"- Não tens a impressão de ser um criminoso, pois não?- Não - disse eu. - Quando estou contigo não tenho.- Tu és um rapaz sem juízo - disse ela -, mas hei de olhar por ti. Não é esplêndido, querido, que eu nem sequer sinta náuseas pela manhã?- Estupendo!- Tu não sabes apreciar a esplêndida esposa que tens. Mas não me importo. Hei de arranjar um lugar onde não te possam prender, e então seremos muito felizes. - Vamos já para lá!- Sim, querido. Irei para onde quiseres e quando quiseres.- Não pensemos em nada.- Está bem."
Opinião: Ernest Hemingway nasceu em Julho de 1899, perto de Chicago. Com apenas 19 anos, conseguiu que o exército italiano o aceitasse nas suas fileiras, no contexto da I Guerra Mundial, ocasião em que foi condutor de ambulâncias para a Cruz Vermelha. Por essa altura, terá vivido um amor - possivelmente o seu primeiro amor -, com a enfermeira Agnes von Kurowsky. Tudo isto parece ser a matéria-prima de O Adeus às Armas, volvidos dez anos. Tal como o próprio autor, a sua personagem principal, Frederic Henry, é condutor de ambulâncias no exército italiano, pelo que Hemingway pôde pôr a uso o seu conhecimento da realidade, cultura e particularidades dos italianos (creio ter lido algures que Hemingway dizia apenas escrever sobre aquilo que conhecia bem.).
A senhorita Von Kurowsky, que terá abandonado o nosso jovem autor por outro homem, será a provável inspiração para a enfermeira escocesa Catherine Barkley, com quem Henry se envolve com a guerra como pano de fundo. Também este detalhe tem um fundamento na vida do autor, e ajuda a conferir realismo à narrativa: O Adeus às Armasnão tem nada de heróico ou de épico, é apenas o conto de um punhado de humanos enleados na complexa - e incompreensível - teia da guerra e nas provações práticas da mesma (longe das politiquices).
A primeira obra que li de Hemingway foi Na outra Margem, entre as Árvores, publicado em 1950, quando Hemingway tinha 51 anos e, portanto, uma perspectiva diferente (apurada) da guerra, do amor, das mulheres. Considerei-o machista, misógino, aborrecido. Detestei-lhe os diálogos - por um lado povoados daquela pouca coesão caraterística da comunicação oral, por outro lado desconexos ao ponto de me exasperarem. Neste último, conheci um Hemingway com 30 anos, menos cínico, menos áspero, com um toquezinho subtil de humor, mas já com a mesma carga pesada, lúgubre, que parece ser o seu cunho em cada obra.
Neste livro, compreendi-o melhor. Compreendi que um rapaz de 18, 19 anos, partiu voluntariamente para o horror de um conflito Europeu, a um oceano e a um mundo de distância, onde sofreu um ferimento que lhe cravou mais de 200 estilhaços no joelho. Não consigo imaginar o susto, a alienação. Tão longe de casa, rodeado de estranhos, cheio da energia da juventude e, no entanto, metido numa cama de hospital. Surge a enfermeira bonita, estrangeira. É tudo muito exótico, ainda para mais o rapaz sobreviveu, está apaixonado e ela retribui. Deve sentir-se invencível, imortal. De repente ela foge com outro. Ele é devolvido ao teatro de guerra. Uma vez terminado o horror, volta a casa com os seus fantasmas, e encontra a América prestes a atirar-se aos loucos anos 20. Tem a cabeça cheia de obuses, de disparos, de baionetas e de granadas, da lama das trincheiras e dos clarões de artilharia, mas ao seu redor estão todos a dançar o foxtrot.
Resultado? O capitalismo é nojento. As mulheres umas levianas desmioladas. A guerra é tudo o que conhece, e nela há-de debruçar-se uma vez e outra, e ainda assim a guerra nunca faz sentido, em livro algum que escreva. Tudo o que Hemingway sabe é que entra-se na guerra com tudo o que se é e com tudo o que se tem, e que se sai dela despojado de si mesmo. A guerra engole tudo. Engoliu-o, mastigou-o e devolveu-o a um mundo que lhe era estranho e no qual ele se sentia um alienado. Moldou-o para sempre. Não será por acaso que se suicida em 1961, depois de uma vida de controvérsia, suposto abuso de álcool e alguns escândalos. Gostava de gatos - não me posso esquecer que Hemingway gostava dos místicos felinos, que têm tão pouco de bélico.
Gostei muito desta narrativa de guerra, e os diálogos (que ainda assim, por vezes, me parecem repetitivos e sem nexo) são ligeiros e ajudam a avançar nas páginas. Julgo que uma das principais críticas a este romance é que o amor entre Henry e Catherine parece supérfluo. Acabei por (julgar) entender que na guerra se está tão sozinho, mesmo quando rodeado dos "rapazes", que não é difícil apaixonarmo-nos. Fazer planos para os tempos de paz. Estar-se com alguém, na guerra, é como a ilusão de que talvez haja um pouco da nossa essência, do nosso lado emocional, que pode ficar salvaguardado dos horrores quotidianos.
O final tocou-me, validou o romance, principalmente porque o livro segue um mesmo tom, sem grandes altos e baixos mesmo nos momentos de suposto climax emocional. Creio que Hemingway dirigiu muito bem o tom nesses acontecimentos finais. No fim, a sensação com que se fica é que é a guerra. E não se pode fugir da guerra. Mal ele sabia que a guerra ainda havia de persegui-lo por mais 30 anos, até um tiro ir, por fim, alojar-se-lhe na têmpora.
Classificação: 4,5/5*****
Sinopse: "O Adeus às Armas", muito provavelmente o melhor romance americano resultante da experiência da Primeira Guerra Mundial, é a história inesquecível de Frederic Henry, um condutor de ambulâncias que presta serviço na frente italiana, e da sua trágica paixão por uma bela enfermeira inglesa. O retrato franco e sem falsos pudores que Hemingway esboça da ligação amorosa entre o Tenente Henry e Catherine Barkley, arrastados pelo inexorável turbilhão da guerra, brilha com uma intensidade sem paralelo na literatura moderna, e a sua descrição do ataque alemão ao Caporetto – com as intermináveis filas de homens a caminhar à chuva, esfomeados, exaustos e desmoralizados – é decerto um dos grandes momentos de sempre de toda a história literária. Romance de amor e sofrimento, de lealdade e deserção, O Adeus às Armas, escrito quando tinha apenas trinta anos, é uma das obras-primas de Ernest Hemingway.
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