à morte de Hitler".
Destaca-se, ao longo do filme, uma jovem dactilógrafa, Traudl Junge, que só próximo do final se apercebe da loucura surreal que a rodeia e decide que é jovem demais para perecer. Esse gesto não demonstra deslealdade para com o governo, mas sim um despertar do seu alheamento, que a levou a ignorar as atrocidades que eram cometidas pelos nazis.
Todo o filme é povoado de devotos Nacionais Socialistas, sendo que o que os difere é apenas o nível de humanidade que ainda carregam no peito, bem como a sua perspectiva sobre o desperdício da vida humana para uma causa perdida. De resto todas as personagens que circundam Hitler nos seus dias finais são fiéis agentes do nazismo, pelo que não vale a pena verem o filme à procura de qualquer tipo de oposição idealista àquilo que sabemos ter sido a Alemanhã Nazi.

As emoções são um pouco confusas na construção deste retrato dos últimos dias no bunker com Hitler. Sendo este alemão, sobre alemães, os mesmos parecem impávidos perante situações que escandalizariam qualquer pessoa com um mínimo de coração, mas depois as mulheres surgem como criaturas histéricas a berrar por coisas que parecem mínimas. Não consigo, sequer, decidir se gosto do filme ou se o mesmo é bom. Todavia, Bruno Ganz, como Hitler, afigura-se-me sublime. Foi a única personagem que transmitiu emoções coesas. É difícil ler emoções nos filmes germânicos, mas penso que “A Vida dos Outros” esteja bem melhor nesse campo do que “A Queda”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

6# Capitão Phillips

Título oficial: Captain Phillips @ 2013
Realizador: Paul Greengrass
Banda Sonora: Henry Jackman
Actores principais: Tom Hanks, Barkhad Abdi
Classificação IMDb: 8,1
Minha classificação: 7
Prémios: ~

Quando estudei Psicologia, e mais tarde Ética, lembro-me de abordar um tema delicado. O sacrifício de uma colectividade por um indivíduo, ou de um indivíduo pela colectividade. Ontem, quando saí da sala de cinema, ainda não tinha dissecado o “Capitão Philips” a fundo. Se me perguntassem o que achei do filme, diria: “Foi a América a fazer-se de bonita, heroína e salvadora do dia, como sempre”. O filme é emotivo, por vezes de uma tensão tão aguda que dei por mim a tremer na cadeira também. É violento – às vezes uma troca de olhares, um murro, são mais violentos do que o descarregar de uma metralhadora em alguém. A expectativa de violência também contribui para a mesma.
Hoje, quando me perguntei porque é que não adorei o filme, entendi. Pare de ler agora quem está interessado em vê-lo, porque vem spoilers. O filme é o esmagamento de uma pequena nação, empurrada para a dita violência e para a pirataria e outros gestos desesperados, por uma nação muito maior. É o esmagamento de quatro indivíduos convictos, corajosos – ainda que os seus motivos não sejam os melhores nem o seu incentivo o mais honrado – para promover o salvamento de um quarto. Inocente, sim, mas, à luz das circunstâncias de um país e doutro, também os outros quatro indivíduos eram meras vítimas das circunstâncias.
O que se vê é o debater de um pequeno inimigo – inculto, ingénuo, despreparado, munido apenas de armas de fogo e aspecto feroz – contra um outro incomensurável. A América monta um pequeno teatro de guerra para recuperar o capitão, para se assegurar que o salva-vidas em que segue, refém dos piratas, não abandona as águas internacionais. Fá-lo mecanicamente, como que seguindo um protocolo simples. Abater três alvos, enjaular um quarto, salvar uma pessoa cuja vida se assume mais valiosa do que as outras quatro. Ok, I get it, inocente e tal, estava muito bem na vida dele e os piratas sabiam no que estavam a meter-se mas…
Pronto, já disse o que tinha a dizer. Serei a única pessoa a achar que o filme é sobre o desespero dos Somalis? A falta de opções, de recursos desses pescadores? Serei a única pessoa a achar que o filme não deveria ser sobre o Capitão branco que viveu uma bonita vida e sim sobre os jovens negros empurrados para o seu encalce?
O filme nem sequer se deveria chamar "Captain Phillips". Eu chamar-lhe-ia, apenas, "Captain/s".

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

#104 SHREVE, Anita, Testemunho

Sinopse: Uma pequena cassete de vídeo chega às mãos do director da conceituada Academia de Avery - uma catástrofe de proporções que ninguém será capaz de prever. Mais chocante do que os actos sexuais nela gravados é o facto de terem sido protagonizados por três rapazes com idades compreendidas entre os dezoito e os dezanove anos e uma rapariga de apenas catorze. Qual caixa de Pandora, a gravação desencadeia uma tempestade de vergonha e recriminação que se abate sobre a pequena comunidade, revelando uma intrincada teia de segredos e mentiras. Homens e mulheres, adolescentes e adultos envolvidos no escândalo tentam decifrar os acontecimentos daquela noite e os seus efeitos. Mike Bordwin, o director, quer a todo o custo conter o escândalo e salvaguardar a reputação da escola; Silas Quinney, um popular aluno, sofre as consequências dos seus actos, enquanto Anna, a mãe, enfrenta as suas próprias faltas; e Sienna, uma jovem enigmática e perturbada, não olha a meios para esconder o seu passado. As imagens reveladas suscitam mais perguntas do que respostas. Como foi possível tal comportamento no seio de um ambiente tão selecto? Quem é culpado e quem é inocente? Podem as consequências de um acto imprudente ser travadas ou o futuro de todos os envolvidos será irremediavelmente destruído? À medida que o coro de vozes se levanta, revela-se a surpreendente verdade sobre os acontecimentos daquela noite, e as vidas de todos os envolvidos serão transformadas para sempre.

Opinião: Um dos meus livros favoritos, lido em 2004 salvo erro, foi escrito pela mão de Anita Shreve. “A Praia do Destino” traduz uma visão única da condição humana e derruba barreiras quanto a questões regidas pela moral do senso comum. Um caso entre uma jovem de quinze anos e um médico de quarenta e um, ainda por cima casado, ainda por cima em 1899, é um desses casos de moral indiscutível. Mas a autora conseguiu promover um debate a fazer da humanidade e das circunstâncias, e foi isso que me comoveu e me rendeu nessa leitura. Um vídeo onde uma rapariga de catorze anos (por Deus, a minha irmã tem treze!), sexualmente experiente e madura, tem relações com três rapazes de dezoito e dezanove anos cai também na condenação moral do senso comum.
Uma cassete chega à posse do director da reputada Academia de Avery, no Vermont, onde a natureza dos actos registados constitui um crime. Acusados de abuso sexual, os três rapazes enfrentam a justiça, os pais e a própria consciência.
Trouxe este livro para Itália com esperança de fazer rendê-lo mas, apesar de ter dormido apenas três horas esta noite, o apelo durante o voo suplantou o cansaço e li as últimas cem páginas de enfiada. A abordagem da autora é única; cada um dos muitos envolvidos vai-se pronunciando a respeito do caso, e com estes recortes constitui um recorte alargado das consequências daquele “deslize” para toda a gente.
Cada personagem tem uma voz única, de início pode parecer que são muitas personagens, mas os capítulos são curtos e fui apontando os nomes dos envolvidos, dos pais, do director, do director que veio substituí-lo, da empregada do refeitório, do jornalista, da enfermeira, do xerife da cidade, etc. Cada relato é multidimensional, proferido em tom pessoal, e ajuda a compor os acontecimentos da noite de 21 de Janeiro em Avery, e também as consequências que daí advieram e os motivos que levaram a esse desfecho.
Afinal, falamos de dois casamentos afundados, um desgastado, uma morte, várias demissões, dois jovens com futuros promissores expulsos, um caso amoroso trágico e uma série de acasos inofensivos que, conjugados, culminam numa catástrofe. É precisamente isto que aprecio na Shreve; como o aparente “pouco” pesa tanto consoante as circunstâncias. Com esta aurora há sempre um cair das máscaras, um cavar mais fundo, um silenciar de coisas importantes, um deduzir, um calcular, um falhar. Adorei o modo como a autora conduziu o livro e as conclusões que dele tiramos; não há inocentes nem culpados, são todos vítimas das circunstâncias e, quase no fim, quis chorar. Ela faz-me sempre isto; chorei a ler “A Praia do Destino”, chorei a ler “A Casa na Praia”, chorei próximo do fim do “Casamento em Dezembro”, e choraria certamente neste não fosse o casal britânico a meu lado no avião.


Não consigo despregar-me da certeza de que estou perante um/a dos/as melhores escritores/as contemporâneos/as da actualidade. Não é um livro para estômagos fracos, porque a escritora não força o drama – nem floreia demasiado – mas é crua. E essa crueza revela o que de mais sujo e inquieto reside em cada um de nós. Perturbador, pertinente; um triunfo por entre a obra da autora, que assim se supera de novo.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

#103 OLIVEIRA, Carlos de, Uma Abelha na Chuva

Sinopse: Uma Abelha na Chuva conta-nos as peripécias de Álvaro Rodrigues Silvestre, sujeito às “instigações” de sua esposa, D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre. O livro começa com uma confissão de Álvaro e com a sua vontade de a tornar pública na primeira página da Comarca — uma redenção consigo próprio. 
Esta história leva-nos à aldeia de Montouro num Outono chuvoso, onde conhecemos as personagens que rodeiam este casal e constituem a aldeia e pelos quais ficamos a conhecer o Portugal provinciano de meados do século XX.Como afirma o autor, “Por onde a solidão a fazia resvalar. E o quarto tão frio. Talvez os ventos, os granizos do norte, as grandes chuvas. Talvez D. Violante. Mas sobretudo a velha casa de Alva, quando a miséria não chegara ainda e, atrás dela, os Silvestres. Agora é o marido labrego e doentio, as bebedeiras, o desencanto, isto. Quer melhores nortadas, D. Violante?”.O escritor ironiza a sabedoria popular, o largo da aldeia quando acolhe um ajuntamento popular, ancestral, onde tudo se discute, onde tudo se decide num julgamento popular e, tantas vezes, tacanho. E a morte, que persegue Álvaro numa bebedeira de brandy, a morte que tolhe Jacinto e Clara, à chuva, persiste em vingar neste livro.

Opinião: Uma Abelha na Chuva, publicado em 1953, é o retrato físico de uma mulher bonita, robusta, casada por dever com um homem que a ama, e que ela despreza. Um homem fraco, bondoso, bonacheirão. É um ensaio poderoso, que consiste na submersão por inteiro num mundo rural claustrofóbico, e também no pensamento de alguns estratos sociais aqui bem representados. 

Este livro veio ter comigo através do programa Grandes Livros da RTP 2, podem aceder-lhe aqui. Enquanto o esmiuçavam, passavam imagens a preto e branco do filme homónimo de 1971, e a prestação da Laura Soveral como D. Maria dos Prazeres captou-me a atenção. Uma mulher de aspecto tão firme, e, no entanto, quebrada por dentro. Esvaziada de doçura, de calor, de suavidade. O cabelo perfeitamente arranjado, e ainda assim um torvelinho na alma, evidente sob a superfície serena. Reconheci o tipo de força sustido por aquele rosto quase passivo que, de olhar baço, se insinuava no ecrã, arrebatando-o, cena após cena. As páginas deste romance, como um mergulho no quotidiano destas pessoas e das suas relações estéreis, expõem o casamento disfuncional de Álvaro Silvestre, pequeno proprietário rural, dono de uma mercearia, quem sabe outrora lavrador, e de D. Maria dos Prazeres, oriunda de uma família nobre em declínio. Apegada aos objectos que um dia coloriram o estatuto da família, esta personagem é de uma nitidez intimidante, mas, nem por isso está melhor composta do que as restantes. Todos os rostos ali criados por Carlos de Oliveira são dotados de uma admirável multidimensionalidade: é palpável uma certa hipocrisia no cura, uma ambição desmesurada no proletariado, uma asfixia da nobreza e a decadência moral de uma burguesia de vícios e fraquezas.

D. Maria dos Prazeres é apegada à tradição, ao passado, e é também uma vítima de ambos. Foi conduzida ao altar por um pai à beira da falência, e viu-se condenada a uma vida de infelicidade ao lado de um homem que considera fraco. É ela quem dá ordens e é obedecida, nos seus domínios, é ela que se vale do padre para espiar o marido. Contudo, nem tudo está dentro dos limites rígidos do seu controlo; não manda no próprio coração nem numa coisa que tem vida própria e que pulsa a cada vez que põe os olhos no cocheiro da casa; o desejo. Deseja o cocheiro rude, risonho, despreocupado, um pouco tosco que a segue para onde ela o mandar. Talvez porque ele seja uma antítese gritante do seu marido patético. Mas o cocheiro personifica um devaneio fora do seu alcance, e ela não dá um passo para inverter essa situação, quiçá porque essa atracção a vexe, ou porque, mal-grado o chamamento da carne, o considere indigno da sua pessoa. Enquanto isso o marido, também miserável, bebe. A acção decorre num espaço circunspecto, em que o mundo rural vem descrito de forma sublime – cheira-se, toca-se, sente-se, ouve-se. 

Tudo se precipita quando Álvaro ouve o cocheiro mencionar os indesejados olhares cobiçosos que a patroa lhe deita.

Uma obra, a meu ver, incontornável para quem procura compreender melhor o panorama do micro "neorrealismo" literário português. A passinhos de bebé, cá me vou aventurando na nossa literatura lusa. E tem valido muito a pena...

Classificação: 4****/*

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

#102 GUHRKE, Laura Lee, Prazeres Proibidos

Sinopse: Toda a mulher tem os seus prazeres proibidos…Para a delicada e tímida Daphne Wade, o mais apetecível prazer proibido é observar discretamente o seu patrão, o duque de Tremore, enquanto este trabalha numa escavação na sua herdade. Daphne foi contratada para restaurar os tesouros de valor incalculável que Anthony tem estado a desenterrar, mas não é fácil para uma mulher concentrar-se no seu trabalho quando o seu atraente patrão está sempre em tronco nu. Apesar dele não reparar nela, quem a pode censurar por, mesmo assim, se ter apaixonado desesperadamente por ele? Quando a irmã de Anthony, Viola, decide transformar esta jovem e simples mulher de óculos dourados numa provocante beldade, ele declara a tarefa impossível. Daphne fica arrasada quando sabe… mas está determinada a provar que ele está errado. Agora, uma vigorosa e cativante Daphne sai da sua concha e o feitiço vira-se contra o feiticeiro. Será que Anthony conseguirá perceber que a mulher dos seus sonhos esteve sempre ali?

Observação: Esta sinopse é das enganadoras.  A Daphne não é delicada tendo crescido com os beduínos no deserto, e a Viola não a transforma em coisa alguma! Tem dois dedos de conversa com ela e vai-se embora.

Opinião: Eu gosto da Laura Lee Guhrke, as personagens dela têm alma e dinamismo. Sofrem dos mesmos problemas que o comum dos mortais e são enternecedoras. A Daphne não é exactamente bonita, nem tem dinheiro, o que é um problemão mas, em compensação, cresceu no deserto do Sahara, andou pela Palestina, por Creta e pelo Egipto, fez férias em Roma e Nápoles e tudo isso contribuiu para que fosse a criatura viva mais apta para ajudar o Duque de Tremore a inaugurar o seu museu de Arqueologia. A descoberta de ruínas romanas na sua propriedade em Inglaterra constitui a maior paixão a que o duque se permite. Enquanto ela restaura mosaicos e ânforas, ele tira a camisa e vai escavando com os outros trabalhadores. Por detrás do avental de tela e dos óculos de aros dourados, ela observa-o, sonha com ele e desenha-o incontáveis vezes, sem nunca se atrever a almejar alguém tão importante para si. A paixão platónica de Daphne correu rela  tivamente bem, até que a irmã de Anthony surge e o obriga a reparar na rapariga. A troca de palavras entre irmãos, a seu respeito, deita a auto-estima de Daphne por terra. Ao contrário do que a sinopse promete, a Viola (irmã do duque) não lhe ensina coisa alguma nem a veste de princesa. A mudança que se dá em Daphne para que ele comece a reparar nela é simples: ela já não o quer, foi-se o enamoramento. Como consequência acaba-se-lhe a polidez e passa a responder-lhe à letra. A modos que ele gosta de ser desafiado e a troca constante de farpas leva à atracção e etc., etc. Não é um enredo original, mas gosto do apontamento de Arqueologia e adorei a questão da linguagem das flores. Ou seja, na época vitoriana, uma senhora lançou um livro com o significado de cada flor. Os amantes enviavam-sebouquets completos e liam-nos como que a uma carta. Gardénias: amor secreto, inconfessado, outras flores significam prisão, fidelidade e, tudo culmina, claro, numa rosa. Confesso, contudo, que pulei ali umas quantas páginas pelo meio. Quando não estavam juntos, eu quase adormecia (mas era realmente tarde, a ansiedade é que me obrigou a terminá-lo). Ainda assim, é um romance com bons alicerces e a pesquisa histórica foi feita.


Classificação: 4,5****/*

sábado, 28 de setembro de 2013

#101 BALOGH, Mary, Ligeiramente Casados

Sinopse: Como todos os Bedwyn, Aidan tem a reputação de ser arrogante. Mas este nobre orgulhoso tem também um coração leal e apaixonado - e é a sua lealdade que o leva a Ringwood Manor, onde pretende honrar o último pedido de um colega de armas. Aidan prometeu confortar e proteger a irmã do soldado falecido, mas nunca pensou deparar com uma mulher como Eve Morris. Ela é teimosa e ferozmente independente e não quer a sua proteção. O que, inesperadamente, desperta nele sentimentos há muito reprimidos. A sua oportunidade de os pôr em prática surge quando um parente cruel ameaça expulsar Eve de sua própria casa. Aidan faz-lhe então uma proposta irrecusável: o casamento, que é a única hipótese de salvar o lar da família. A jovem concorda com o plano. E agora, enquanto toda a alta sociedade londrina observa a nova Lady Aidan Bedwyn, o inesperado acontece: com um toque mais ousado, um abraço mais escaldante, uma troca de olhares mais intensa, o "casamento de conveniência" de Aidan e Eve está prestes a transformar-se em algo ligeiramente diferente…


Opinião: Comprei este livro com alguma relutância. Sempre me pareceu que os casais da Mary Balogh se unem mais por dever e honra do que por afecto. Não falo do momento que despoleta a sua união, mas sim do que os mantém unidos posteriormente. Não se vêem grandes paixões assolapadas, grandes lágrimas de desilusão amorosa nem grandes sacrifícios pelo outro (podem haver sacrifícios, sim, mas geralmente por promessas a moribundos na guerra, por ex.). Este livro não foge ao padrão dos dois livros anteriores: as guerras peninsulares travadas contra Napoleão levam três oficiais ao altar. Nos dois primeiros livros as noivas eram mulheres desadequadas, sem grande noção de etiqueta, e neste não é excepção. Apesar de ter sido educada para ser uma dama, Eve cresceu no Oxfordshire e é por lá que pretende ficar, sem almejar uma vida em Londres ou de aventuras atrás do seu coronel de campanha militar em campanha militar. O que eu mais gosto nos livros da Mary Balogh é, contudo, a honestidade e a honradez das personagens. Não são máquinas sexuais acéfalas, como em muitos outros livros do género, em que o homem é um “libertino” e um “ocioso”. Nos livros da Mary os homens são homens, mas são-no racionalmente. Têm as suas aventuras mas o dever e essa dita honra são a sua força motriz. Por vezes sinto que falta algo nos livros dela - uma certa espontaneidade, que outras autoras conseguem atingir tão bem, entre o casal principal. Neste caso não há grande química, grande “amor à primeira vista”. Nem o coronel Aidan Bedwyn nem Eve Morris se perdem de amores ao ver-se da primeira vez e ambos lutam por combater, na sua mente, aquilo que esperavam do outro e aquilo que ele é. Não há grandes elogios ao físico de um e doutro - Eve é pálida, demasiado magra, o cinzento morre-lhe na pele, o cabelo não é vistoso, é dum castanho comum, os seios são pequenos e ela envergonha-se disso. O coronel é um homem “sombrio”, de nariz adunco, olhos e cabelo escuro, a própria pele é escura em contraste com a dela, o corpo largo do serviço militar mas também de estrutura óssea. Ele próprio receia que ela se sinta repugnada pelo seu aspecto, mas depois percorrem um caminho de aceitação mútua. E é esta humanidade que eu aprecio na Balogh. Bem como a franqueza das personagens quanto às suas intenções e desejos. Não há o jogo do homem a perseguir a mocinha bonita e ela a negar-se-lhe por palavras e depois a atirar-se-lhe para o colo sempre que pode. A Eve é honesta mesmo na intimidade, e esse entendimento mútuo beneficia o livro, que se quer mais sério do que muitos do mesmo género literário. E é por isso que gosto dele, porque me identifico com essas criaturas imperfeitas e com esse amor construído. Porque também eu sou honesta no que tenho de ser e isso é parte de nos conhecermos e de assumirmos as nossas preferências e escolhas, mesmo aquelas que não têm grande explicação lógica.

Por isso foi para mim um prazer - e um livro assim é um conforto nos dias mais difíceis - acompanhar o modo como a Eve e o Aidan se vão tornando indispensáveis para a felicidade um do outro. E como o amor pode nascer do conhecimento das histórias e dos defeitos mútuos. E que bonito foi vê-los interessar-se e dedicar-se àquilo que para o outro há de mais sagrado!
Foi uma boa leitura que me angustiou quando havia frieza entre eles, e que me enterneceu quando se permitiam ser ternos e expôr a alma perante o outro. Um casal muito bom, inesquecível.

Classificação: 4****

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

#100 SERAJI, Mahbod, Terraços de Teerão

Sinopse: Este romance de estreia passa-se em Teerão, entre os anos 1973 e 1974, antes da revolução islâmica, ainda sob o opressivo regime do Xá Reza Pahlevi. Nesta obra de inspiração autobiográfica, as figuras principais são dois adolescentes em férias escolares que passam grande parte do verão a deambular pelos terraços das casas da vizinhança... Ali trocam confidências, sonham com o futuro, mas também ganham consciência das realidades mais duras da vida. Intenso, dramático e colorido, Terraços de Teerão dá-nos a conhecer a cultura iraniana, através das vidas de personagens em que nos reconhecemos no mais essencial da experiência humana.

Opinião: Há muito que queria ler este livro. A capa é lindíssima e Teerão soa a uma cidade distante, exótica e problemática. No dia 7 de Junho, em Roma, sentei-me à mesa com um iraniano de Teerão. Disse-me que há muitos milhões de cidadãos durante o dia na cidade, e que todos a deixam à noite quando regressam a casa. Falou-me de zonas no Irão onde a temperatura ascende a 48º, e outras zonas geladas onde é impensável viver-se.

Pouco conheço do Médio Oriente, mas compreendo os conflitos de interesses EUA/URSS do século XX, e o jogo político comunismo/capitalismo. Também entendo o funcionamento de uma ditadura, mas o melhor que este livro me passou foram as pequenas curiosidades a respeito do Irão e da cultura desse povo. Herdeiros dos Persas, têm uma história de sangue e sofrimento, são na maioria Islâmicos e, em 1973, quando o livro tem lugar, são pouco simpatizantes do novo estado de Israel (pós II Guerra Mundial). O livro ilustra o ambiente de repressão e medo pré-revolução iraniana. O Xá impôs-se à população através do apoio prestado pelos EUA. Isto para evitar que o país se dobrasse às ideias marxistas. A ditadura imposta por esse chefe impede que se discuta qualquer assunto político, censura certos livros e proíbe publicações e opiniões adversas por parte dos cidadãos. A SAVAK – polícia política também financiada pelos EUA – é tanto um mito urbano quanto uma sombra de terror a pairar sobre todos. Qualquer suspeita de traição ao Xá, de raiva para com o regime, culmina num aprisionamento aparatoso, isolamento, tortura física e psicológica. Por vezes o prisioneiro é ilibado – a família é exilada e instruída a silenciar o assunto. Outras vezes morre sob tortura, o corpo é devolvido se pagarem “as balas” e enterrado num local desconhecido. A família não pode chorá-lo, visitá-lo nem prestar-lhe luto. Deve esquecer o rebelde e proceder de acordo com o esperado pelo regime.

É neste contexto de opressão intelectual que crescem o jovem Pasha e Ahmed, o seu melhor amigo. Nas noites quentes desse verão, estendem-se no terraço a partilhar as inquietações de amor, os pequenos gestos de resistência ao regime, as histórias dos seus antepassados e as particularidades de carregarem a herança dos Persas. O livro é divertido, por vezes comovente, e a narrativa é fácil de acompanhar. Conta com um leque de personagens inesquecíveis e muito humanas que o pintam de um realismo enternecedor. É um triste conto sobre jovens enérgicos e inconformados, que perdem muito daquilo que lhes é querido, lidam com o luto e a frustração e tornam uma simples roseira num símbolo de resistência ao regime. Comovente em larga medida, peca apenas pela repetição dos raciocínios. Situações passadas, características específicas de personagens/locais, desejos inconfessados, conclusões a que o personagem principal chega, são várias vezes repensados e o sofrimento é uma constante, mas esta recorrência cansa um pouco o leitor mais para o fim.
Contudo é um muito bom livro, uma boa porta de contemplação – e compreensão – para com o Médio Oriente.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

#99 KUNDERA, Milan, A Insustentável Leveza do Ser

Opinião: Digamos que não me foi difícil compreender o espírito de Milan Kundera. Mas não me foi exactamente fácil lê-lo nem acompanhá-lo. A narrativa segue ao ritmo das ideias, das emoções, da imaginação, devaneios e sonhos. As personagens são multidimensionais, vão de um extremo ao outro, são imprevisíveis, inconstantes. Causam desconcerto, empatia, repugnância, compaixão, estranheza, alienação. Tudo na mesma página. Algumas reflexões contidas nesta obra são autênticas pérolas de saber. Viver uma vida é como não viver. Uma vida sem um esquisso é, então, receita para desastre. Algo pesado é negativo e algo leve é positivo. Tudo isto mergulha em nós quando nos encontramos num espírito receptivo a “aprendizagens” mais profundas e superei as minhas expectativas ao lê-lo em quatro viagens de comboio – Richtweg-Hamburgo, Hamburgo-Richtweg, Richtweg-Hamburgo-Bremen e Bremen-Hamburgo-Richtweg. E estava lido mais este “a ler antes de morrer”.
Do que trata este livro, afinal? Meros devaneios existenciais? Não, não. Trata a Primavera de Praga, a influência do regime comunista sobre a Europa de Leste/Central. A opressão, as perseguições políticas, o sufoco do povo e dos intelectuais. A busca pela felicidade, a emigração, o exílio, o campo, a ci
dade, a fidelidade, as ânsias da alma e do corpo, as necessidades do corpo e as premências da alma. O amor a uma cadela que se trata por cão. Uma cultura um pouco “alemanhizada” aqui bem presente, sem que eu o esperasse. Ditados alemães, Nietsche a chorar abraçado a um cavalo porque o cocheiro lhe aplicou uma chibatada, Beethoven e o “es muss sein!”. Enfim, uma enxurrada de acontecimentos com pessoas mais ou menos banais que se conhecem por uma série de acasos e nas quais Kundera deposita, com habilidade, as falhas de carácter e de insustentabilidade de ser de cada e qualquer humano.

Foi lido no momento certo. Não morri de paixão por ele mas reconheço-lhe o signo do talento genuíno.


Classificação: 4.5****/*

Sinopse: A Insustentável Leveza do Ser é seguramente um dos romances míticos do século XX, uma daquelas obras raras que alteram o modo como toda uma geração observa o mundo que a rodeia.

sábado, 3 de agosto de 2013

#98 GRAVES, TRACEY GARVIS-, Sozinhos na Ilha


Opinião: «Sozinhos na Ilha» foi-me recomendado por várias classificações favoráveis de pessoas em cujo gosto confio. O livro não foi, de modo algum, um embuste. Foi uma descoberta agradável e uma leitura compulsiva e prazerosa. Conta a história de Anna, de 30 anos, e de T.J., um antigo doente de cancro, que tem 16 anos quando o hidroavião em que sobrevoam as Maldivas se despenha no Índico. Como resultado passam cerca de 4 anos sozinhos na ilha. Professora e aluno a cooperarem para sobreviver às diversas intempéries. Falta de alimento, sede, tempestades, tubarões, anémonas, morcegos com raiva, águas estagnadas, a angústia de nunca mais verem os seus entes queridos. Gostei dos pormenores sobre a fauna / flora da região e os desafios diários. Foi bastante realista.

A autora escapa aos floreados, expõe a história pulando de acontecimento significativo em acontecimento significativo, sem se ralar muito com contar cada hora e cada momento da vida na ilha, o que agradeci bastante, porque o essencial estava lá. Também não mergulhou em grandes contemplações filosóficas, foi mais prática do que isso.

Contudo há algo em falta, algo que lhe rouba genuinidade. O livro parece-me, um bocadinho, “cinematográfico”, como se na realidade só sobrevoássemos, quase superficialmente, as cabeças das personagens. Dava-me jeito conhecê-los um bocadinho melhor. Depois não é uma ligação fácil de compreender, e gostaria que a autora tivesse trabalhado nisso. Que eles próprios duvidassem um bocado se era suposto funcionarem ou não e, quem sabe, no fim entendessem que era mesmo aquilo. O amor romântico e incondicional soa-me sempre a ficção – e é uma obra de ficção, OK – exacerbada. Preferia dúvidas existências, pesos na consciência, afastamentos dolorosos e regressos de peito apertado. Acho que tudo acontece com uma naturalidade que gostaria de ver mais desenvolvida.
Vai ser adaptado ao cinema e não me espanta. Holywood só tem que achar uma boazona e um hot guy para pôr as mulheres todas a correr para o cinema. E eu entre elas.



Sinopse: Uma ilha deserta plena de sol, vegetação luxuriante e mar cristalino é um cenário de sonho. Ou talvez não... Anna Emerson decide quebrar a sua rotina e deixar Chicago para dar aulas numa ilha tropical. Por seu lado, T. J. Callahan só quer voltar a ter uma vida normal após a sua luta contra o cancro. Mas os pais empurram-no para umas férias num destino exótico. Anna e T. J. estão a sobrevoar as ilhas das Maldivas a bordo de um pequeno avião quando o impensável acontece: o aparelho despenha-se no mar infestado de tubarões. Conseguem chegar a uma ilha deserta. Sãos e salvos, festejam e aguardam, convictos de que serão encontrados em breve. Ao início, preocupam-se apenas com a sobrevivência imediata e imaginam como será contar tamanha aventura aos amigos. Nunca a citadina Anna se imaginou a caçar para comer. T. J. dá por si a lutar com um tubarão e a ser acolhido por simpáticos golfinhos. Os dois jovens descobrem-se timidamente e exploram a ilha. Mas à medida que os dias se transformam em semanas, e depois em meses, as hipóteses de serem salvos são cada vez menores. Ambos têm sonhos por cumprir e vidas por retomar, e é cada vez mais difícil evitar a grande questão: conseguirão um dia sair daquela ilha?

terça-feira, 23 de julho de 2013

#97 CLAUDEL, Philippe, O Barulho das Chaves

Philippe Claudel é perturbador. Entranha-se-me nos ossos. Em tantos anos de leitura, consegue uma coisa que me é já rara: intrigar-me. Este homem intriga-me. Além de me intrigar, deixa-me presa a ele. Ainda só li duas das suas obras – O Barulho das Chaves e Almas Cinzentas. O Barulho das Chaves contém pequenos relatos, muito fáceis de ler, compilados em 76 páginas. Refere-se aos onze anos que passou a ensinar Francês num estabelecimento prisional. Este livro, tão cinzento quanto a sua outra obra que li, ajuda a compreendê-lo para lá do explicável. Claro que Claudel escreveu o Almas Cinzentas. Quem se não um homem que lidou com esta dicotomia de cores na natureza humana poderia escrever um livro sobre sermos todos cinzentos, e não exactamente brancos ou pretos?
Claudel é ousado. Claudel tira-me o sono. Açambarca-me os pensamentos, conquista-me e transforma-me. A cada livro seu uma nova inquietação. A natureza humana perante a minha vista, tão clara contada pela sua voz, tão genuína nas suas percepções – e não julgamentos -, e eu cega para ela até aqui.
«Marcel B., cinquenta e sete anos, prestes a ser libertado por falta de provas suficientes, depois de ter sido acusado de abusar sexualmente da neta de onze anos, e que preferiu enforcar-se no fecho da janela da cela, durante a noite anterior à sua libertação, em vez de regressar à aldeia.».
E prossegue, recordando-se algures doutro recluso:
«William I. era mecânico “na vida civil”, como ele dizia. Confessou-me que, todas as noites, montava e desmontava mentalmente, peça a peça, o motor de um 504 diesel. “Para aguentar”, acrescentava.»
E eu não prossigo. Não posso prosseguir. Deixo-me ficar, meio entorpecida, pela consciência desta humanidade cinzenta, ambígua, tão simultaneamente abjecta e vulnerável, enternecedora, sobre a qual Claudel me vai falando.

Por agora tenho de guardar O Relatório de Broderick para mais tarde. Não quero arriscar-me a esgotar todos os meus recursos do Claudel enquanto não há muito mais. Vou saboreá-lo aos poucos, como a minha mãe dizia que fazia com o chocolate quando era pequena. Não pode haver impulsos de devoração compulsiva quando sabemos que depois disso só recriminação.  

segunda-feira, 22 de julho de 2013

#96 LAVADO, L.C., Inverno de Sombras


Opinião: Way to go, Liliana! É tudo o que me ocorre quando acabei, há cinco minutos, o mind blowing que foi terminar o “Inverno de Sombras”. Foi-me outra chapada sem mão. O que li eu de fantasia na minha vida? Dois livros do Tolkien – que apreciei bastante, sim – e o Harry Potter. Ah, o Frankenstein pode ser considerado fantasia? Li os livros da Andreia Ferreira, que me introduziram neste mundo, and that’s it. E aqui a Célia, que faz um esforço sobrehumano para mergulhar nisso das vampiragens, fantasmas, lobisomens, feiticeiros e bruxas – e que foge a sete pés da Alice no País das Maravilhas – está boquiaberta com a maravilha que acabou de ler. Mais outra peça-chave no mundo trémulo da ficção fantástica onde continuo a dar passinhos de bebé.

Imaginação para mundos que não existem? Não tenho nenhuma. Costumo ter até uma certa dificuldade em abstrair-me. Mas verdade seja dita que poucos livros tiveram de mim o entusiasmo que o Harry Potter conseguia sem esforço. Ler – acreditar – (n)um livro de fantasia nesta fase da minha vida abriu-me portas e inúmeros caminhos por explorar.

Antes de mais, cumprimento a autora pela imaginação brilhante e pela capacidade de lógica e raciocínio que foram essenciais à edificação deste romance. Fácil? Garanto que não foi, embora ela tenha uma clara desenvoltura nesta área. Depois as personagens; mesmo que pertencessem ao mais aborrecido dos cenários, são multidimensionais, bem caracterizadas, com linguagens, gestos e atitudes próprias. Cativantes, todas elas.

Para quem está curioso, informo que esta sinopse é das poucas que não mentem: há mesmo mistério, acção, romance. Ninguém está totalmente desprovido de culpas, ninguém é cem por cento mau, todos têm segundas intenções, ninguém é o que parece. Preparem-se para muitos twists, muito peito apertado, muito suspense, muita angústia. Senti tudo isto – polvilhado com risos difíceis de disfarçar – conforme lia. A autora arrancou-me todas essas emoções, imergiu-me desse modo tão eficaz numa trama tão impensada.
Para quem vai ler agora, respondo às dúvidas que tive na primeira centena de páginas, quando via que só se falava dos segredos da Andrea, do Danton, da Anne. Quem seria esta gente? Porque não falariam eles no doce Pierre? Acreditem; o Danton será tudo o que vos interessa e reúne todos os ingredientes que considero essenciais a uma boa personagem (sobretudo masculina). Aquela perturbação, aqueles impasses, o redimo-me ou não? O – há alguma coisa de que me redimir? – conquistaram-me de todo.
Obrigada Liliana, estou chocada com a quantidade de talento e capacidade numa escrita que, em retrospectiva, é ainda bem jovem e tem muuuuuuitos anos de literatura para nos oferecer.
Next: Fantasmas de Pedra?

Sinopse: “Todos ficam sujos de sangue e há sempre alguém que morre.”  Este é o lema de Danton. Filho de dois poderosos feiticeiros, inimigos de séculos, a existência de Danton é apenas mais um golpe de guerra entre os pais. Criado e aperfeiçoado por Amauri e Goulart, é temido por todos, incluindo os próprios. Em Lisboa, uma misteriosa Caixa detém um poder que a família Santa-Bárbara guarda há gerações. Isadora é a última descendente de uma linhagem de Paladinos, herdeira solitária de um império cultural e um legado que desconhece. Ela e o tio, Garrett, são tudo o que resta para proteger este grande segredo. Mas Danton está decidido que é chegada a hora do poder da Caixa lhe pertencer, e as vidas dos Santa-Bárbara vão alterar-se para sempre. Feitiçaria, magia, segredos e uma história de amor inesquecível, percorrem alguns dos lugares mais conhecidos de Lisboa e a zona mais sinistra de Paris. O passado colide com o presente e tudo acontece… mas não como todos esperam.

sábado, 20 de julho de 2013

#34ª Maratona Literária

Para a 34ª Maratona Literária

27 de Julho à 00h00 e termina dia 4 de Agosto às 23h59

Conto:

Avançar o máximo possível no Conde de Monte Cristo
Acabar este (literalmente) Inferno

Intercalado com este pequeno volume do meu adorado Claudel

Com esta obra promissora

E esta história que se adivinha perturbadora


Terminar de ler o meu "Funeral", para que possa comentá-lo em retrospectiva
E mergular no Maria Antonieta que, sendo do Zweig, é certamente de qualidade.


Ó Nosso Senhor dá-me forças para ler isto tudo, preciso desesperadamente de despachar volumes da prateleira!


terça-feira, 16 de julho de 2013

#95 CORTÁZAR, Julio, O Jogo do Mundo


Opinião: Eu quis muito apaixonar-me por este livro. Vivê-lo, digamos assim. La Rayuela, capítulo 7. Na voz de Julio Cortázar, senti a boca cheia de flores ou peixes enquanto beijava um grande amor. É o meu pedaço favorito de literatura de sempre. Por muito que o livro não seja o meu favorito, essa preciosidade é. É um livro intimista, todo ele poderia passar-se dentro da cabeça (conturbada) do Oliveira, que deambula nas ruas de Paris. São pessoas complicadas, o Oliveira, a Maga e o Clube da Serpente, que discutem questões literárias. Abrem uns quantos debates nesta área e apresentam-nos Blues de excelente qualidade. É um retrato intimista de uma pobreza que o não é de mente. Nus de personagens poderosas, multidimensionais, que tocam e mudam e aconchegam a vida uns dos outros. Um estilo narrativo difícil, volátil, com rasgos de genialidade. Amei de paixão cerca de 75% do livro, mas a retirada de uma das minhas personagens favoritas da acção originou uma cisão na leitura. Voltei a pegar-lhe hoje, sem saber que o terminaria de enfiada. Pareceram-me quase aborrecidos e entediantes estes últimos capítulos. Mencionei a existência de uma chave para ler o livro? Cap. 2, cap. 141, ca. 3, cap. 110, cap. 4., etc. Li-o como sugerido pelo autor, sem saber em que pé da narração me encontrava. Não há um princípio-meio-fim. O capítulo 56, o último da estrutura “convencional”, foi um esvoaçar de páginas, passei-o na diagonal, um pouco entediada. É difícil mantermo-nos à tona num livro como este, que por vezes roça a genialidade absurda. Mais tarde, com outra maturidade, tentarei buscá-lo de novo e, quem sabe, todo ele me saiba a mel.
Por agora, não foi o momento certo. Cortázar merece-me a 100%, e eu andei a meio gás.

Julio Cortázar é um grande nome da literatura Argentina. Publicou "La Rayuela", ou o Jogo do Mundo em 1963 e o livro continua a encantar jovens mundo fora. Segundo as palavras do próprio, esta obra foi incompreendida pelo público a que pensou que pudesse dirigir-se. Foram os jovens, esses sim, a captar-lhe a essência e a deixarem-se fascinar pelo seu conteúdo. Também admitiu que dificilmente consegue escrever sobre o indivíduo a sós em si próprio. Escrevia sim sobre grupos, círculos, e sobre as suas interacções. O papel do todo perante cada um e o que o "eu" é face ao todo.

Os Gotan Project, que misturam a sofisticação francesa com o tango argentino, têm uma homenagem musical ao capítulo 7 desta obra.

Sinopse: O amor turbulento de Oliveira e da «Maga», os amigos do Clube da Serpente, as caminhadas por Paris em busca do Céu e do Inferno, têm o seu outro lado na aventura simétrica de Oliveira, Talita e Traveler, numa Buenos Aires refém da memória.


A publicação de «O jogo do mundo» (Rayuela) em 1963 foi uma verdadeira revolução no romance mundial: pela primeira vez, um escritor levava até às últimas consequências a vontade de transgredir a ordem tradicional de uma história e a linguagem usada para a contar. O resultado é este livro único, cheio de humor, de risco e de uma originalidade sem precedentes.
Considerado o romance que melhor retrata as inquietudes e melhor resume o Século XX na visão latino-americana do mundo, desde a sua publicação, gerações de escritores são, de uma maneira ou de outra, devedoras de «O jogo do mundo».

Classificação: 4****/*