Depois de ler O Barulho das Chaves e Almas Cinzentas, rendi-me a Philippe Claudel. Sobretudo o último romance marcou-me de forma inesperada, e recordou-me de outro autor Francês cujo trabalho também admiro: Sébastien Japrisot, falecido em 2003, que me encantou com Um Longo Domingo de Noivado.
Este "O Arquipélago do Cão" foca-se, como a própria sinopse indica, em torno do facto de o nosso Mediterrâneo se estar a tornar num cemitério, um repositório das vítimas de guerras, fome, crises humanitárias em geral. É clara a premissa do livro, que sugere que há uma responsabilidade coletiva no modo como gerimos a situação, mas é tudo tão mais complexo do que isso. Creio que não se discute aqui a humanidade dos três corpos que dão à costa, nem a dignidade daquelas pessoas com base na cor de pele ou crença religiosa. Parece-me que o ponto fulcral, e que passa ao lado do romance porque este tem um tom apressado de novela, ou talvez de ensaio em que a posição do autor surge clara, é que a maioria dos países europeus não tem qualquer responsabilidade sobre o desterro voluntário - e tantas vezes o perecimento - destes homens que arriscam a vida para chegar ilegalmente à Europa. Reconhece-se o desespero com que essas almas se precipitam numa travessia fadada ao insucesso, mas a verdade é que o impacto que vão ter neste Aquipélago do Cão é negativo, e é com esses "prejuízos", que vão muito além de económicos, que o núcleo central de personagens do romance se debate. Procura minimizá-los - na realidade, omiti-los -, o que constitui um evidente dilema moral, gera culpa e macula a alma coletiva daquela comunidade.
O livro deixou-me um sabor agridoce na boca - não sugere uma solução, não dá a entender que a mesma exista, limita-se a culpabilizar os governos e os povos por se alienarem desse problema, ou por o varrerem para baixo do tapete. Com laivos de superstição e de um fatalismo que não creio que tenha sido bem desenvolvidos nas curtas 180 páginas deste quase "ensaio". Faltou o que me mantém presa aos raciocínios do autor: aquelas tiradas inéditas, esclarecedoras, clarividentes, que vêm acrescentar algo aos meus conhecimentos. Ao invés, achei o livro muito dependente de frases que buscavam uma profundidade que nunca atingiam, e até de alguns clichés de discurso. Considerei-o superficial, mesmo por lidar com temas tão lúgubres e delicados. Senti-o mais um embrião do que um livro concluído. Ainda assim, interessante.
Uma nota para a edição da Sextante: não detetei uma única gralha, livro lindo do ponto de vista estético, quer em cor, textura, tipo de letra ideal, facilitou muito a leitura, papel adequado, etc. Foi um caso raro em que o próprio suporte físico do livro contribuiu para elevá-lo e tornou a leitura mais aprazível.
Classificação: 3/5*****
Sinopse: «A história que ides ler é tão real como vós o sois. Passa-se aqui, tal como teria podido desenrolar-se ali. Seria demasiado cómodo pensar que aconteceu noutro lugar. Os nomes dos seres que a povoam pouco importam. Poderiam ser alterados. Pôr os vossos no lugar deles. Assemelhais-vos tanto, procedendo do mesmo molde inalterável. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, fareis a vós próprios uma pergunta legítima: terá ele sido testemunha do que nos conta? A minha resposta é: sim, fui testemunha disso. Tal como vós o fostes, mas não quisestes ver.»Três cadáveres de homens negros dão à praia, numa pequena ilha perdida do arquipélago do Cão. Dominados pela força divina do vulcão Brau, as gentes do Cão vivem da pesca, da agricultura, da vinha. Todos se conhecem. Que fazer com aqueles corpos? Philippe Claudel, com mão de mestre, escreve uma história notável, uma negra parábola sobre o cinismo, a indiferença e a apatia moral que invade o nosso tempo, tendo como pano de fundo a tragédia das migrações mediterrâneas de hoje.