quinta-feira, 26 de outubro de 2017

#186 MCNAUGHT, Judith, Whitney, Meu Amor

Sinopse: Whitney Stone é uma jovem de personalidade forte. Algo que o pai, um homem frio e calculista, não tolera. Decidido a acabar de uma vez por todas com a paixão que a filha nutre pelo vizinho Paul, envia-a para Paris. Sob os cuidados e carinho dos tios, a trapalhona e reguila Whitney transforma-se numa mulher lindíssima. A sua sensualidade e carisma conquistam a sociedade parisiense e captam a atenção do poderoso Duque de Claymore. Mas o coração de Whitney há muito que está tomado por Paul. Essa é, pelo menos, a convicção da jovem. Até ao dia em que dá por si a sentir-se tentada pelo duque - uma atração que a delicia e perturba, pois é a primeira vez que percebe que o seu coração tem uma vontade muito própria. Já o duque não tem qualquer dúvida. Ele deseja Whitney. E planeia tê-la, não obstante o crescente número de obstáculos, que incluem o "pormenor" de ela estar apaixonada por outro homem, a apreensão da tia e os planos do pai ganancioso, que, para se salvar da ruína, faz um acordo secreto. A moeda de troca? A sua filha…

Opinião: Este livro mexeu comigo. Não me surpreendi ao descobrir que não me lembrava de uma linha do livro a cada página que ia lendo (e são muitas). Mas iniciei a leitura sabendo que o lera uma vez, teria uns 17 ou 18 anos, em Inglês ou em PT-BR, e que tinha AMADO o livro. Foi a porta aberta para que começasse a ler estes romances cor-de-rosa de época, dos quais devo salientar que as minhas escritoras favoritas continuam a ser, sem sombra de dúvida dentro do género, a Sherry Thomas e a Julia Quinn. 

Desta vez, simplesmente, abominei cada página. Será embirrância? Será que perdi a inocência e a ingenuidade que me permitiram viver o livro quando era mais jovem? Estou mais inclinada para pensar que cresci e que a minha percepção de amor se alterou. O que encontrei nestas 630 páginas é uma versão travestida do que, para mim, é o amor.

O romance é o primeiro da Judith McNaught, como a própria salientou na nota final, e estimulou-a a iniciar a sua prolífera carreira na escrita. Ganhou prémios (não me dei ao trabalho de investigar quais), e com certeza deve ter gerado uma mina de dinheiro, porque tantos do mesmo género lhe sucederam (dela e de outras autoras)...
Escrito em 1978, apenas publicado em 1985, tornou-se um best-seller instantâneo, e até entendo porquê: é um Fifty Shades of Grey versão século XIX em rendas e folhos. Talvez, neste ponto, me deva perguntar o que atrai tanto as mulheres em livros onde a personagem masculina é doentiamente possessiva e ciumenta? Deixaremos a reflexão para daqui a pouco. 

Resumo simples do livro (sem *muitos* spoilers): 
Nas primeiras 300 páginas do livro, o duque conhece a jovem mais linda, maravilhosa, sensual, inocente, esbelta, alta, voluptuosa, espirituosa e inteligente da festa, com o nome mais estranho de sempre. A jovem põem-no a rir e insulta o seu título, duvidando que seja de facto um duque. Isso acende qualquer coisa nele, e decide ir para casa e passar um cheque ao pai dela para a "comprar". A partir daí, toma a sensata decisão de tentar que se conheçam melhor antes que ela saiba que estão noivos. Se o livro terminasse na página 300, depois desses passeios a cavalo, dessas risadas juntos, talvez tivesse merecido pelo menos quatro estrelas. Ainda assim, a impetuosidade "especial" que a autora tentou imprimir à personagem feminina principal é exasperante, mas a racionalidade do duque equilibrava as coisas, funcionava como o juízo do leitor e as coisas harmonizavam-se. Mas o problema é que o livro continuou e, a partir do momento em que Whitney descobre o acordo entre o duque e o seu pai, o livro torna-se aquilo que gosto de apelidar de uma "fantochada" onde imperam os mal-entendidos. Ora eu valorizo uma boa comunicação acima de tudo, e nem por sombras algo do género poderia suceder na minha vida. Por isso, começo logo por considerar as personagens principais muito inaptas para um relacionamento sério, e a coisa descamba para mim.

Preparem-se, porque abaixo vou embirrar com tudo, mas mesmo com tudo.

Vamos por pontos:
1) A personagem principal feminina;
2) A personagem principal masculina;
3) O vocabulário/a tradução;
4) A bajulação às duas personagens principais por parte de todas as outras;
5) O rumo dos acontecimentos a partir da página 300;
6) Mal-entendidos;
7) Conteúdo histórico;
8) O comprimento do livro.

Whitney Stone é uma beldade inglesa destrambelhada. Não me ocorre outra palavra, a escritora queria que assim fosse. E aqui iniciamos o ponto 1). «Whitney», não consigo imaginar este nome no século XIX excepto, talvez, num armazém de madeiras de Nova Iorque, tipo "Whitney&Cº". Um pouco como Jennifer Merrick do outro livro da série Um Reino de Sonho, são nomes que dificilmente existiam na época. Esta insistência em escolher um nome que distinga a personagem das restantes, não a torna especial. Torna-a irreal, e isso, somado ao traço tresloucada, que é comum a ambas, torna-as bonecos animados, mas muito bonitos, a fazer piruetas e macacadas de página para página. Depois a autora cobre-as do elogio "espirituosas", ou "corajosas", ou "orgulhosas", ou "teimosas", como se fossem sinónimo de firmeza de carácter. 


As coisas que estas personagens vão fazendo são irrealistas e impensáveis na época e, ainda que alguém pensasse assim tão "fora da caixa", a reacção da sociedade nunca seria tão complacente só porque possuem uma beleza etérea e são maravilhosas e encantadoras até à exaustão, como a narrativa não se cansa de repetir. Falta realismo, uma grande dose de realismo em coisas simples quando a construção das personagens principais.

Por falar em personagens principais, chegamos ao ponto 2). Os duques, condes, viscondes, marqueses, etc., por quem estas mulheres se apaixonam, são sempre o homem mais alto do baile, com os ombros mais largos, uma riqueza obscena e uma inteligência que arruma para o lado a de todos os outros. A sociedade inglesa do século XIX seria assim tão desprovida de pessoas sensatas? É por isso que gosto do gago da Julia Quinn, ou do seu visconde falido. Neste livro, a loucura da personagem masculina vai além de todos os outros. Primeiro é obcecado pela mocinha principal, sem que jamais se entenda o porquê (além de lhe admirar, até ao enjoo, a beleza etérea, dos maravilhosos olhos verdes, das esbeltas curvas, dos fartos seios, do lustroso cabelo castanho-avermelhado, da altivez e do queixo erguido em desafio), depois vai por caminhos tortuosos para chegar ao que quer. Se bem que meter-se por caminhos tortuosos é algo típico de todas as personagens deste livro. Se alguém quer algo, nunca diz "Serves-me um pouco de chá?"; é mais provável que finja a própria morte para que alguém lhe traga uma chávena. Depois o seu passado nunca foi bem explicado. Isto é, tudo leva a crer que tenha tido um passado tranquilo e um lar pleno de amor e protecção, além do evidente conforto financeiro. Mas, ainda assim, é inseguro e desconfiado, traços que a autora nunca se dá ao trabalho de explicar do ponto de vista psicológico. Sofreu algum abuso? Foi abandonado? Foi roubado? O pai fugiu de casa? Que raio se passa com a criatura para assumir que é vítima de conspirações a todo o instante?


Em português, todas as festas, jóias, mansões, sorrisos, etc., eram exageradamente descritos. O ponto 3) ia-me pondo louca. Não se escreve "Moveu as pernas", mas sempre "Moveu as longas/esbeltas/suaves pernas". Nunca há um "Passou um casaco nos ombros", mas sempre "ombros largos", "maravilhosos/esplêndidos olhos verdes", "intrigantes olhos cinzentos", "longos dedos", "ancas estreitas", "seios sumptuosos", "esplêndida refeição", "sorriso encantador", etc. Já não podia com tanta adjectivação, senti-me prestes a gritar perante a repetição da cor do cabelo/olhos dela, dos musculosos ombros/pernas/peito dele, etc. Que frete!

Tudo isto explica porque o ponto 4) também surge: toda a gente se pela de medo pelo duque e se verga de admiração pela duquesa. O duque é magnânimo, autoritário, arrogante, rico, inteligente, escandalosamente atraente e jovem, e ela é também jovem, inocente, pueril, divertida, espirituosa, inteligente (fala grego, italiano, alemão, inglês e francês, e com apenas 20 anos!), e são ambos excelentes cavaleiros. Como são abençoados, e toda a gente o relembra a cada duas páginas!, por entre pedidos de casamento e suspiros de admiração.


Já ia mais ou menos chateada com tanto surrealismo cómico que, quando chega o momento da revelação da identidade do vizinho, Mr. Westland (ponto 2), tudo descamba. A personagem feminina, tão cheia de fibra, começa a emburrecer gravemente. Ele perde a razão e torna-se um bruto (ponto 2). Descobrimos que estes dois seres tão inteligentes e iluminados não conseguem ter uma conversa sem tirarem N conclusões diferentes, que depois os levam a agir da maneira mais absurda imaginável. Os conflitos são-nos atirados para o colo um atrás do outro. Perdoam-se, fazem as pazes, para depois desconfiarem de novo e estarem outras tantas páginas a carpir-se enquanto os outros os lembram que são maravilhosos e encantadores e lhes garantem que o outro os ama.


Já disse que os mal-entendidos (ponto 6) me tiram do sério? Uma boa comunicação não será o que distingue duas pessoas feitas uma para a outra de dois tolos iletrados na arte de socializar?

Em termos de enquadramento histórico, só sabemos que é Inglaterra porque a autora o menciona, o ponto 7) é em tudo deficitário para uma amante dos factos como eu. Não digo que não houvesse nenhuma pesquisa, mas acho que foi mais ao nível dos cordões entrelaçados no cabelo que a duquesa usava. Além de que, a dada altura, se fala de "retratos", mais para o final do livro. Se estivesse no pós-guerra napoleónica e antes da Guerra da Crimeia, dificilmente haveria fotografia, e certamente não das gerações anteriores. Tudo se resume a carruagens, títulos e bailes. Não se fala de nada de específico, até a igreja onde se dá o tão esperado casamento é apenas "a igreja". É vago e o romance sofre com isso - para além de agonizar com todo o resto!

Por fim, o livro nunca mais acabava (ponto 8). Um horror. Quando pensávamos que tudo tinha terminado, recomeça de novo. O ciclo torna-se de tal modo insuportável que, à luz da sabedoria dos meus quase vinte e oito anos, estou certa de ter tirado o perfil psicológico destes dois. Ele vai sempre agredi-la, e ela está confortável na posição de vítima carpideira. Seria assim a vida toda.


Classificação: 2,5**/***

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

#185 DONOGHUE, Emma, O Prodígio


Sinopse: A jovem Anna recusa-se a comer e, apesar disso, sobrevive mês após mês, aparentemente sem graves consequências físicas. Um milagre, dizem.

Mas quando Lib, uma jovem e cética enfermeira, é contratada para vigiar a menina noite e dia, os acontecimentos seguem um diferente rumo: Anna começa a definhar perante a passividade de todos e a impotência de Lib. E assim se adensa o mistério à volta daquela pobre família de agricultores que parece envolta num cenário de mentiras, promessas e segredos.
Prisioneira da linguagem da fé, será Anna, afinal, vítima daqueles que mais ama?
Um drama intenso sobre os perversos caminhos do fundamentalismo, mas também sobre como o amor pode vencer o mal nas suas mais diversas formas
.
Opinião: Na segunda metade do séc. XIX, Elizabeth Wright é uma enfermeira de uma nova estirpe. Treinada por Florence Nightingale e com uma vasta experiência que incluí assistência na Guerra da Crimeia, Lib é destacada para uma missão envolta em secretismo e leva muito a sério a sua incumbência. Embarca para uma Irlanda que recupera da Grande Fome, para se apresentar perante um comité que lhe pede uma tarefa aparentemente simples: vigiar uma jovem de onze anos que, ao que parece, não ingere nenhum alimento desde há quatro meses.
A apaixonante Irlanda vem assim retratada pelos olhos de uma inglesa, e, portanto, como um recanto retrógrado, supersticioso e ignorante, no qual imperam fantasias sobre fadas, santos de trazer por casa e fitinhas com dores expiadas nos ramos das urzes. Para Lib, a Irlanda subsiste como um último reduto da Era Medieval na Europa, e é com essa certeza que se convence de que, num piscar de olhos, será capaz de desmascarar os intervenientes da farsa em curso.
Foi uma leitura muito agradável, sobretudo porque três personagens se destacam do mar um tanto ou quanto monótono das restantes: Lib, Anna (a criança que recusa alimento) e William Byrne, um jornalista católico dividido entre o sensacionalismo que a imprensa procura e a curiosidade crescente quanto ao caso. A inteligência destes três, combinada com o retrato de época da Irlanda mística e profundamente católica do século XIX, fazem valer cada página do romance. A acção desenrola-se num ritmo um pouco lento, bastante descritivo, mas é daqueles livros que, sorvido aos poucos, nos leva a grandes reflexões.
É que Anna O’Donnell é uma menina encantadora, apesar de cegamente devota, e não são claros os motivos que a levam a abandonar-se daquele modo à religião. A função de Lib é a de entender se Anna realmente sobrevive sem alimento, para êxtase dos fanáticos religiosos que rodeiam a criança, ou se alguém a tem alimentado em secretismo para lucrar com a circunstância. Nas longas horas que passa a observar a menina, várias teorias vão-se formando, e a ligação das duas vai-se adensando, até que Lib, a tão profissional enfermeira de Miss N., começa a perder o auto-controlo e ameaça destruir a sua reputação de obediente e metódica, quando o desejo incontrolável de interferir a assalta a todos os instantes.
É uma narrativa de humanidade, que mexe com o que é sagrado em nós e com o tema muito actual da tolerância religiosa, e dos limites do indivíduo perante a máquina maior.

Classificação: 4,5****/*