sábado, 25 de maio de 2019

#219 LOBO, António Lobo, Os Cus de Judas

Opinião: 

"E só compreendi isso quando vi os prisioneiros no quartel da Pide, a resignada espera dos seus gestos, as barrigas gigantescas de fome das crianças, a ausência de lágrimas no pavor dos olhos. É preciso que entenda, percebe, que no meio em que nasci a definição de preto era «criatura amorosa em pequenino», como quem se refere a cães ou a cavalos (...)"

Ler António Lobo Antunes foi dos maiores desafios literários que me coloquei em 2019
. Sem escapar à certeza de que gostos são gostos, há vários motivos para se ler. Há quem leia para se entreter, o que é muito válido, e eu sinto que, ultimamente, só leio para me inquietar. Sabia que o este psiquiatra e eterno candidato a Nobel da Literatura me haveria de inquietar, mas receava que a inquietude não me chegasse devido às barreiras estilísticas. Em contrapartida, apesar de cumprir bem a missão de me pôr a pensar a nossa História e este falhanço boçal que foi a Guerra do Ultramar, não me senti entretida nem posso dizer que tenha gostado. Gostei de partes, mas o todo parece-me espinhoso. Não tenho especial preferência por livros em que é preciso remover as espinhas para chegar ao núcleo. 

Saí uma noite de casa e fui ao centro comercial (odeio centros comerciais) comprá-lo. Não me esqueço porque queria a edição da D. Quixote, e porque para isso tive de ficar na fila da Bertrand, naquela altura do ano em que os pais vão levantar livros escolares - porque não encomendá-los online? -, a vê-lo no topo de uma prateleira à qual não chegava, e a ensaiar como diria o seu título ao rapaz que me atendesse quando a fila desaguasse na caixa. Tudo porque estava ansiosa para lê-lo. Quando mo meteram na mão, corri para casa e estendi-me no sofá, abri-o, sorvi algo a respeito do Jardim Zoológico de Lisboa, pensei que era familiar, que íamos dar-nos bem, e depois sofri um golpe e fiquei à deriva. Deixei de entender, perdi-me nas voltas e reviravoltas, volutas e floreados do discurso. 

Larguei-o de imediato, mas volvidos poucos meses voltei a pegar-lhe - não havia de vencer-me! Tinha de cumprir o desafio de ler António Lobo Antunes, e ainda para mais esta obra encaixa no perfil de livros de 200 páginas (ou menos) que ando a devorar, porque, de repente, livros maiores do que isso intimidam-me. É um autor nacional - e sei que devo muitas leituras ao universo de autores nacionais, e é um possível candidato a Nobel e queria conhecê-lo antes de receber esse possível galardão. Queria também permitir-lhe a possibilidade de me levar, pelos sentidos, à guerra e ao absurdo do Ultramar. 

O maior desconforto foi o de sentir sempre que as frases deveriam terminar - e com grande classe, claras e pujantes - ao quilómetro três, mas vê-las prolongarem-se por mais cinco quilómetros de metáforas desnecessárias e pura agonia, até uma morte estrepitosa. Dei por mim a reler algumas frases que começavam com asas, e que me enchiam o peito de compreensão e assombro, e a cortar o que vinha em acréscimo, e que só servia para deturpar a perfeição do começo. Abaixo dois exemplos desse exercício:

"O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio?"

ou

"O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque, entende, deixei de ter lugar fosse onde fosse, estive longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de chuvas e de missas, estes demorados invernos despolidos como lâmpadas fundidas."

Apesar de ter conseguido terminá-lo, e dos vislumbres arrepiantes da genialidade que lhe adivinhava, e que com certeza lhe concede a reputação que conquistou no mundo das letras, acabei por acarinhar as imagens, as ideias, o mundo visto pelos olhos do autor, mas detestei o estilo. Detestei as inúmeras menções a artistas - Vermeer, Picasso, Miró, Chagall -, e a músicos - Coltrane, etc. - e a filmes e atores - James Dean, Humphrey Bogart, etc. Foram demasiadas. Tal era como os relógios derretidos do Dali e tal era magro como os galgos de Velasquéz (parafraseando), e a gabardina transformava senhor tal no Bogart, ou a ganga dava-lhe um ar de James Dean, etc. Já deitava essas menções pelos olhos. Até fui capaz de as seguir, porque adoro arte, mas achei uma exibição desproporcionada de snobismo num livro tão pequeno. Talvez em 1979, quando fui publicado, caíssem melhor.

Acabei por entrar no ritmo, oscilar entre a noite lisboeta onde este ex-médico de guerra tenta engatar uma rapariga, e os horrores que testemunhou na guerra e que vai debitando, acabando por nos elucidar também sobre a sua infância privilegiada e a estrutura familiar comum e até monótona. Achei de grande mestria que consiga saltitar entre o Chiúme e a terra vermelha de África e o vodka no copo em Lisboa, o seu apartamento vazio, a sua vida vazia de entusiasmo de homem de quase meia idade divorciado, enquanto constrói um retrato com pinceladas algo impressionistas (um borrão aqui, outro acolá e as sugestões de sombras, figuras e expressões por detrás - e eu a cair nas metáforas do autor). Estamos ao balcão do bar, e este médico de quem - creio - nem chegamos a saber o nome - está bêbedo, e vai cambaleando em direção à mulher em quem prendeu a atenção nesse dia de semana, o que sugere que nem consegue manter uma ocupação. Vai-se repetindo e revisitando as mesmas ideias, mas em ocasiões surge algo que nos cativa por completo, nos agonia, nos dá a volta ao estômago. E, por todo o livro, há um sentido de absurdo e de desnecessário, e um odor pútrido que exala dos caixões de chumbo dos mortos do ultramar, que sabiam que morriam em vão, por uma causa perdida, e que se perpetua pelo chorrilho de horrores que cometeram - no limiar da loucura tropical - e que testemunharam. Suicídios, minas, estropiados, violações, violências várias, torturas, mesquinhice, cobardia e bravura, tudo em vão. Tudo a terminar nos mesmos caixões de chumbo remetidos à metrópole à qual, depois de voltar, o médico já não sente que pertence.

Não é um livro que me tenha arrebatado por completo, mas é uma narrativa que imprime imagens muito fortes de humanidade e politiquices na nossa mente, e que explora a natureza humana sem filtros nem acanhentos, expondo-a distorcida, cruel, desesperada.

Aconselho como “introdução” ao difícil António Lobo Antunes.

Classificação: 3,5/5*****

Sinopse: A memória das experiências vividas durante a guerra em Angola. A partir de um encontro nocturno, num bar, do narrador com uma mulher, sem nome e sem voz, surge num longo monólogo o percurso de um médico militar que, depois de passar vinte e sete meses em Angola a servir o exército colonial, a reconstituir os corpos explodidos na guerra ou a assistir à sua agonia, regressa à metrópole, perdido numa angústia sem saída.

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