quinta-feira, 3 de maio de 2012

#30 LOUREIRO, Célia Correia - Demência


Sinopse: No seio de uma aldeia beirã, Olímpia Vieira começa a sofrer os sintomas de uma demência que ameaça levar-lhe a memória aos poucos. A única pessoa que lhe ocorre chamar para assisti-la é a sua nora viúva, Letícia. Mas Letícia, que se faz acompanhar das duas filhas, tem um passado de sobrevivência que a levou a cometer um crime do qual apenas a justiça a absolveu. Perante a censura dos aldeões, outrora seus vizinhos e amigos, e a confusão mental da sogra, Letícia tenta refazer-se de tudo o que perdeu e dos erros que foi obrigada a cometer por amor às filhas. O passado é evocado quando Sebastião, amigo de infância de Olímpia, surge para ampará-la e Gabriel, protagonista da vida paralela que Letícia gostaria de ter vivido, dá um passo à frente e assume o seu papel de padrinho e protector daquelas três figuras solitárias…

Opinião: Ontem terminei - a tarde e más horas - a leitura do meu primeiro romance editado. Este Demência foi um trabalho descontínuo desde 2009, e foi culminar em cento e qualquer coisa páginas escritas de um sopro em Julho de 2011. Antes de o escrever, tinha uma ideia diferente para ele. Lembro-me de ir trabalhar para Lisboa, em 2007, a remoer a ideia de uma professora loira e baixa chamada Lavínia, que carregava uma filha pequenina no colo e que era ignorada pela pequena aldeia onde vivia - a aldeia da minha avó, que tão bem conheço - por ter sido obrigada a salvar-se das maldades de um marido alcoólico e violento. Lembro-me também de carregar na ideia uma idosa sem memória, muito à imagem da minha bisavó paterna, que perdesse capacidades a olhos vistos. E depois em 2009 surgiu a ideia de as juntar a ambas, num enredo em que seria impossível entenderem-se mutuamente. A sogra detesta a nora - apenas está esquecida disso metade do tempo. E lembrei-me de polvilhar isto com duas crianças inocentes, mas espertas, um velhote adorável (que é a minha personagem favorita, a par com um o Gabriel), e um professor céptico, inteligente e ligeiramente mal-humorado.

Agora que acabei de ler o livro como leitora, fiquei fascinada. Apesar das gralhas ocasionais - lamento a revisão do livro, deixou um pouco a desejar mas a verdade é que tanto eu como a editora trabalhámos incansavelmente para alinhavar essas falhas. Falhas de quem escreveu metade em 2009, a um ritmo, e a segunda metade a um ritmo bem mais acelerado em 2011. Sou muito exigente com o que leio, tanto como com o que escrevo, e a história venceu-me outra vez, e vencer-me-ia sempre mesmo que não fosse da minha autoria. Fui eu que a escrevi - mas mais do que um eu, Célia, fui eu, portuguesa. As palavras com que me expressei são aquelas, não foram traduzidas nem seleccionadas pela editora. São mesmo aquelas - desconcertantes, por vezes, duras, cruas, comoventes, descritivas, desoladoras. São aquelas e não outras.
 Apercebi-me de várias nuances do enredo que nem eu própria tinha tido noção de ter criado. Estou apaixonada com a complexidade do romance, com o puzzle subtil que se forma e que faz sentido no final, estou orgulhosa do modo como tudo se entrelaça e não há pontas soltas.

É um enredo sobre fé - não me tinha apercebido disso - e sobre sacrifícios a todos os níveis. Sobre os motivos pelos quais as pessoas são levadas a acreditar numa asserção, ou escolhem acreditar nessa asserção. Os motivos podem ser condicionados, inconscientemente, pelo próprio empirismo, pela racionalidade, pelos estereótipos, pelos preconceitos, pelas ideias pré-concebidas, pelo nosso próprio conhecimento, tantas vezes ignorante ou insuficiente, dos outros e dos factos. Neste livro há muita gente a formar ideias só porque parecem a mais plausível. O que não significa que esteja correcta. As circunstâncias obrigam a que se adopte determinada versão de um facto, de uma verdade incontornável, e a humanidade de cada um cimenta-a e acarinha-a, de modo quase irredutível. Deu-me um prazer enorme alterar estas certezas, assim como me deu agora desmantelá-las ao ler. Sou obrigada a concordar que criei personagens humanas, quase palpáveis. A complexidade das histórias pessoais, tão ricas, os passados arrastados ao longo de décadas, de metades de século. As expectativas de vida - tantas vezes goradas - os afectos que se acalentam e que ou triunfam ou dão em nada, um quê de romantismo nu, cru, presente apenas na medida em que se ama com mãos e alma rudes. 

Não consigo ir para o goodreads classificar o meu romance com cinco. Não posso dar-lhe cinco. Como mãe que o deu à luz, não me compete a mim clarividência para avaliar as qualidades do meu rebento. Mas, se me distanciar, posso dizer que lhe daria um 4,5 sólido. Não lhe daria o cinco por um motivo plausível: tendo sido eu a mão criadora, tenho consciência de tudo aquilo que gostaria de mudar. É deste 0,5 que não me consigo distanciar, como mãe. Mudar, mudar, apetece-me criar mais situações, voltar a pegar na Olímpia, na Letícia, nas miúdas, no Sebastião, no Fernando, no Gabriel, na Pilar e no Pedro e criar novos diálogos, novas interacções. Pôr os meus autómatos a caminhar em plena aldeia, a ofenderem-se, a amarem-se, a apoiarem-se e a apedrejarem-se. Ontem tive até desejo de pegar num núcleo qualquer e criar uma segunda parte da história.

Quem sabe as memórias da Olímpia, escritas pelo Sebastião? Quem sabe pôr um obstáculo no casamento pontuado de fé da Pilar e do Pedro? Ou fazer crescer a Luz e conceder-lhe a sua própria história?

Enfim, são tudo quimeras porque tenho outros projectos pela frente. Mas deu-me um prazer enorme escrevê-lo e é agradável saber que, quando estou com pouco apetite para leituras, é o meu pequeno (não assim tanto) Demência que me pisca o olho da estante e é ele que me distrai. As páginas voam - como leitora, que bebe as palavras que lê, e não como a escritora que lhes deu voz - nas minhas mãos.

Espero que quem quer que o leia retire este mesmo prazer dele. E que se recorde que o escrevi entre os 19 e os 21 anos. Tenho toda uma vida pela frente para conquistar, para mim própria, mais 0,5 pontos.

1 comentário:

  1. Olá, não fazia que a Célia, era esta Célia!!! Estou muito curiosa com o seu livro e vou ler!! beijinhos e muito sucesso

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