A Escrever...


"A Portuguesa"

Romance de encerramento da Trilogia do Vinho (A Filha do Barão, Uma Mulher Respeitável) - 50%

"Precipitou-se pelas escadas, de suspensórios abandonados em torno da cintura, o peito a escorrer água, o maxilar a tremer de ira. Cambaleou e esfolou o cotovelo na pressa de chegar ao pátio das traseiras, de onde berraria o nome dela aos sete ventos. 



O sogro teria de lha entregar. A sogra teria de lhe sair da frente, de esconder aquele rosto feio e anguloso, e de conter a enxurrada de palermices com que o receberia quando visse a raiva com que enfrentava aquele desaforo. Escancarou a porta com um pontapé, e a mesma ficou a oscilar dos gonzos enquanto ele localizava os risos à distância. Riam-se dele, os sebosos. 
Ouviu a voz dela, naquele sotaque abjecto, e arremeteu nessa direcção. Estava convencido de que nem a possível presença do sogro o dissuadiria de a arrastar pelos cabelos de regresso a casa, para que lhe obedecesse e se apresentasse de bens emalados daí a um quarto de hora. 
Depois virou uma esquina e viu-os: Josefa, com o menino ao colo, a sogra, a seu lado, a arreganhar as gengivas desdentadas junto ao nariz do pequeno, a arrancar-lhe risos guturais. E as cunhadas, Catarina e Joaquina, sentadas numa pilha de caixotes de batatas, sorridentes e airosas, despenteadas como as provincianas que eram. Eram todos iguais. Todos feios. Como pudera achar Josefa bonita? Seria o modo como o cabelo, que agora lhe parecia cor de rato, lhe caía sobre a fronte? Seriam os grandes olhos imperturbáveis, do castanho mais vulgar e imensos? Seria a boca resoluta, que jamais se abrira para lhe sorrir, e a pequena língua rosada que agora distendia para Joaquim, que lha tomava entre o indicador e o polegar, antes dela a recolher e o deixar exaurido de riso? Seria a falta de amor-próprio o que o fizera entregar-se a um casamento abaixo da sua condição social, mascarado da adoração que vira em Werther por Lotte, e que poderia acabar de modo igualmente trágico, se ele não fechasse as comportas do afecto não correspondido? 
Encostou-se à parede, evitando ser visto, e enterrou a cabeça nos braços trémulos. Como pudera confiar no destino para que tudo se compusesse? Chegara a hora de abandonar qualquer esperança. Aquele era o dia em que a agonia da compreensão se abateria sobre ele, sobre o homem que ofegava numa luta desigual para consigo mesmo, dominando, a muito custo, a violência que lhe socava o peito. 
Abandonar. Como poderia abandonar uma união que teria de durar enquanto os dois respirassem? Deslizou para o chão, levantando uma nuvem de poeira ao seu redor. A respiração fugia-lhe, tossiu e engasgou-se. Foi como afogar-se. Depois, e antes que o vissem naquele estado, reergueu-se, determinado. Voltou para casa, gelado, convicto de que o seu casamento ficara naquele recanto do quintal do sogro, por entre as urtigas."



Banda sonora aquando do processo de escrita:



"1947 (título temporário)" - terminado

Romance sobre uma cantadeira de fado que se confessa, em 1947, a um jornalista português que se mudou para Inglaterra, ao longo das três semanas de estadia deste em Portugal - 75%


Que importa a mesquinhez da criatura?
Se Deus formou tão grande a Natureza
Tão suave, tão lúcida e tão pura!
Maria de Carvalho, Sonetos 1916


"– Fomos velá-la nós também, na Igreja dos Anjos. A igreja ficava a dois passos da nossa casa e ainda cheirava a novo, acredita? – Continuou. – A pedra ainda era de um branco imaculado, e talvez fosse fruto de uma extraordinária sorte temporal. Lembro-me que surgiu à tangente da República, e que já éramos todos democratas e ainda se ia trazendo painéis de talha dourada para embelezá-la. A mamã fazia questão de lá ir à missa, porque quanto mais a República perseguia os padres, mais ela se lhes juntava, como que para deixar claro que teria preferido um Manuel II despreparado àquele bando de corvos que nunca tinham sequer gerido uma cozinha. – Revivia a paixão com que a mãe, com certeza, se opusera ao novo regime. – Durante o velório, lembro-me que os rostos dos anjos que tocavam corneta em cima da nossa cabeça me pareciam muito corados, como se o fenómeno do calor que fazia lá dentro, com tanta gente, também os afligisse. É que a igreja é assim maneirinha, mal cabíamos todos lá dentro.
Mais tarde correu o boato de que o sacristão tinha cortado uma mecha do cabelo da menina, e que outros crentes, vendo-se em ocasiões a sós com o corpo exposto, aproveitaram para lhe sentir a gelidez da morte, para lhe acariciar o cabelo, para lhe aproximar espelhos do nariz e concluir que o milagre da Ressurreição ainda não se dera.
– Pensando bem, acho que estávamos ali sentadas, com os véus na cabeça e os xailes nas costas – porque chuviscava quando para lá se dirigiram –, à espera de um pouco da Nossa Senhora. Estávamos a ver se ela fazia outro milagre só para nós, e para isso era imprescindível que acreditássemos. De olhos postos na defunta imóvel, acreditei durante alguns dias. Acreditei mesmo quando já nem as flores e as velas disfarçavam a circunstância de que o corpo se ia desagregando perante os nossos olhos. E depois, quando a levaram para a meterem num vagão e a devolverem a Ourém, deixei de acreditar. Desacreditei para sempre."
– Fomos velá-la nós também, na Igreja dos Anjos. A igreja ficava a dois passos da nossa casa e ainda cheirava a novo, acredita? – Continuou. – A pedra ainda era de um branco imaculado, e talvez fosse fruto de uma extraordinária sorte temporal. Lembro-me que surgiu à tangente da República, e que já éramos todos democratas e ainda se ia trazendo painéis de talha dourada para embelezá-la. A mamã fazia questão de lá ir à missa, porque quanto mais a República perseguia os padres, mais ela se lhes juntava, como que para deixar claro que teria preferido um Manuel II despreparado àquele bando de corvos que nunca tinham sequer gerido uma cozinha. – Revivia a paixão com que a mãe, com certeza, se opusera ao novo regime. – Durante o velório, lembro-me que os rostos dos anjos que tocavam corneta em cima da nossa cabeça me pareciam muito corados, como se o fenómeno do calor que fazia lá dentro, com tanta gente, também os afligisse. É que a igreja é assim maneirinha, mal cabíamos todos lá dentro.
Mais tarde correu o boato de que o sacristão tinha cortado uma mecha do cabelo da menina, e que outros crentes, vendo-se em ocasiões a sós com o corpo exposto, aproveitaram para lhe sentir a gelidez da morte, para lhe acariciar o cabelo, para lhe aproximar espelhos do nariz e concluir que o milagre da Ressurreição ainda não se dera.
– Pensando bem, acho que estávamos ali sentadas, com os véus na cabeça e os xailes nas costas – porque chuviscava quando para lá se dirigiram –, à espera de um pouco da Nossa Senhora. Estávamos a ver se ela fazia outro milagre só para nós, e para isso era imprescindível que acreditássemos. De olhos postos na defunta imóvel, acreditei durante alguns dias. Acreditei mesmo quando já nem as flores e as velas disfarçavam a circunstância de que o corpo se ia desagregando perante os nossos olhos. E depois, quando a levaram para a meterem num vagão e a devolverem a Ourém, deixei de acreditar. Desacreditei para sempre."

Banda sonora aquando do processo de escrita:

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