Sinopse: Novo romance de Rentes de Carvalho. Uma história de violência, em que a progressiva definição dos contornos da memória trará novas e dolorosas verdades. Romance inédito, nele se conta a história de António Roque, homem atormentado, possesso do demónio de funestas memórias. As imagens do passado que regularmente se apoderam dele transformam-no num monstro capaz dos piores atos. No entanto, a obscura história da irmã e do homem abastado que se servia dela - e que, apesar de morto, continua a instigar-lhe um ódio devastador - não é exatamente como ele pensa que se lembra. Depois de anos emigrado na Alemanha, o Meças regressa à sua aldeia de origem. Com ele vivem o filho (a quem detesta) e a nora (a quem deseja, mas inferniza a vida), atemorizando, de resto, todos os que com ele se cruzam. Uma história de violência, em que a progressiva definição dos contornos da memória revelará novas e dolorosas verdades.
Opinião:
"Criei-me a falar sozinho, a brincar sozinho, forçado a inventar um mundo que, pela fantasia, compensasse o escasso território do pátio em que me isolavam, como se o contacto com os outros fosse um perigo ou desse peçonha.”
Este é o primeiro romance que li de J. Rentes de Carvalho, apesar de o próprio, na Feira do Livro de Lisboa do ano passado (2018) me ter aconselhado a começar pelo "Ernestina". Esse fica para depois. Na mesma ocasião, alguém mencionou que o livro projetou imagens muito sombrias na sua mente, e que acabava por ligar as luzes todas de casa à noite, enquanto o lia, nem sequer senti que a maldade desta personagem fosse de cariz tal que o livro me conseguisse roubar o sono. Não senti esse assombro, mas “O Meças” não deixa de ser um retrato pesado, por vezes agoniante e cru de uma realidade rural que continua a ser a do nosso país em 2019. Porém, como em parte fundamentadas as canalhices da personagem principal, acabo por lhe atribuir mais humanidade do que pura vileza.
Uma das ideias que o livro desenvolve, e que vai ficar comigo durante os próximos tempos, é a de que existe um desencontro entre a imagem de um meio rural português perante os estrangeiros e os que de fora o vêem, e a realidade daquelas vivências. O Portugal de montes idílicos, de ingénua iliteracia e de brandos costumes, tantas vezes elogiado na comunicação social e romanceado na literatura, não existe em “O Meças”, como não existe para mim nem para todo aquele que tenha tido contacto com o país profundo e visceral. Um Portugal de vinganças, incesto, maus fígados, copos e peneiras. Este é, para mim, a espinha dorsal que dá alento a estas 180 páginas.
O autor opta por contar a história a quatro vozes que nos chegam chegam na primeira pessoa, sendo que também surgem trechos narrados por uma voz ausente. António Roque é o Meças, e também o detentor do discurso mais ríspido, mais violento, com rasgos de um Português floreado. Um pouco como se nos chegasse, através dele, o trauma, a dureza, a ausência de remorso, a iliteracia, o preconceito sofrido e o outro, praticado, que é são a essência do livro. Por vezes torna-se difícil acompanhar-lhe os trejeitos de linguagem, mas, terminada a leitura, parece-me que era necessário distinguir esta alma das restantes.
A segunda voz é a do filho do Meças, Abel. Sobre esta relação pai e filho: “São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Testamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta”. Esta segunda voz assemelha-se um pouco àquela que pertence à nora do Meças, Isaura. O discurso é mais moderno, escorreito, e o tom mais leve. Por último surge-nos outra voz, num tom límpido e cristalino, nem por isso mais leviano na sua mensagem, e que diria ser a voz a que nos habituamos quando lemos o comum dos romances, sobre pessoas de parte anónima. É quase um discurso universal no qual repousamos depois da verborreia plena de obstáculos do Meças.
Gostei da história. É para isto que leio livros: para ser introduzida a cenários, a pessoas, a psiques várias – e vejo-as, neste romance, complexas e arredias –, a dramas e dilemas pessoais. O que procuro nos autores é, sempre, o seu imaginário. Entretenham-me com uma história que me cative e eu regresso. Enfadem-me com vocabulário pedante e eu viro as costas.
Apesar de alguma dificuldade em entrar no tom, “O Meças” deixou uma boa impressão das capacidades do seu criador, e estou certa de que, cedo ou tarde, farei a travessia para “Ernestina” com tanta ou maior expetativa.
Classificação: 3,5***/*****
Este é o primeiro romance que li de J. Rentes de Carvalho, apesar de o próprio, na Feira do Livro de Lisboa do ano passado (2018) me ter aconselhado a começar pelo "Ernestina". Esse fica para depois. Na mesma ocasião, alguém mencionou que o livro projetou imagens muito sombrias na sua mente, e que acabava por ligar as luzes todas de casa à noite, enquanto o lia, nem sequer senti que a maldade desta personagem fosse de cariz tal que o livro me conseguisse roubar o sono. Não senti esse assombro, mas “O Meças” não deixa de ser um retrato pesado, por vezes agoniante e cru de uma realidade rural que continua a ser a do nosso país em 2019. Porém, como em parte fundamentadas as canalhices da personagem principal, acabo por lhe atribuir mais humanidade do que pura vileza.
Uma das ideias que o livro desenvolve, e que vai ficar comigo durante os próximos tempos, é a de que existe um desencontro entre a imagem de um meio rural português perante os estrangeiros e os que de fora o vêem, e a realidade daquelas vivências. O Portugal de montes idílicos, de ingénua iliteracia e de brandos costumes, tantas vezes elogiado na comunicação social e romanceado na literatura, não existe em “O Meças”, como não existe para mim nem para todo aquele que tenha tido contacto com o país profundo e visceral. Um Portugal de vinganças, incesto, maus fígados, copos e peneiras. Este é, para mim, a espinha dorsal que dá alento a estas 180 páginas.
O autor opta por contar a história a quatro vozes que nos chegam chegam na primeira pessoa, sendo que também surgem trechos narrados por uma voz ausente. António Roque é o Meças, e também o detentor do discurso mais ríspido, mais violento, com rasgos de um Português floreado. Um pouco como se nos chegasse, através dele, o trauma, a dureza, a ausência de remorso, a iliteracia, o preconceito sofrido e o outro, praticado, que é são a essência do livro. Por vezes torna-se difícil acompanhar-lhe os trejeitos de linguagem, mas, terminada a leitura, parece-me que era necessário distinguir esta alma das restantes.
A segunda voz é a do filho do Meças, Abel. Sobre esta relação pai e filho: “São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Testamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta”. Esta segunda voz assemelha-se um pouco àquela que pertence à nora do Meças, Isaura. O discurso é mais moderno, escorreito, e o tom mais leve. Por último surge-nos outra voz, num tom límpido e cristalino, nem por isso mais leviano na sua mensagem, e que diria ser a voz a que nos habituamos quando lemos o comum dos romances, sobre pessoas de parte anónima. É quase um discurso universal no qual repousamos depois da verborreia plena de obstáculos do Meças.
Gostei da história. É para isto que leio livros: para ser introduzida a cenários, a pessoas, a psiques várias – e vejo-as, neste romance, complexas e arredias –, a dramas e dilemas pessoais. O que procuro nos autores é, sempre, o seu imaginário. Entretenham-me com uma história que me cative e eu regresso. Enfadem-me com vocabulário pedante e eu viro as costas.
Apesar de alguma dificuldade em entrar no tom, “O Meças” deixou uma boa impressão das capacidades do seu criador, e estou certa de que, cedo ou tarde, farei a travessia para “Ernestina” com tanta ou maior expetativa.
Classificação: 3,5***/*****
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