quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

#144 AMADO, Jorge, Capitães da Areia

Sinopse: Capitães da Areia é o livro de Jorge Amado mais vendido no mundo inteiro. Publicado em 1937, teve a sua primeira edição apreendida e queimada em praça pública pelas autoridades do Estado Novo. Em 1944 conheceu nova edição e desde então sucederam-se as edições nacionais e estrangeiras, e as adaptações para a rádio, televisão e cinema. Jorge Amado descreve, em páginas carregadas de grande beleza e dramatismo, a vida dos meninos abandonados nas ruas de São Salvador da Bahia.

Opinião: Em Setembro de 2014 fui a Salvador da Bahia. Esperei muita coisa do Brasil e da América do Sul, mas esqueci-me da literatura. Isto é, a minha ideia estava toda errada: no meio da pobreza, e que não é pouca, há uma beleza pulsante, uma bondade comovente por entre as dificuldades e a emergência de um orgulho triste, o que advém de amarmos a terra que sabemos condenada. Parece que na Terra vem tudo em dois punhados: algo de bom e algo de mau, e a beleza é o que emerge do modo como o povo joga com estas duas energias.
Quando leio romances sul-americanos, fico sempre assombrada por quanto Gabriel García Márquez, Isabel Allende e agora Jorge Amado extraem destes solos. Atenção que a Isabel, assim como a Laura Esquível, além de excelentes romancistas que retratam os costumes da sua gente… Mas há algo de visceral na escrita do Garbo e do Amado. Sem dúvida que Jorge Amado é para seguir.
Dizia que, em Setembro de 2014, fui a Salvador da Bahia. Podem ler sobre isso aqui:http://levoyageenrose.blogspot.pt/201.... Fiquei no Pestana Bahia, que é um cinco estrelas com avisos sobre a bicharada que pode entrar pela janela à beira da praia do Rio Vermelho. Na altura, alguém disse que aquela era a praia dos Capitães da Areia. Não sabia quem eram os Capitães da Areia e agora, depois de ler sobre as suas aventuras, jamais poderei deixar de os associar ao modo como a noite caía nesse areal no Hemisfério Sul.
Jorge Amado foi bacharel em Direito, por isso um “dotôrzinho”, oriundo de um mundo a léguas de distância do areal dos Capitães da Areia. Para vos situar: os Capitães da Areia são os órfãos, as crianças maltratadas, os negligenciados, ignorados e esquecidos de Salvador da Bahia. Unidos sob a capitania de Pedro Bala, um moleque de 15 anos, formam os Capitães da Areia: primeiro um bando de ladrões, depois uma tropa de choque a favor das greves dos pobres, quando o seu capitão descobre que o próprio pai era estivador e morreu em greve pelos direitos dos seus.
Cada um dos Capitães da Areia tem uma história de abandono, violência e sofrimento. São felizes na liberdade, mas procuram o seu rumo: Gato é feliz com a brilhantina no cabelo e os sapatos engraxados, e dorme com Dalva, uma prostituta pelo menos duas décadas mais velha do que o menino. Sem Pernas foi sovado e humilhado pela polícia por ser coxo, vive no terror de voltar a ver-se nessa vulnerabilidade, e por isso se torna o mais arisco de todos, embora também ele não seja imune a rasgos de verdadeira humanidade. Professor quer ser pintor: dá cabo dos olhos à luz das velas, no trapiche, a passar em revista os livros a que consegue deitar a mão, e a lê-los para os outros capitães. João Grande é um preto enorme, que chamam de burro mas que é aquele cujo coração e a moral parecem mais intactos. Pirulito tem vocação religiosa; influenciado pelas palavras amigas do Padre José Pedro, que é contra meterem os meninos no reformatório da cidade, onde apenas receberiam surras e passariam fome, sonha em vir a trajar uma batina. Tantos outros, entre os quais surge Dora, uma menina cuja mãe sucumbiu à epidemia de varíola no seu morro, e que se junta aos meninos, tão corajosa quanto eles, e vira a primeira Capitã da Areia. Mas nem todos são felizes sem mãe, sem família, sem um carinho na cabeça, um aconchego na hora de se irem deitar. Nem todos são felizes deitados por entre os ratos, escondidos da polícia e do reformatório, a aplicar golpes em quem tem mais do que eles, a enganar os marinheiros com baralhos marcados no cais, a recolher níqueis por desenhar a giz na calçada da cidade e a recorrerem às macumbas da Mãe de Santo, don'Aninha sempre que um menino cai doente.
Os ideais comunistas pulsam aqui, pelo que não é de estranhar que o livro tenha sido aprendido após o seu lançamento, em 1937, e queimados cerca de 800 exemplares em praça pública. Mas não é apenas a política que mexe com a sociedade baiana nessa época: Jorge Amado foi mais longe. Falou de pederastia, de sexo, de sodomia, de oficiais malvados e de directores de reformatórios ambiciosos e cruéis. Tudo isto ofendeu a época… O rico na abundância e o pobre descalço, no morro. O rico com a sua vacina para a varíola e o pobre no terreiro, a suplicar a Omolu pelas vidas dos seus que caem de bexiga…
Infelizmente, o Brasil ainda não mudou tanto assim desde este retrato de desigualdade que Jorge Amado nos presenteia.É um dos livros mais belos que li na vida, de heroísmo, amadurecimento, bondade e injustiça. Espero que o Brasil encontre o seu caminho rumo ao bem-estar do seu povo, para que os corruptos sejam afastados, o povo deixe de morrer nas urgências da saúde pública e a média de assassinatos em brigas em Salvador deixe de ser de 18 pessoas por semana, como era em Setembro de 2014.
 
Classificação: 5/5*****

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