Se eu conhecesse o
Phillip Carey, provavelmente desprezá-lo-ia. Se fosse criada de mesa, jovem e
pobre, provavelmente ter-me-ia aproveitado dele como a Mildred Rogers faz. Da
página duzentos e pouco até à quatrocentos atravessamos os novos erros e
avaliações de consciência do Phillip. Ele não consegue ser totalmente feliz
porque, sendo uma pessoa do mais banal que existe, insiste em procurar ser
maior, acreditando que algo de grandioso lhe está reservado. Este medo de
perecer sem ficar na memória, sem responder às grandes questões filosóficas nem
se engrandecer através da Arte ou duma profissão, é muito humano e
identificável com todos nós. Com a diferença de que o Phillip é tão volátil que
abandona tudo o que está a fazer a cada vez que acorda com os pés de fora. Como
bem diz o seu tio vigário, falta-lhe perseverança. Ele quer algo fácil,
instantâneo. Anseia por liberdade e por aventura mas, na realidade, é snob, burguês, aborrecido e insosso. É
tão palpável, contudo, que é impossível não nos debruçarmos com interesse para
esta personagem. É a Mildred, contudo, que até aqui fez emergir no Phillip o
que de mais fraco ele tem.
É-lhe servil, cegamente devoto – cegamente está aqui mal aplicado, porque ele reconhece que ela é estúpida, snob, pretensiosa, vaidosa, interesseira e obsoleta. Ainda assim, amava-a. É-lhe um paradoxo ver-se assim desprovido de razão e de integridade. Esta mulher, esta miserável criada de uma casa de chá, desdenha dele, aproveita-se dele, não se preocupa realmente com nada que lhe diga respeito e dispensa-o sempre que alguém lhe oferece algo melhor. É feia – lábios finos, pálida, anémica, magra, sem ancas, sem peito, de franja. E ele arde de desejo por todas estas imperfeições físicas, por uma vez familiarizado com as incongruências do amor e espicaçado pelo desejo carnal. Ele tem de tê-la. O rapaz tímido, ingénuo, é agora inflamado e espontâneo. Pena de ciúmes, é esbanjador em relação à atitude poupada anterior. Obcecado em conseguir o afecto desta mulher leviana, desperdiça até aquilo que poderia ter sido um bom futuro ao lado de uma viúva que o ama mais do que ele a ela. Mas como o próprio Phillip diz, o que importa no amor não é tanto ser amado, mas amar. E por isso sujeita-se aos caprichos da Mildred. Vejamos onde vai isto dar.
(Tendo lido mais cem
páginas)
Concluo que o Phillip é
daquelas pessoas tão desengraçadas e de tão baixa auto-estima que, por serem
incapazes de se valorizar, pensam que só adquirem afecto comprando-o. Então, “aproveitando-se”
dum momento difícil da Mildred – na realidade é ela que se aproveita dele –
julga que a tem na mão porque ela precisa dele financeiramente. Embora tenha
consciência de que ela é uma “cadela”, como ele próprio diz, que salta de colo
em colo, é a única maneira de a ter e contenta-se com qualquer farrapo de
atenção que ela lhe atribui. Em troca delapida a herança do pai em chapéus para
essa ingrata (palavras dele próprio), vestidos, e chega ao ponto de ter tão
pouco amor-próprio que lhe sustenta a filha de outro e lhe patrocina jantares e
idas a teatros de variedades quando ela se enamora do melhor amigo dele. Mais
do que isto… paga-lhes umas românticas férias em Oxford, tudo porque compreende
que ela se tenha apaixonado pelo seu bom amigo, que considera tão mais
cativante do que ele próprio, e porque assume que a culpa é sua por tê-los
apresentado. Não estamos perante uma personagem vulgar ou cativante. O Phillip
é uma pessoa desprezível na sua cobardia e na sua timidez. É incapaz de um
gesto mau, tirando chamar-lhe “cadela” e ajoelhar-se-lhe aos pés em seguida,
que sabe ele de dar-se ao respeito? Culpa o pé boto pelos seus problemas
relacionais, mas nesta fase do livro acaba de ser confrontado por um jovem com
pé boto que é perfeitamente feliz. Talvez tenha entendido que os seus problemas
não são físicos, mas sim que sofre de uma fraqueza de carácter exasperante. Que
personagens notáveis, Somer.
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