sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Ainda o Desacordo Ortográfico

Descobri que não sei escrever e isso, para uma pessoa que tem nas letras um hobby, uma terapia, um possível sonho, é inquietante. Antes do Acordo Ortográfico ser implantado, em 2009, eu sabia que «flôr» já não tinha acento circunflexo, como me ensinaram que tinha quando, entre 1995 e 1999, fiz o ensino primário. Quando publiquei o meu primeiro romance, em 2011, não me passava pela cabeça convertê-lo para uma grafia que me era desconhecida, que em certa medida não me parecia lógica e que foi, acima de tudo, controversa. Já se falava no Acordo, mas envolto em tanta polémica que se tornou fácil contorná-lo, ignorá-lo. 

Segui publicando romances de cariz histórico, e consegui contornar o Acordo. De algum modo, parece que é facultativo escrever-se no Português que está instituído legalmente, e que tanto trabalho e esforço deve ter arrancado a uma boa comitiva de intelectuais linguísticos (perdoem-me por não saber como se escreve intelectuais ao dia de hoje – com C ou sem C, eis a questão). Entretanto aportei no facto de que o Português das edições antigas de livros que leio – como “As Vinhas da Ira”, da coleção do Jornal Público   não é o mesmo que o das edições que adquiro recentemente, pelo que ao ler já não estou a aprender a escrever, pelo contrário, estou inclusive a desaprender algo que me era adquirido. Como se uma capacidade da qual me orgulhava me tivesse sido arrebatada sem mais. 

Mas o que me custou mais foi ter entregado um novo manuscrito à minha editora  o primeiro manuscrito em que julguei ter cedido à pressão do Acordo Ortográfico, em que julguei que simplificava, que me aproximava dos muitos mundos e letras portugueses no globo, em que, de modo ingénuo, considerei que a intuição haveria de me ajudar a pôr a minha língua por escrito na sua correta forma  e descobrir que a língua em que escrevi não existe. Há um limbo entre o que era e o que é. Escrevo na antiga grafia e afinal há uma nova para aquele vocábulo, ou arrisco eliminar um C que afinal ficou, e o manuscrito é-me devolvido rasurado a cada página. A cada parágrafo uma nota do revisor a questionar em que me baseei para escrever aquela palavra assim. Menções a vários acordos, pré e pós, isto e aquilo, e a palavra a fundar-se no lodo da incerteza, da imprecisão gráfica. “A autora tem de optar se quer manter Acordo ou não”. Ah é uma opção? Desde 2009 que cada cidadão luso tem o seu próprio Português? Faz a sua própria escolha dependendo da versão do Google Chrome e do Microsoft Word que tem instalado no computador? E quando isso está em colisão com o Outlook que tem instalado no trabalho?

Estou magoada. Não me interessam os motivos do Acordo, as intenções do Acordo. Interessa-me saber que me interesso pela Língua Portuguesa, que a tenho usado como instrumento de trabalho e de lazer, de ócio, de prazer, e que agora me é estranha. Interessa-me – desconcerta-me – saber que escrevo de um modo, os meus avós de outro, e a minha irmã mais nova de outro. Esse fosso geracional linguístico era escusado, pelo menos entre mim e ela. Não nos entendemos nos recados e nos post-its, e nem sequer temos autoridade para corrigir o Português uns dos outros. Sabemos lá nós.

O Acordo Ortográfico roubou-me a palavra, a língua, a certeza. Agora os meus manuscritos têm de ser corridos no conversor do Acordo Ortográfico. Há outro modo de registar corretamente o que tentei atabalhoadamente dizer no meu texto. O meu texto está todo errado. Tornei-me uma iletrada, o que é trágico quando se ama assim as palavras. 

Os Portugueses já não sabem escrever  o AO atirou-nos para o lodo do analfabetismo, iliteracia entre Licenciados, entre Doutores. Quantos de nós, não vivendo dire(c)tamente das Letras (como Tradutores, Editores, Professores, Linguistas), estão certos de saber escrever em Português? Quantos de nós compraram os livrinhos “Português para totós” para reaprender a sua língua, em efe(c)tivo? 

Bom, talvez alguns Portugueses ainda saibam escrever na sua língua. Eu descobri ontem que já não sei. Obrigada, Cavaco Silva.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

#232 HARRIS, Joanne, A Menina que Roubava Morangos

Sinopse: O coração de Vianne Rocher, a encantadora e inquieta maga do chocolate, parece ter finalmente serenado. A vila de Lansquenet-sous-Tannes, que em tempos a rejeitou, é agora o seu lar. Com a filha mais velha, Anouk, a viver em Paris, Vianne dedica-se por inteiro à chocolaterie e a Rosette, a filha mais nova, a sua menina "especial". A acompanhá-las estão os seus amigos do rio, os extravagantes vizinhos, e o circunspecto padre Reynaud. Mas o vento, quando sopra, traz sempre mudanças… E estas começam com a morte de Narcisse, o temperamental florista. A vila fica em alvoroço pois Narcisse deixa não só uma surpreendente herança a Rosette, mas também uma inesperada confissão.

Nada voltará a ser como dantes. E quando uma loja nova abre onde antes se dispunham as magníficas flores de Narcisse, tudo parece um prenúncio de algo: um confronto, alguma turbulência, ou talvez até… um crime? Conseguirá Vianne impedir que o vento leve tudo o que lhe é mais querido?


Há magia no ar. Há luz e sombra. Vingança e amor. Vinte anos depois da publicação de Chocolate, Joanne Harris regressa à pitoresca vila francesa num romance sobre a força do passado, o poder da memória e a aceitação das marcas que a vida deixa em nós.


Opinião: Joanne Harris foi das primeiras autoras que li e adorei, ainda em tenra idade. Comecei pelo Chocolate, segui por todos os seus outros clássicos. Mais tarde adorei reencontrar essas personagens em Sapatos de Rebuçado e O Aroma das Especiarias. Julgo ter entendido que este volume encerra o mundo de Vianne Rocher, com certeza a chocolateira mais famosa do universo literário.

Senti o a narrativa mais fraca, a entrar um bocadinho por aquele campo do espremer uma fórmula ao máximo. Como se a autora não estivesse tão inspirada como nos restantes volumes, apesar de se ler bem, porque me é território confortável. Vianne Rocher cede o protagonismo à sua filha de 16 anos, Rosette, e a M. le Curé, o Père Reynaud. Sem dúvida que as complexidades deste homem de Deus, atormentado pela própria natureza falível, dão substância à melhor personagem (pelo menos à minha favorita) criada pela autora neste universo de uma aldeia francesa à beira-rio, na qual aportam os barcos dos ciganos, onde há uma comunidade muçulmana (Les Marauds) e onde colidem o mundo tradicional das beatas e dos hipócritas com as minorias que despertam a mesquinhez nessas almas cristãs.

Adoro a temática dos livros da autora, que giram sempre em torno da diferença; do ser-se diferente e do aceitar-se o diferente. Neste volume, Rosette é a personagem diferente. Tem um discurso próprio (Bam!) pontilhado dos seus limites de discurso (terá uma doença que a arrasta para tiques nervosos?). Traz alguma pureza à narrativa. É a sua voz, mas também a de Vianne, a de Reynaud e os relatos na primeira pessoa de Narcisse, o antigo florista que morre e que deixa o seu bosque de carvalhos e morangos silvestres à curiosa Rosette que instiga a ação deste último tomo da série. É que os habitantes de Lansquenet-sous-Tannes não compreendem o porquê de um homem inescrutável ter deixado um bosque de valor precioso a uma criança com limitações, e a justificação que oferece ao executor do seu testamento, bem como a nova ocupante da sua loja de flores desocupada, diante da porta da Chocolaterie vão desenterrar os segredos de outro habitante da pequena povoação.

O interessante é a premissa de que ninguém é o que parece, combinada com a mestria da autora em criar universos mágicos, místicos, plenos de superstição e de maravilha, em que o chocolate, os desenhos, a arte em geral, o fogo nas fogueiras dos ciganos, os amuletos islâmicos, as tradições maias, se tornam formas de praticar feitiçaria e de pôr o vento a nosso favor, ou contra os nossos inimigos.

Ocorre-me uma questão interessante sobre a obra da autora: os homens costumam ser personagens voláteis, pouco confiáveis, que vêm e vão com o vento, egoístas. As mulheres têm-nos como adereços temporários. O amor nunca se sobrepõe à razão e, quando o faz, é para desgraça da mulher (recordo-me de algumas das suas mulheres, desgraçadas por homens ignóbeis). Que significa isto? Gostaria de perguntar à autora se é de algum modo feminista, e se conhece homens de integridade inabalável.

Despeço-me com saudade, e um dia regresso com o Hurakan a Lansquenet-sous-Tannes, para reencontrar todos estes amigos de longa data.

Classificação: 4/5*****

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

#231 LOCKHART, E., Quando éramos mentirosos

SinopseA família Sinclair parece perfeita. Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção. É sob o encantamento da ilha que Cadence, a mais jovem herdeira da fortuna familiar, comete um erro: apaixona-se desesperadamente. Cadence é brilhante, mas secretamente frágil e atormentada. Gat é determinado, mas abertamente impetuoso e inconveniente. A relação de ambos põe em causa as rígidas normas do clã. E isso simplesmente não pode acontecer. Os Sinclair parecem ter tudo. E têm, de facto. Têm segredos. Escondem tragédias. Vivem mentiras. E a maior de todas as mentiras é tão intolerável que não pode ser revelada. Nem mesmo a si.

Opinião: "Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção."

Narrativa simples, despretensiosa, que dispensa demasiadas questões.Os Sinclair são perfeitos, e são-nos apresentados pela voz de Candace, de 17 anos - umas das netas e futura herdeira da sua fortuna. Ela e os dois primos, Johnny e Mirren, juntamente com Gat, são "os Mentirosos". Os Mentirosos são jovens idealistas que convivem com a família completa Sinclair e os seus tesouros, segredos, ambições, todos os verões na sua ilha privada. Os Sinclair têm uma ilha privada onde cada uma das três filhas de Tipper e Harris tem a sua casa, sendo que depois se reúnem todos em Clairmont, a casa dos pais, para discutir quem tem mais direito a herdar o quê, e quem tem a cozinha melhor equipada, e quem deve ficar com as pérolas da mãe depois da sua morte.O que mais gostei no livro foi a prosa acessível, sem trejeitos desnecessários, que me pareceu adequada a uma adolescente com algumas preocupações existenciais, para lá da sua juventude e do seu estatuto de privilegiada. E também do contraste jovem/idealista e adulto/cínico. Li-o em dois fôlegos, fiquei surpreendida com o final e recomendo-o como uma leitura leve com alguma substância.Os Sinclair não são nada do que apregoam ser.


Classificação: 4/5*****