quinta-feira, 22 de agosto de 2019

#230 CLAUDEL, Philippe, O Arquipélago do Cão

Opinião: Este livro poderia chamar-se Manual para a corrupção

Depois de ler O Barulho das Chaves e Almas Cinzentas, rendi-me a Philippe Claudel. Sobretudo o último romance marcou-me de forma inesperada, e recordou-me de outro autor Francês cujo trabalho também admiro: Sébastien Japrisot, falecido em 2003, que me encantou com Um Longo Domingo de Noivado.
Este "O Arquipélago do Cão" foca-se, como a própria sinopse indica, em torno do facto de o nosso Mediterrâneo se estar a tornar num cemitério, um repositório das vítimas de guerras, fome, crises humanitárias em geral. É clara a premissa do livro, que sugere que há uma responsabilidade coletiva no modo como gerimos a situação, mas é tudo tão mais complexo do que isso. Creio que não se discute aqui a humanidade dos três corpos que dão à costa, nem a dignidade daquelas pessoas com base na cor de pele ou crença religiosa. Parece-me que o ponto fulcral, e que passa ao lado do romance porque este tem um tom apressado de novela, ou talvez de ensaio em que a posição do autor surge clara, é que a maioria dos países europeus não tem qualquer responsabilidade sobre o desterro voluntário - e tantas vezes o perecimento - destes homens que arriscam a vida para chegar ilegalmente à Europa. Reconhece-se o desespero com que essas almas se precipitam numa travessia fadada ao insucesso, mas a verdade é que o impacto que vão ter neste Aquipélago do Cão é negativo, e é com esses "prejuízos", que vão muito além de económicos, que o núcleo central de personagens do romance se debate. Procura minimizá-los - na realidade, omiti-los -, o que constitui um evidente dilema moral, gera culpa e macula a alma coletiva daquela comunidade.
O livro deixou-me um sabor agridoce na boca - não sugere uma solução, não dá a entender que a mesma exista, limita-se a culpabilizar os governos e os povos por se alienarem desse problema, ou por o varrerem para baixo do tapete. Com laivos de superstição e de um fatalismo que não creio que tenha sido bem desenvolvidos nas curtas 180 páginas deste quase "ensaio". Faltou o que me mantém presa aos raciocínios do autor: aquelas tiradas inéditas, esclarecedoras, clarividentes, que vêm acrescentar algo aos meus conhecimentos. Ao invés, achei o livro muito dependente de frases que buscavam uma profundidade que nunca atingiam, e até de alguns clichés de discurso. Considerei-o superficial, mesmo por lidar com temas tão lúgubres e delicados. Senti-o mais um embrião do que um livro concluído. Ainda assim, interessante.

Uma nota para a edição da Sextante: não detetei uma única gralha, livro lindo do ponto de vista estético, quer em cor, textura, tipo de letra ideal, facilitou muito a leitura, papel adequado, etc. Foi um caso raro em que o próprio suporte físico do livro contribuiu para elevá-lo e tornou a leitura mais aprazível.

Classificação: 3/5*****


Sinopse: «A história que ides ler é tão real como vós o sois. Passa-se aqui, tal como teria podido desenrolar-se ali. Seria demasiado cómodo pensar que aconteceu noutro lugar. Os nomes dos seres que a povoam pouco importam. Poderiam ser alterados. Pôr os vossos no lugar deles. Assemelhais-vos tanto, procedendo do mesmo molde inalterável. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, fareis a vós próprios uma pergunta legítima: terá ele sido testemunha do que nos conta? A minha resposta é: sim, fui testemunha disso. Tal como vós o fostes, mas não quisestes ver.»Três cadáveres de homens negros dão à praia, numa pequena ilha perdida do arquipélago do Cão. Dominados pela força divina do vulcão Brau, as gentes do Cão vivem da pesca, da agricultura, da vinha. Todos se conhecem. Que fazer com aqueles corpos? Philippe Claudel, com mão de mestre, escreve uma história notável, uma negra parábola sobre o cinismo, a indiferença e a apatia moral que invade o nosso tempo, tendo como pano de fundo a tragédia das migrações mediterrâneas de hoje.



quinta-feira, 15 de agosto de 2019

#229 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Crime e Castigo

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Dostoievski, por Vasily Perov @ 1872
"Vês, eu nesse tempo perguntava sempre a mim próprio: porque sou eu tão estúpido que, se os outros são estúpidos, e eu sei que são, não quero ser mais inteligente? Depois descobri, Sónia, que se ficamos à espera que os outros se tornem inteligentes, passará demasiado tempo… Depois descobri também que isso nunca acontecerá, que as pessoas não mudarão e ninguém as fará mudar e não vale a pena o esforço!”

“Crime e Castigo”, publicado inicialmente em 1866 por capítulos no “Mensageiro Russo”, tornou-se um clássico da literatura internacional. Confesso que a minha curiosidade quanto aos tão aclamados romances russos nunca foi muito intensa – li A Sonata de Kreutzer e Fumo sem encontrar nada de extraordinário excepto, talvez, algumas reflexões acerca da condição humana e uma dificuldade imensa em acompanhar aqueles caráteres impulsivos, auto-destrutivos e aqueles nomes que me soam tão exóticos. Procurei em “Crime e Castigo” traços do romantismo que, trinta anos anos, lavrava por toda a Europa – o da tuberculose, dos amores condenados, dos suicídios. Numa Rússia profundamente influenciada pelas culturas germânica e francesa, faria todo o sentido que as vozes literárias, de cunho nacionalista, se erguessem para imortalizar a essência de um povo tão sofredor, tão martirizado quanto o russo por essa altura, no entanto, com potencial para tanta grandeza… 

De algum modo, “Crime e Castigo” moldou-me, preparou-me para apreciar melhor a riqueza de emoções humanas desses grandes antropólogos russos, e creio que se voltar agora a ler um desses outros romances, ou se me aventurar num Anna Karénina tirarei muito mais proveito deles do que antes de o ter lido. De repente, vejo-me fascinada pela realidade russa. Há livros assim, que nos expandem a compreensão e nos oferecem um conhecimento maior do mundo ao nosso redor. Há livros que criam um inequívoco antes e depois no leitor…

Creio que é nesse contexto que surgem Dostoievski, Tolstoi, Turguenev e tantos outros seus contemporâneos. Acredito que um escritor é melhor quanto mais tiver sofrido, quanto mais se inquietar com os desconfortos de ser de carne e osso, de sentir, de perder, e a Rússia da segunda metade do século XIX era prolífera nestes desconsolos, pelo que brotaram dela várias vozes superiores nesta nobre arte que é o observar e imortalizar um tempo por via das letras.

Acompanhamos Ráskolnikov numa espiral de desencanto quanto ao seu futuro, às suas circunstâncias e às das pessoas que o rodeiam, em especial a mãe, a irmã, o melhor amigo. Ao cruzar-se com um núcleo sofredor composto por um ex-funcionário público, a sua esposa que decaiu de um estatuto de filha de “quase” governador para infeliz e tísica mulher de um bêbedo (aliás, a personagem que mais me cativou, Katerina Ivánovna), e as muitas e miseráveis crianças desta malfadada união, começa a envolver-se nas misérias de outros, e acaba por ir pondo de lado, em ocasiões, os seus próprios delírios. Destaca-se ainda Sónia, que se ocupa do bem-estar de todos, “aceitando o sofrimento” para apaziguar um pouco as angústias de quem a rodeia, e que personifica uma espécie de Maria Madalena, abnegada e crente, benevolente e sacrificial.

Para mim, a cena de um certo banquete fúnebre é o momento inesquecível deste romance em seis partes, um humor tão apurado, tão delicioso, que não queria sair nunca daquela mesa e daquela companhia:

"- Essa cuca é que tem a culpa de tudo. Compreende de quem estou a falar. Dela, dela! - e Katerina Ivánovna indicava-lhe a senhoria. - Olhe para ela: arregala os olhos, sente que estamos a falar dela, mas não percebe. A coruja! Ah-ah-ah!... E o que quer ela mostrar com aquela touquinha? Gha-gha-gha! Já reparou que ela quer fazer crer a toda a gente que me ajuda e que me honra com a sua presença? Pedi-lhe, como a uma pessoa decente, que convidasse pessoas de qualidade, e concretamente os conhecidos do falecido, e olhe o que ela me trouxe: uns palhaços! Uns porcalhões! Olhe aquele, com a cara cheia de sinais: parece uma ranhoca com duas pernas. E estes polacos...ah-ah-ah! Gha-gha-gha! Ninguém, nunca ninguém os viu por aqui: e porque vieram cá, pergunto eu? Sentadinhos lado a lado, todos cerimoniosos. (...) Não faz mal, que comam. Ao menos não fazem barulho, mas... mas, na verdade, receio pelas colheres de prata da senhoria!... Amália Ivánovna - disse, dirigindo-se à senhoria, quase em voz alta -, se por acaso roubarem as suas colheres, eu não me responsabilizo por elas, aviso-a já! Ah-ah-ah! - e desatou a rir, dirigindo-se outra vez a Ráskolnikov, indicando-lhe de novo a senhoria com a cabeça e alegrando-se com a sua pilhéria. - Não percebeu, não percebeu outra vez. Olhe para ela, ali de boca aberta: uma autêntica coruja com fitas novas, ah-ah-ah!”


“Crime e Castigo” está cheio de personagens complexas, absorventes, que causam pasmo e exasperação. De algum modo, este segundo núcleo proporciona uma redenção inesperada à nossa alma-penada, o assassino torturado que vagueia por S. Peterburgo, o jovem idealista caído da graça de um futuro promissor, mas gorado. O autor criou, neste seu magnus opus, um retrato nítido de uma Rússia desgastada e decadente, sem oportunidades, onde imperam os vícios e as vilanias, pontuados de muita depravação e de uma tendência quase natural para transgredir a lei e os limites da moralidade, para se embebedar, e também por um certo regozijo perante a própria desgraça. A filosofia, a muita dialética que povoa a riqueza destes diálogos vertigionosos, a loucura quase palpável destas personagens em situações extremas de contrariedade e insatisfação, as sementes para a Rússia socialista ali tão evidentes… 

A obra de um génio das letras e da arquitetura narrativa, que me chega tão atual, tão intemporal, cento e cinquenta anos depois do seu momento. Um daqueles livros que não conseguirei esquecer pelo tom lúgubre dos cenários, a dimensão da claustrofobia e do desespero na alma de Ráskolnikov e dos seus conterrâneos. Uma obra colossal alinhavada em torno de um jovem de 23 anos que abandonou os estudos de Direito por acreditar que as pessoas de dividem em “vulgares” e “invulgares”, e que o “invulgar” é raro e é por sua ação que o mundo progride, que a antiga ordem se desfaz para que nasça uma nova, revolucionária, e que lhe é vital ultrapassar os limites das convenções para provar a si mesmo que não é um mero “piolho”, mas sim uma “pessoa”, e por isso urge cometer um crime, livrar-se de uma criatura indesejada e até nociva para a sociedade. 

"Ou supões que eu fiz o que fiz como um tolo, sem pensar? Fi-lo como um homem inteligente e foi isso que me perdeu! Pensarás que eu não sabia, por exemplo, que se começava a interrogar-me sobre se tinha o direito ao poder, precisamente por isso não tinha o direito ao poder? Ou que, se me fizesse a pergunta: é um piolho ou uma pessoa?, por conseguinte a pessoa não era um piolho para mim, mas era piolho para aquele que vai em frente sem fazer essas perguntas…”
Palpita-me que é outro livro que me ficará para a vida, que me há-de ocorrer em inúmeras situações e que voltarei a ler, quando a hora de reler os livros da minha vida chegar.

Classificação: 5/5*****

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

#1 - Jonathan Bate on the Age of Romanticism


Wanderer above the sea of fog - Casper David Friedrich

"Romanticism is above all a movement of ideas. The idea of revolution and the idea of nacionalism. The preposterous sugestion that women, slaves and even animals might have rights. Reverence the nature, vegetarianism and enviromental conscienceness. The radical theory of anarchism and the conservative theory of the organic state. The cult of personality and the very idea of sincerity. The reinvention of poetry as the expression of the self. The belief that nothing matters more to us as human beings than our sensations, our feelings. That individualism and individuals' ideals, whatever they might be, define our freedom and our modernity (...) The modern meanings of the words imagination, creativity, genius, literature. The freedom fighter on the streets and the hiker in the mountains. (...) The alarming notion that it might be glamorous to take drugs and to commit suicide or, at the very least, to live hard and die young. The rebel and the outsider. (…) These are all ideas that emerged or grew in the Romantic Age.”

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

#228 NABOKOV, Vladimir, Lolita

Opinião: Este livro é um daqueles que se pega à pele de quem o lê e assim segue, vida afora. Não me esquecerei da mente conspurcada do Humbert, a ousadia da Lolita e o ambiente doentio que é proporcionado por estas duas pessoas, tão retorcidas, tão marcadas pelo pior da natureza humana. Foi a primeira vez que dei por mim dentro da cabeça do vilão e, consequentemente, surpreendi-me ao desejar que os seus planos se concretizarem sem embaraços. Alguma magia o Nabokov dedicou a este "Lolita"

Classificação: 5*****

Sinopse: «Quase quarenta anos depois, este romance tão artificial criou uma nova palavra internacional ("lolita"), inventou uma América — a dos motéis e autoestradas — de que se nutre ainda boa parte da narrativa americana contemporânea, é uma das obras com o inglês mais rico e preciso da literatura deste século e, ao contrário das acusações iniciais de pornografia que teve de sofrer, é talvez — e no que me diz respeito — o romance mais melancólico, elegante e lírico de quantos li.» [Javier Marías in Literatura e Fantasma]


«A única história de amor convincente do nosso século.»
[Vanity Fair]

«Nabokov escreve prosa do único modo que esta deve ser escrita, ou seja, extasiadamente.»
[John Updike]