quarta-feira, 11 de julho de 2012

»resposta à Carla sobre "como dar continuidade a uma obra...?"



Resposta a um pedido muito querido que me chegou:

Olá Carla,


Não me esqueci do teu pedido – até me senti toda importante por me procurarem para conselhos dessa espécie, logo eu, que ainda sou uma novata nestas andanças.

A principal dúvida que me colocas é o que deves fazer para começar e terminar uma “obra”. Eu responderia “degrau a degrau”. Isto é, quando eu conhecei a escrever tinha doze anos. Houve qualquer coisa na minha vida – uma paixoneta tola – que me deixou indignada, e eu quis poder mexer com ele. Manipulá-lo, ficar com ele, castiga-lo. Então peguei em papel e caneta e escrevi uma história com quê… doze páginas e muitos desenhos pelo meio? – onde ficávamos juntos e felizes. E isso descansou-me. Desde aí, sempre que qualquer coisa mexe comigo, ou não é bem aplacada dentro de mim – absorvida, cimentada – eu pego na escrita para a aplacar, a fim de continuar a viver em paz. É o meu modo de compreender as lições. As primeiras histórias que escrevi tinham doze, vinte, quarenta páginas. Fui crescendo aos poucos. Da primeira vez que ultrapassei as cem páginas parei nas cento e vinte, pus um ponto final na história e fiquei louca de orgulho em mim mesma, porque tinha sido um trabalho moroso. Foi em papel – num dossier daqueles que nos oferecem no 6º ano aquando dos primeiros ensinamentos sobre o sistema reprodutor, o período, gravidezes, etc. Guardei-a aí e andava com ela para onde ia. Riscava aqui e corrigia ali. Hoje olho para ela e penso: que coisa vergonhosa, que letra medonha, tantos erros frásicos, gramáticos, etc… Mas sabes que mais? Ela foi necessária. Porque foi um degrau. Meti-lhe o pé em cima e cheguei a outra maior, melhor elaborada. Peguei nos erros dela e distorci-os para algo maior, corrigi-a em algo melhor.

Também tu, Carla, certamente que poderás conseguir essa evolução para ti mesma. A sociedade pressiona um bocado hoje em dia – para seres bom em qualquer coisa, tens que ser reconhecido e precoce. O que te aconselho é uma vida de paz e tranquilidade em torno da escrita. Procura inspiração – a minha é, de longe, a música. Quando leres o Demência, hás-de sentir a Para Sempre dos Xutos, a Unforgettable do Nat King Cole e, nos momentos solitários da Letícia, ouvi muito a Mother’s Journey do Yann Tiersen (banda sonora do Goodbye Lenin!). E então a música é como a personagem na minha cabeça, mais do que isso, estava sempre comigo. Ouvia a música e as nuances dela é que ditavam o que ia suceder. Há muitas técnicas, Carla – técnicas que não pesquisei, nem investiguei, porque quando dei por mim já queria fazer algo meu, algo que saísse de mim, ainda que corresse o risco de colidir com o trabalho de tantos outros que possam ter pensado igual.

Geralmente, pego em duas personagens invulgares – é o que gosto mais, ou personagens invulgares, ou momentos-chave nas vidas/história. Por exemplo – eu queria uma velhinha com Alzheimer e a Olímpia nasceu na minha cabeça. Eu andava meio preguiçosa nessa altura (2009) e demorava dois/três anos a escrever um romance. Então adiei o despeja-la no papel, até porque, tal como dizes, começava muitos projectos que simplesmente não terminava. Mas ela flutuava-me na cabeça e ocorriam-me inúmeros episódios que queria relatar a seu respeito. Ela escrevia-se recadinhos, sabes? Eu sabia disso muito antes de escrever a primeira frase do livro. Ela tinha tido uma vida difícil… O Demência foi deixado a meio gás de 2009 até ao início de 2011, altura em que peguei nele pelos cornos e o terminei em Julho. Mas eu sabia que ele tinha potencial – porque a história era boa, o enredo era bom (desculpa a vaidade, mas eu estou a perder a imaginação e o Demência foi, até aqui, o meu melhor enredo. Duvido que volte a sair-me da cabeça um tão bom. Quando o li foi como uma estranha – e arrebatou-me, por muito esquisitinha que seja com o que leio e, mais ainda, com o que escrevo. Por isso, descobre algo sobre o qual valha a pena falar. Algo que te indigne – que mexa contigo. Pode ser a tua imaginação – pode apetecer-te criar mundos paralelos, mas aí os limites são nulos. Pensa numa linha geral – não tentes cingir o romance todo na cabeça, porque os romances, nas mãos dos escritores, são coisas imprevisíveis que se reviram e tomam novos rumos quando menos esperados. Têm vida própria, pelo menos os meus.

Quando me vem um bloqueio, eu desvio-me para a periferia do romance. Isto é, imagina – tu tens duas personagens principais e estás a mil com elas. Entusiasmada, achas que o rumo deles é óptimo. E então chegas a um beco – pum! É o que me aconteceu agora com as personagens principais do 1809 – houve uns amassos, os tão esperados amassos há 300 páginas adiados, e agora? Pronto, já se entenderam mais ou menos. E agora, vou onde? Faço o quê? A minha visibilidade da história morreu ali… Ou teria morrido, se eu não tivesse deslocado o romance para a sua periferia. Isto é, peguei noutro dos seus ângulos. Noutra personagem. Consegui até incluir estes dois noutro cenário – que não o contemplar entontecido um do outro – e moldei mais um bocadinho da personagem dele. Sim, dele, neste caso. Mas sabes que mais? Eu não os descrevi. Não disse “era arrogante”, “era bondoso”. Não, não. As personagens (as minhas, ao menos, se é a mim que pedes opinião), nascem e conquistam o seu próprio livre arbítrio. Ah pois é. São tão voláteis, tão inconstantes, tão indecisas, tão errantes quanto qualquer humano… Têm vários lados da moeda, não são brancos nem pretos – sempre adorei esta metáfora e a Andreia Ferreira lembrou-me dela ontem. O Gabriel tem um papel crucial para reencaminhar a vida da Letícia para melhor, mas também foi responsável por muitos dos males do passado… saberás quando leres. A Letícia sofreu, sim, pois. Mas no fundo não estava assim tão inocente daquilo que o marido a acusava, pois não?

Aconselho-te a jogar com a subconsciência das personagens. Mete-os em mar aberto, a desviarem-se em direcção às rochas sem se darem conta. Entretanto descreve o muito que apreciam as paisagens da ilha a que aportam. Fá-los acordar para a sombra no último momento. Ou fá-los não acordar – culpa deles, não estavam atentos!
Pega em ti – nas tuas mudanças de atitude, de humor, na tua evolução como pessoa. Pega em pessoas, ilustra-as, que façam promessas e as quebrem. Que façam viagens enormes e desistam no final. Oh, muda-lhes as ideias, muda o rumo da história. Dá uma guinada no enredo a cada vez que fuja para o lugar-comum. Surpreende-te – porque, acredita, um livro é qualquer coisa de manipulador dentro de ti, exige-te a tempo inteiro, recusa a dar-se a ti quando mais precisas de expulsá-lo, e vai crescer como um filho rebelde que não é nada do que julgaste ao início. No fim, siga o caminho que seguir – acabe por ser homossexual, ter tatuagens e piercings – ama-o e orgulha-te dele.
Querida Carla, espero ter-te ajudado na tua demanda por método e ordem – ui, lembrei-me o Poirot. Método e ordem não os há, porque dar origem a uma criatura como um livro é um trabalho de inconstância e de imprevisibilidades. Agora consigo disciplinar-me melhor, mas isso não nasceu do dia para a noite. Tenho dezenas de projectos começados e nunca acabados, dois ou três romancezinhos de cento e poucas páginas só para expelir a vontade de crescer sem que um grande enredo me assomasse à mente… Só uma ideia fixa, em torno da qual as cem páginas giram, dançam, convergem para conclusões simples.
Segue o teu coração – na escrita também. Os teus medos, os teus receios, os teus palpites, instintos. Funde-te nas personagens e vive a vida deles – deixa a própria vida vir e tirar-te o tapete debaixo dos pés. Descreve a sensação de vertigem. Ri-te e chora por eles, com eles, em vez deles.
Que mais posso eu dizer? Para ser honesta, nunca tinha reflectido muito sobre o assunto.
Espero ter-te ajudado na tua demanda e espero vir a ver o teu nome CARLA, antes do meu nas prateleiras das livrarias… Ups, os malvados metem por sobrenome!


Beijinhos

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