sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

#180 SMITH, Deborah, Segredos do Passado

Sinopse: Filha de uma respeitada família de Dunderry, na Geórgia, Claire Maloney era uma menina caprichosa e mimada, mas isso não a impediu de travar amizade com Roan Sullivan, um rapaz feroz, órfão de mãe, que vivia numa caravana com o pai alcoólico. Nunca ninguém conseguiu compreender o laço que unia as duas crianças rebeldes. Mas Roan e Claire pertenciam um ao outro¿ até à violenta tarde em que o terror tomou conta das suas vidas e Roan desapareceu.
Durante vinte anos, Claire procurou o rosto do seu amor de infância por entre a multidão. Durante vinte anos, esperou ansiosamente uma carta e sobressaltou-se a cada toque do telefone. No entanto, quando Roan surge novamente na sua vida, a alegria de Claire não é completa, pois ao contrário do que se afirma o tempo não apaga todas as feridas.
Algumas permanecem ocultas, prestes a reabrir-se ao mais pequeno incidente. Que segredos do passado envenenam o presente e minam o futuro?

Opinião: Sou super fã da Deborah Smith, pelo que este é o quarto livro que leio da autora. Comecei a lê-la numa idade bem tenra, em que “A Doçura da Chuva” me surpreendeu pela profundidade e complexidade das personagens. Depois avancei para “O Café do Amor”, em que uma mulher muito bonita e muito ferida regressava a casa para se reconciliar com a vida. De seguida, e de longe o meu favorito, li “Milagre”, onde a autora criou um amor devastador entre o casal protagonista, das vinhas da Califórnia para uma mansão em França.
E, por fim, li “Segredos do Passado”. Se não tivesse lido os outros, talvez não me tivesse aborrecido tanto com este livro. No topo da pilha, torna-se só “mais do mesmo”, apesar de ter sido escrito antes de alguns deles.
A primeira parte do livro valeu-lhe cinco estrelas. O tecido do passado está imaculado: os traumas a adensarem-se, o desejo de redenção, o jogo de sentimentos entre o orgulho e a vergonha, a necessidade e a resistência, foram-me preciosos. A relação entre a Claire e o Roan nasce numa pequena localidade da Georgia, quase totalmente povoada de imigrantes irlandeses. O modo como a família da personagem principal transpôs as tradições do Éire para este estado americano é muito agradável de ler, através de baptismos de montanhas, festividades e cantorias. A Claire é a menina da vila, filha da família mais influente da região – os que a povoaram e encheram de serviços. O Roan é o filho de um antigo veterano do Vietname, um homem violento e torturado que só sabe azedar-lhe a existência. O modo como duas crianças tão improváveis se unem contra o mundo é enternecedor. O meu coração estive sempre numa montanha russa nessa primeira parte do livro, oscilando entre o horror perante a crueldade e o deleite quando por fim é demonstrado algum carinho para com a criança indigente da cidade.
Na minha opinião, a escritora não soube resumir nem trazer um toque de especial à segunda parte do livro. Não era fácil, uma vez que a primeira foi tão soberba. Ainda assim, a segunda parte é como que um eco da primeira. Não há momentos muito marcantes, não há a picardia das avós da Claire, não há o oscilar de emoções da primeira. Há um reencontro e depois há muita reminiscência. Recordam-se do que passou, do que os afastou, do que gostariam de ter feito no passado. E há uns quantos segredos, mas pulsam mais ou menos à superfície, e depois de os conhecermos andamos várias dezenas de páginas a acompanhar as personagens torturadas, à espera de vê-los revelados a quem de direito.
Achei que o livro peca por cento e cinquenta páginas. Bastavam cerca de trezentas páginas para se cortarem todas as repetições, todas as personagens que nada vêm acrescentar, todas as historietas paralelas que nos afastam do foco principal e nos vão cansando. Demorei imenso tempo a ler o livro – ainda que me importasse de modo genuíno com a Claire e o Roan -, porque quando esperava algo simples vinha mais uma recordação de algo que havia lido há cem páginas atrás. Foi doce e desolador, no início, e depois doce e chato, no fim. No entanto, voltarei sempre a ler Deborah Smith, quem sabe pulando as partes que me cheirarem a palha.


Classificação: 3***/**

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

#23 As Cinquenta Sombras Mais Negras

Título oficial: Fifty Shades Darker @ 2017
Realizador: James Foley
Actores principais: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Kim Basigner

Classificação IMDb: 4,9
 Minha classificação: 2

No Dia dos Namorados, decidi cultivar o meu lado masoquista e, numa de desportiva, fui com uma amiga ao cinema ver “As Cinquenta Sombras mais Negras”. O primeiro tinha oferecido bastante material para risadas, e a minha única expectativa quanto ao filme é que pudesse rir-me do ridículo. Começo logo a rir-me pela tradução portuguesa da coisa, que lhe roupa o sentido, se é que tem algum...
De salientar que nunca tinha lido os livros (li apenas 30 páginas do primeiro, por ser tão mau que o meu cérebro se recusou a prosseguir). Já a ver “Crepúsculo” – outra vez o meu lado masoquista –, o meu cérebro vai ameaçando desligar-se, tipo corte eléctrico. Sofre assim uns apagões e tal, mas ao menos conseguia ir lendo as falas sem encontrar defeitos em todas as palavras. Mas nunca me tinha acontecido, durante uma sessão de cinema, sentir-me a ponto de explodir por não poder assinalar todas as absurdidades, e por as minhas pernas terem quase vida própria e quererem sair dali. Felizmente fui com a melhor das companhias, e apesar de sermos as duas mais odiadas da sala - devido às risadas, aos suspiros, aos "oh my God", "ridiculous" e etc., pude respirar a meio da película e despejar na língua inglesa o mal que aquilo me estava a fazer à saúde. Depois mentalizei-me que era só mais uma horinha, e que se estivesse com cólica renal seria pior, e lá assisti à segunda parte também.

Que fenómeno é este que encheu, ontem às 21:40, a sala 2 de cinema do Almada Fórum? Fileiras inteiras de mulheres de todas as idades e casais jovens pejavam o cinema de uma ponta a outra, até a Primark estava vazia ontem, porque 70% do público-alvo estava de bilhete em punho dois andares acima. Seis anos depois de sair o primeiro livro, continuo sem resposta.

Dakota Johnson continua embaraçosamente má no seu papel. Eu entendo, não é fácil ler aquelas saídas “Sim, aceito jantar contigo, mas só porque estou com fome”, ou gaguejar a cada três linhas, ou gemer a cada duas, ou soltar gritinhos de surpresa a cada vez que muda de direcção ao caminhar. 

Jamie Dornan está bem melhor neste filme, parece que conseguiu ultrapassar o pouco à-vontade do primeiro (arrumando falas como “eu não faço amor, eu fodo à bruta”), mas ainda assim teve de passar por dois momentos em que teriam de me pagar muito bem como actriz: o primeiro ao fingir que está a ter pesadelos, a rebolar-se nos lençóis e a gritar “não”, de modo a que a sua cara-metade venha consolá-lo a meio da noite. Só expliquei em que consiste a cena porque nunca viram isso em lado nenhum. O segundo é quando é obrigado a debitar estas palavras: “tu ensinaste-me a foder, ela ensinou-me a amar”. De salientar que também está bem melhor fisicamente, é da barba. Está mais confortável no personagem e acaba por ser a única coisa menos má do filme, basta imaginarem aquele perfil a dizer-vos ao ouvido “tira as cuecas”, e acabou-se. Está comprado, vamos todas ver o filme. Foi mais ou menos isso que aconteceu. Só que não… até isso se dilui no dilúvio de estupidez. Quando o filme começava a aleijar-me demasiado, punha a vista nele e ligava o piloto automático, e lá aguentava até à próxima panorâmica de Seattle.
É do livro, entende-se à terceira linha. É a escritora que não tem talento, pertinência, tacto, substância, profundidade. Acredito plenamente nela quando diz que ia escrevendo o livro no seu Blackberry, porque a preguiça está lá e qualquer pessoa sabe como se tem de abreviar a lista de compras quando usamos o bloco de notas do telemóvel. Podia ter podido a coisa depois, mas parece que não se deu ao trabalho.

A ideia do ciúme e da posse levados ao extremo é perigosa. A ideia de que uma mulher possa virar as costas a compromissos de trabalho porque o namorado tem ciúmes do seu chefe, pior ainda. E que a escritora acabe por mostrar que o namorado tinha motivos (quando nenhum tinha sido apresentado) para desconfiar do chefe *porque o chefe acaba por se atirar à rapariga* é a gota de água. O facto de este sétimo sentido do Grey acerca de quem quer comer a sua namorada desinteressante, se provar assertivo é um livre passe para que os homens deem ordens às mulheres sob o pretexto do “vais ver, acredita em mim”. Não sendo linear, porque conheço inúmeras mulheres inteligentes, independentes e capazes, mas não são elas as que metem um dia de folga para ir ver este filme. E essas não se sabem proteger, e os homens ao lado delas, ao ouvido dos quais elas explicavam que ele tem um trauma de infância (que ninguém que não tenha lido o livro entende – como eu), começam a achar que como as mães lhes bateram com a concha da sopa, agora podem usar-se de violência para com as namoradas, porque elas estavam ali a rir-se, a torcer as pernas e a soltar longos suspiros enquanto o Grey aplica umas palmadas bem energéticas nas nádegas da Miss Steele. Para quem nada entende do franchising, há palmadas e palmadas. E estas não são do tipo palmadita, são mais do tipo que a pessoa não se consegue sentar no dia seguinte.

Supondo que o cinema e as artes não influenciam assim tanto as pessoas, e que a cena da manteiga em "O Último Tango de Paris" não impulsionou a prática de sexo anal, ficamos só com uma história estúpida, vazia e cheia de incongruências. Uma escrita preguiçosa e desinspirada, em que cada conflito é uma preparação para a cena de sexo seguinte, e em que o protagonista é dono do mundo, viaja em colunas de carros para ir a uma festinha em casa da mãe, refugia-se num barco quando acha que a casa está a ser ameaçada e mantém dossiers acerca de todas as gajas com quem privou. Uma história impossível sobre um homem que compra a empresa onde a namorada trabalha, só porque é maluco, e em que lhe enfia dinheiro pela goela abaixo, quer ela queira, quer não. E ela, claro está, não quer.

De tudo o que me irritou nisto das Cinquenta Sombras de $, o pior é a fingida aura de sucesso e de independência da protagonista, sendo que toda a gente a aborda para lhe dizer que o Christian gosta de mandar e que as mulheres lhe sejam submissas, e que ela não é o tipo de mulher que se deixa controlar. Certo. Ela não é o tipo de mulher que se deixa controlar. Quando, nestas quase três horas de dois filmes assistidos, é que a personagem feminina tomou uma iniciativa? Fez uma pergunta pertinente? Tomou uma decisão? Uma mulher que deixa de cumprir compromissos de trabalho por ordem do namorado, que dá dois minutos de luta só para não ser demasiado óbvio que é unidimensional, para depois ceder sempre? Ah, está bem. No fim do primeiro, quando ele a espanca e ela lhe diz que aquilo não é para ela. (Porém, contudo, no seguimento…) De resto, da pouca vida que E.L. James soprou a esta personagem, só lhe resta gaguejar e falar para dentro, por sorte com toda a gente ao redor muito interessada em escutar o que ela tem a dizer. Nunca a expressão “mosquinha morta” se aplicou melhor.

Por último a questão do ardente, escaldante, alucinante, inigualável sexo entre as personagens principais…

O que vejo é uma história escrita por mulheres e para mulheres, em que o homem cumpre as suas fantasias, certo, mas visualmente o que se vê, o que se ouve, o que se respira são as fantasias de uma mulher. Engraçado que a câmara, como é hábito, esteja focada no corpo feminino, mas é um erro de marketing. O olhar deste lado é de mulheres, pelo que surge assim mais uma coisa para corrigirem. Entendo que depois de um século a explorarem o corpo das mulheres no cinema, a favor dos homens, agora tenham de admitir que as mulheres também têm dinheiro no bolso para gastar, por isso basta mudarem a câmara das pernas da Anastasia para os abdominais do Jamie Dornan, como na cena em que ele está a fazer ginástica em casa, para verem o que são as gajas a gritar mais alto ainda
E em que consistem essas fantasias de mulher que o Mr. Grey cumpre com tanto entusiasmo? São as de um homem que tome iniciativa, que se mexa, que paire acima dela, que lhe dê ordens (geralmente relacionadas com a roupa interior dela, não com a sua carreira), que mostre que a deseja, que se aplique em dar-lhe prazer. Pelo menos pelo filme, não parece que a Steele dê grande retorno ao pobre homem. Uma vez mais, a sua falta de iniciativa a impor-se, e também nunca a vemos empenhada em satisfazê-lo a ele. Neste sentido, não me parece que os casais possam beneficiar muito desta promessa de sexo fantabulástico. Se a mulher não se mexer, e se o homem for como muitos, à espera de ser atendidos, não me parece que as brincadeiras vão muito longe, pelo menos sob o signo das Cinquenta Sombras. Lá está: escrito por mulheres e para mulheres, num universo onírico em que o homem não busca nada e dá tudo, ou, mais perfeito ainda, em que o homem descobre nos gemidos (ainda que de dor) da mulher a sua própria satisfação, e não precisa de mais nada.

Há coisas que sinceramente preferia não saber do universo íntimo destes dois personagens monocromáticos. É que isto não é bem pornografia, mas também não é bem a típica história “rapaz conhece rapariga”, e por várias vezes pensei “já estou a saber demais”. Não quero saber em que posições eles fazem sexo – o que é esquisito, porque o assunto interessa-me. Eles é que não. Este casal tão pouco nítido, em nada palpáveis, nem através da prometida quebra de tabus ganha cor. Fica por ali, fora da sala de cinema, sem alma nem contornos reais. Como o meu cérebro, que também se recusou a entrar na sala e que só me voltou a falar hoje de manhã.
A cada vez que ele dizia que aquela casa também era dele, e a outra propriedade, e as jóias, e os carros, e as empresas, só me perguntava como tudo isto, esta inverosimilhança flagrante, pode apelar a todas as raparigas que estavam sentadas na sala de cinema, e como os seus homens, quem sabe de ordenado mínimo em carteira, podem sentir-se excitados perante uma história de um tipo novo, bom de cama e podre de rico, que faz o que quer de uma miúda descompensada. 

Para entenderem o quão má a coisa é, deixo uma lista de inconsistências. Só não escrevo mais porque não estou desempregada:
Portanto atenção spoiler alert:
- A rapariga passa a vida metida na casa dele, mas quando vai a casa para buscar algumas coisas, é na escova de dentes que pega – porca!
- Há uma antiga submissa do Grey à solta, apostada em assassinar a sonsinha de serviço, e apesar de ser uma pessoa frágil e desequilibrada, consegue infiltrar-se na garagem do Grey, cuja casa é tipo uma fortaleza, mas nunca explicam como;
- Quanto à mesma rapariga, o Grey diz que tem “o seu pessoal” em cima do acontecimento para a encontrar, mas a rapariga entra na casa da Anastasia na boa – sem chave, sem arrombar a porta, sem partir uma janela, para vê-los dormir. Como? Fica por nossa conta.
- Ainda quanto à mesma rapariga, que é o grande conflito e suspense do filme, o pessoal do Grey continua em cima dela, mas uma vez mais ela entra tranquilamente na casa da Anastasia, sem que se saiba como posto que não há nada arrombado nem fora do sítio, para a surpreender com outra das suas inspirações. Acham que nos explicariam porquê? Que se lixe a lógica;
- O matulão despenca-se com grande aparato num helicóptero acompanhado de uma assistente (julgo), acham que morre? Não, primeiro é socorrido não se sabe por quem, faz todo o caminho de Portland para Seattle não se sabe como, chega todo desgrenhado a casa sem que uma equipa de socorros tenha notificado a família de que está inteiro, e apresenta-se em casa a dizer que perdeu o telemóvel e por isso não pode ligar, enquanto a televisão notifica a sua provável morte e a família chora reunida;
- Acham que, no seguimento do acidente, o homem foi descansar e quem sabe reflectir sobre a vida? Não, foi fazer aquilo que pagámos para vê-lo fazer;
- Acham que uma pessoa com sangue na fronte vai ao hospital ou fica em repouso? Nope, o todo-poderoso Grey vai à sua festa de aniversário, com direito a foguetes, e a empregada que se despencou com ele está lá, sem uma entorsezita que seja;
- Christian Grey, com tantas empresas e investimentos, que toca piano e pilota helicópteros e barcos, que viveu uma vida de horror e traumas que o marcaram para sempre, tem que idade? Este bilionário (milionário está fora de moda, a E.L. James quis fazer tudo em grande) que no meio de todo o seu sucesso ainda tem tempo para dar uns tautaus às moças com chicotes e fivelas e coleiras na sua sala vermelha, tem que idade, vá? Um palpite? Trinta e cinco, como eu pensava? Não, não, senhores. Tem vinte e sete. Now deal with it;
- Está sempre lua cheia em Seattle, espero que a NASA já esteja em cima do acontecimento.

Para terminar, concordo com o anónimo – estou a varrer a internet à procura dessa crítica, mas não encontro –, que diz que a coisa mais profunda sobre o filme são o cordão de bolas metálicas que a Anastasia Steele usa. Agora deixo-vos a reflectir onde.