Sinopse:1975 Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos não têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles.
1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe.
Opinião: Que sei eu de África, além de que o meu avô era Angolano (do lado dos pretos, não do lado dos brancos que viviam em Angola)? É uma questão delicada, esta. Sempre tive uma perspectiva limpa, moralmente correcta – a dita esperada das democracias modernas que reconhecem a supremacia de cada Estado. Depois de ler este livro fiquei um bocado abalada nestas minhas convicções. Não acredito que a autora se tenha proposto a mudar a ideia de um qualquer português que nasceu no continente pós-guerra colonial e que enche o peito para dizer: quem nos mandou explorar os africanos? O continente é deles, o país era deles. Só fomos para lá fazer figura de ursos, perder pernas e braços para nada. O país, concluo agora, esqueceu-os a todos. Aos que perderam a terra – ditos Retornados – e aos que perderam os braços, os militares que trilharam as selvas e enterraram os companheiros de batalhão num qualquer recanto impensado da imensidão do desconhecido.
Neste livro da Dulce Maria Cardoso, tudo se resume a esta citação:
«Estou de luto, hoje morreu-me a minha terra, hoje tornei-me um desterrado, vivemos na certeza de que as terras não morrem, vivemos na certeza de que a terra onde enterramos os nossos mortos será nossa para sempre e que também nunca faltará aos nossos filhos a terra onde os fizemos nascer, vivemos nessa certeza porque nunca pensamos que a terra pode morrer-nos, mas hoje morreu-me a minha terra, hoje morreram os meus mortos.»
E aqui vêem o estilo narrativo da autora e sentem o desamparo que estas pessoas sentiram. Foram arrancados a uma vida que se esforçavam por construir, por querer melhor, e atirados para um país que os criticava e os não compreendia.
Rui, Milucha, Glória são resgatados de Angola durante a ponte aérea e acolhidos num hotel de 5* na Linha do Estoril. Estão profundamente magoados; abandonaram a sua terra, a casa, as toalhas de bordados, a cadela, os amigos, o uísque favorito do pai, as palavras a que se haviam apegado – matabicho, em vez de pequeno-almoço, geleira em vez de frigorífico – o estatuto de “igualdade” face aos seus amigos da escola e das ruas. Mesmo o pai ficou para trás, levado pelos negros. E estas pessoas só conhecem uma realidade: uma África distante, à qual não poderão regressar.
Todo o livro é contado na primeira pessoa pelo rapazinho adolescente, Rui, que de repente se vê chefe de família. Através dos seus olhos vemos Angola, os seus produtos, a sua economia, a sua fertilidade, a desigualdade e mesmo a discriminação face aos negros, aos “paneleiros”, aos diferentes. Também Rui é assim, um decalque de toda uma mentalidade tão portuguesa e não tão ultrapassada quanto isso. A mãe é doente. A irmã é rapariga, não conta. Gostei da humanidade destas personagens, dos seus defeitos e imperfeições. A mãe, especialmente, é o género de pessoa que abomino. Dada a achaques, mentirosa, inventa histórias para que a creiam menos miserável, vulnerável, apegada a frigoríficos e rendas. Ainda assim, pelos olhos de Rui vemo-la e amamo-la. E o pai de dentes amarelos, brusco, incumpridor de promessas, que dá tareias de cinto e fuma demasiado é, ainda assim - sobretudo assim -, o nosso pai.
Aconselho a todos aqueles que queiram ter uma noção de família, de dificuldades, de recomeçar. O futuro, o passado, todos ali mesclados com a História do nosso país como manto de fundo a recordar-nos que um português que não baixa os braços é um português que aguenta tudo e vai longe. Uma importante mensagem nos tempos que correm.
Classificação: 5*****
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