domingo, 16 de fevereiro de 2020

#241 SLIMANI, Leïla, Canção Doce

Sinopse: Mãe de duas crianças pequenas, Myriam decide retomar a actividade profissional num escritório de advogados, apesar das reticências do marido. Depois de um minucioso processo de selecção de uma ama, o casal escolhe Louise. A ama rapidamente conquista o coração dos pequenos Adam e Mila e a admiração dos pais, tornando-se uma figura imprescindível na casa da jovem família.
O que Myriam e Paul não suspeitam - ou não querem ver - é que a sua pequena família é o único vínculo de Louise à normalidade. Pouco a pouco, o afecto e a atenção vão dando lugar a uma interdependência sufocante, com o cerco a apertar a cada dia, até desembocar num drama irremediável.
Com um olhar incisivo sobre esta pequena família, Leila Slimani aponta o foco para um palco maior: a sociedade moderna, com as suas concepções de amor, educação e família, das relações de poder e dos preconceitos de classe. Com uma escrita cirúrgica e tensa, eivada de um lirismo enigmático, o mistério instala-se desde a primeira página, um mistério que é tanto sobre as razões do drama como o das profundezas insondáveis da alma humana.

PRÉMIO GONCOURT 2016, o mais importante prémio literário francês.

Opinião: Chanson Douce, vencedor do prémio Goncourt em 2016, é o segundo romance da franco-marroquina Leïla Slimani, e remexe nos lugares pútridos da vida moderna, quotidiana, inquestionável.

Conforma a sinopse adianta, esta é a história de como a babá perfeita perde a sanidade, o senso de pertença, até se abandonar ao acto abominável de assassinar as duas crianças que tem a seu cargo. Este enredo é uma adaptação livre do caso de Yoselyn Ortega, uma ama que, em 2012, matou as duas crianças a seu cuidado.

A premissa que o livro defende é o que levou uma mulher submissa, servil inclusive, dócil e responsável, maternal e prestável, confiável, a cometer um crime tão hediondo?, ou, noutras palavras, o que leva uma pessoa a transformar-se num monstro?

Eu diria que o livro é pertinente em muitas frentes, sendo a principal a evidente questão das desigualdades sociais, que cavam fossos de entendimento entre as pessoas. Esses fossos podem atenuar-se com a familiaridade de um emprego/patrão, ou podem aprofundar-se quando as diferenças são obrigadas a conviver tão de perto.

Na Paris dos Massés, Myriam (franco-marroquina) e Paul, enquanto uns se focam na ascensão social e económica, no prestígio e no cumprimento de sonhos materiais, outros debatem-se com polibans bolorentos, comem os restos dos patrões e, por muito que oiçam dizer que são parte da família, são sempre insubordinados, e são apanhados num limbo estranho, no qual pairam entre serem estranhos ao casal, mas familiares às crianças e ao ambiente doméstico.

Louise, a personagem principal, é uma loirinha bonita e frágil, muito limpa, na casa dos 40 anos. Uma vez que não encontrei menções à sua nacionalidade, assumi que é francesa. Myriam é muçulmana, magrebina. Aqui todas as diferenças contam, porque Louise, com toda a competência no seu trabalho, todas as referências que levam à sua contratação, não construiu nada, não tem nada. O seu carácter submisso levou a que o próprio marido tivesse dirigido a vida do casal enquanto era vivo, deixando-a enterrada em dívidas. Vive em situação precária, de tal modo que o apartamento dos Massés, a sua rotina e sobretudo as suas crianças transformam-se na sua única motivação, na sua única ligação ao mundo real, digno e limpo, luminoso, arejado.

Louise está destruída psicologicamente. Sozinha, confusa, receosa do futuro, desligada de todas as responsabilidades fora do apartamento, a vida de Louise torna-se suspensa da existência dos Massés, e está disposta a tudo para evitar um afastamento.

Não atribuo 5* a este livro com o tom de uma crónica porque senti que, perto do fim, faltaram ali alguns alicerces psicológicos. Louise está pressionada, mas estará no limite? Como se passa da mulher que adora os seus meninos, endividada e no caminho da paranóia, para a mulher que se vale de uma faca de cozinha para acabar com a vida dos seus mais-que-tudo?

Expõe a hipocrisia da nossa sociedade ocidental, supostamente igualitária, inclusiva, sem preconceitos. Vale muito a pena.

Classificação: 4****/*

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