terça-feira, 3 de janeiro de 2017

#178 CACHAPA, Possidónio, Viagem ao Coração dos Pássaros

Sinopse: Viagem ao Coração dos Pássaros remete-nos para um universo único mas que de repete sempre no tempo dos seres humanos. Fala-nos das contradições e dialética do mundo, do amor, da vida, mas também dos seus opostos. É um livro que se lê num sopro, como se fosse um instante, numa viagem que o leitor faz ao coração, o seu próprio, e o dos  protagonistas da história, realista, autêntica e bela. Possidónio Cachapa conduz-nos através da sua escrita profunda, revelando-nos os dons que todos temos e as nossas virtudes mas também as nossas debilidades e fraquezas, numa simplicidade narrativa que nos prende da primeira à última página.

Opinião: 

“— Kika – pediu ele, em lágrimas. – Gostas de mim?
Kika virou-se na cama e respondeu:
– Não.
E, dizendo isto, rodou no leito, onde uma mancha de pena se espalhara e lhe humedecera a face humana. O Escritor voltou a chorar, roído de piedade de si próprio e perguntando a ele mesmo o nome da fraqueza que o diminuía diante da mulher.
Ela, se não fosse ela, ter-lhe-ia passado a mão na face e dito que ele era tão perfeito quanto um homem pode ser. E se isso não lhe bastava, era porque a sua natureza era ruim e ambiciosa. Que todos a tomavam por boa por equívoco. E que amá-la era o mesmo que meter uma jibóia na cama; que nem com a barriga cheia de ratos a impediria de cumprir a sua natureza.”

Não fazia ideia do que esperar desta minha primeira abordagem a Possidónio Cachapa. Decerto não a dimensão que encontrei, nem as incertezas para onde a mesma me atirou. A história resume-se de modo simples: Evangelina casa-se com Filipe numa ilha que creio ser a Madeira, devido à menção às levadas. Têm uma menina que nasce prematuramente, chamada Maria Joaquina (Kika) e Filipe não consegue ficar, apesar de as amar, e sai de cena. Tudo o resto é preenchido por uma extensão da dimensão do espaço e do tempo, em que cada um é o que é, o que foi e o que há-de ser, e que esta é só uma vida de várias, sendo que se toma diversas formas a cada uma. E os mortos andam lado a lado com os vivos, e alguns vivos já transportam um pouco da morte consigo, porque os mal estares vêm da alma e acabam por levar ao enterro dos corpos. É então evidente que não há, realmente, nada de simples neste livro. Gosto quando os autores me atiram para este limbo, em que não sei onde acaba o criador e onde começa o narrador (isto é: alter-ego emprestado ao livro). Mais inquietante ainda: não sei onde acabam as crenças de quem o escreveu e onde começa o propósito com que o escreveu. Viagem ao Coração dos Pássarosé, assim, despretensioso. No entanto demonstra grandeza a cada virar de página. A condição da vida na Terra (mais do que a “humana”) é explorada de modo inventivo e desconcertante. Lê-se sobre um pássaro como se lê sobre gente. Lê-se sobre a carne como se fosse a mera morada do espírito no mundo sólido, e que por isso limita e por vezes até corrompe o dito espírito - é tudo parte de um plano maior. A existência singela por toda a parte, mas as luzes que se voltam para uma menina com um dom; e que fala por dentro da cabeça das pessoas, porque fez a promessa de se manter de boca fechada até o pai voltar. Uma menina que começa por contrariar o seu próprio destino, porque o universo dispõe de nós como lhe apraz, e apesar de não podermos fugir ao que nos foi traçado, por vezes perdemos alguma energia a tentar...
Vale a pena, lê-se bem. Não é fácil, contudo. Tira-nos de onde estamos e traz mais dúvidas do que respostas. Felizmente para mim – seja, ou não, um reflexo das crenças do autor -, acompanhei algumas coisas por serem familiares àquilo que também eu acredito. Coisas como sermos todos parte de um mesmo plano. Ou como termos várias passagens pela terra, umas como homens, outras como flores, outras ainda como pássaros. Vou estar atenta às suas obras, de modo a separar os universos “autor” e “livro”. Parecem-me ambos bastante interessantes. 

Classificação: 4****/*

1 comentário:

  1. Olá Célia,
    Quero muito ler este livro. Estou muito curiosa.
    Beijinhos e boas leituras

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