segunda-feira, 28 de maio de 2018

#192 HARPER, Jane, A Seca


Opinião: A Seca é o romance de estreia de Jane Harper, mas isso já vocês sabem. Para mim, o interessante aqui é tratar-se de um romance estilo policial escrito por uma mulher, e ser, de facto, um livro muito bem conseguido. Isto é: parabéns às mulheres, que por fim se têm afirmado em campos tradicionalmente masculinos. De repente, temos uma série de policiais de grande sucesso escritos por punhos femininos. Destaco o óbvio: Em Parte Incerta, que adorei.

De início tive dificuldades em entrar na escrita. Pareceu-me prenhe de pormenores desnecessários. Entretanto tornou-se melhor, e começou a manifestar-se aquele nervosismo de querer regressar à história e às suas páginas, por isso, aí pela página 100-120, já estava rendida. 

A pergunta que ressoa na cabeça do leitor, como na dos investigadores, é: Terá Luke realmente enlouquecido e chacinado a própria família, tendo-se suicidado de seguida? Se sim, porquê? Se não, quem terá sido o autor de tamanha monstruosidade?

O livro tem Aaron Falk como personagem principal, porém o seu trabalho como agente federal prende-se, sobretudo, com crimes financeiros. A sua permanência em Kiewarra deve-se ao facto de o homem acusado de ter trucidado a família, antes de se suicidar, ser o seu grande amigo de infância. Aaron e Luke já não eram próximos há muito, mas o passado de ambos, a partida a abrupta de Aaron daquela pequena comunidade e o suicídio/assassinato de uma jovem há vinte anos, unem-nos numa teia de suspeita. A investigação de Aaron em conjunto com Raco, o chefe da polícia local, não tem por base nenhuma pista que não a incredibilidade dos dois homens perante o cenário macabro. A conclusão da polícia fora a de que Luke se suicidara após matar a mulher e o filho, devido às dificuldades causadas pela seca. Raco encontra pequenas incongruências na narrativa, e Aaron não está certo de que o seu grande amigo de infância fosse capaz de tal atrocidade. Mas também não está seguro de ainda o conhecer, pelo que todo o romance é sustentado por dúvidas e rasgos de esperança.

A principal riqueza do livro são as personagens. Aaron destaca-se como um agente inteligente, firme, mas o livro não é esporeado por momentos Eureka!. A investigação dá-se com naturalidade, sem rasgos de brilhantismo, e é trabalho de equipa. Por esse motivo, apaixonamo-nos por grande parte das personagens, pela sua história de vida. Os pais de Luke são o retrato da família plena de amor, agora destroçada. Mal e Don Deacon são dois homens irascíveis, moldados pela dureza das circunstâncias. Gretchen é a amiga que sobrou da adolescência, com quem Falk poderá revisitar o seu passado sob bicicletas nos caminhos de acesso ao rio Kiewarra. McMurdo é um descendente de escoceses que acabou naquele fim do mundo, a embebedar os locais noite após noite no seu pub, e a escutar as ofensas grotescas dos bêbedos. Todas as personagens contam, e o puzzle é extenso, intrincado, complexo.

O mistério é resolvido devido a um oficial atento. A teoria que eu tinha alinhavado desde o início não se concretizou, o que é óptimo e adicionou o elemento imprevisível ao livro. As últimas páginas são, como é costume no género,sorvidas sem pausas para tomar fôlego.

Se Aaron Falk voltar a estar envolvido em investigações - e parece que já está, em Force of Nature -, serei sua seguidora atenta. Basta que o publiquem em Portugal, para poder arrumá-lo na estante ao lado deste primeiro volume. Ao contrário de A Rapariga no Comboio, que encerrou a autora por ali para mim, Jane Harper conquistou o meu interesse.

O cenário devastador da Austrália rural e sujeita às intempéries, e de uma pequena comunidade a sobreviver nessas dificuldades, recordou-me também a mesquinhez e o azedume - pontilhado do humor aguçado - de A Modista. Só vi o filme - uma, duas, já três vezes. Talvez A Seca me leve a ler esse livro também. Dei-me conta de que a Austrália é o cenário perfeito para se esmiuçarem passados conturbados na literatura.

Em resumo, aconselho a leitura a quem quer um policial elaborado, que foge à linha industrial da construção do género. Isto é, sem serial killers nem psicopatas. Apenas pessoas calejadas, fragilizadas, sob pressão, e por isso perigosas.

Sinopse: No calor sufocante do deserto, uma pequena vila é abalada por um crime inexplicável. Luke Hadler, filho da terra e amado por todos, matou brutalmente a mulher e o filho, tendo-se suicidado em seguida. Dos alegres retratos de família apenas sobreviveu a pequena Charlotte, de 13 meses.
Ninguém parece duvidar da explicação oficial para o crime exceto os pais de Luke, que tentam convencer o amigo de infância do filho, Aaron Falk, a manter a mente aberta a outras possibilidades. 

Aaron está relutante. Após anos de ausência, o regresso à terra natal está a revelar-se duro mas as memórias da infância partilhada com Luke falam mais alto. Embora dividido, ele aprofunda a investigação e, pouco a pouco, começa também a duvidar da acusação que paira sobre a honra do amigo. Mas há algo ainda mais assustador: estas mortes ameaçam desenterrar o velho segredo que ditou o fim da inocência de Aaron e Luke tantos anos antes. Sob um sol escaldante, a claustrofóbica vila assolada pela seca pulsa de tensão. Se Luke é inocente, estará o culpado pela morte da sua família a viver entre eles? Todos se conhecem e ninguém seria capaz de semelhante atrocidade. Certo?

Classificação: 4/5*****

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