terça-feira, 30 de abril de 2019

#216 MÁRQUEZ, Gabriel García, Cem Anos de Solidão

Opinião: Gabriel Garcia Márquez publicou aquilo que só pode ser a obra-prima da literatura em língua castelhana em 1967, quando tinha apenas 40 anos. Calculou que lhe bastassem 6 meses a escrever todas as manhãs para o terminar, mas na verdade demorou 18 meses a completá-lo. Segundo o próprio, a inquietação mais premente da sua vida durante esse tempo foi a possibilidade de que lhe acabasse o papel para a máquina de escrever. A cada erro de grafia, destruía a folha e recomeçava de novo. Ao descer do autocarro com a versão final do manuscrito, a editora tropeçou e as folhas caíram numa poça e ficaram expostas à chuva. Foram posteriormente secas com ajuda de um ferro de engomar, e o autor só veio a sabê-lo muitos anos depois. Também conta o próprio que, ao enviá-lo para um editor na Argentina, só tinha fundos para pagar o envio de metade do manuscrito, pelo que o dividou. Ainda por cima, enganou-se e enviou apenas a segunda parte, no lugar da primeira. Acabou por ser o editor, provavelmente assombrado por esta jóia rara, que custeou o envio do início, para assim entender como começa a odisseia dos Buendía. Isto é apenas um pouco do misticismo em torno de Cem Anos de Solidão e do punho do génio das letras que lhe trouxe vida. Porque, ao terminar de ler esta maravilha – no sentido mais literal “de maravilha” –, só posso concluir que o autor era um génio. 

descriptionRevisitei as poucas entrevistas na sua voz no Youtube, e é assim que descubro que o autor se sentou diante da máquina de escrever com uma única frase na ideia, e sem saber onde é que a mesma poderia levá-lo. 

”Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. ”


Esta frase levou a que o seu romance fosse traduzido em todas as línguas, e resultasse em mais de 50 milhões de cópias vendidas.


Que posso acrescentar a respeito deste magnífico romance?
Cem Anos de Solidão distorce o tempo e transforma Macondo - a povoação fictícia onde tudo se passa - no eixo de um furacão onde tudo sucede em círculos, e onde os males de uma família parecem ser quase uma alegoria para a história de uma humanidade supersticiosa, espiritual, mágica, sem tempo e finita. O que mais me surpreendeu na narrativa não foi tanto o realismo mágico que já havia experimentado, embora em doses menores, em O Amor nos Tempos de Cólera e Crónica de uma Morte Anunciada, mas sim o fulgor e a vitalidade com que cada página é entregue ao leitor, como se tudo tivesse sido escrito a um mesmo ritmo, num mesmo fôlego. Chegar ao fim da leitura é como perder esse fôlego. Primeiro flutuei, depois pareceu que dava cambalhotas, que trazia ao meu redor as borboletas amarelas que acompanhavam Mauricio Babilonia, ou que tinha a casa infestada de formigas-vermelhas, e continuou a cheirar-me aos orégãos do quintal dos Buendía durante um bocado, e talvez todas essas impressões só me abandonem daqui a muito tempo. Qualquer página a que regresse tem o peso da narrativa e a solidez das emoções, e qualquer capítulo, ainda que despregado de tudo o resto, é dos melhores jamais escritos, pelo menos que pelos meus olhos tenha passado.

Considero este livro uma obra de lucidez maior e de talento quase sobrenatural. Um caso nítido em que o homem supera a sua própria condição de mero mortal e se eleva. Uma ode aos costumes caribeños, a uma latitude algo negligenciada, a tempos idos eternizados por estas páginas sem tempo, em que tudo vai acontecendo, mas depois parece retroceder. É sublime o modo como o autor mexeu com as ânsias e as emoções humanas, como que universalizando-as de modo transversal ao longo do globo e da História, ou como jogou com a memória humana e as suas partidas. E a imaginação que vai sobejando de geração para geração, ao longo de sete desafortunados desníveis de Buendías, é a verdadeira matéria-prima da obra. 

Pergunto-me como é que um simples homem, em 18 meses, conseguiu engendrar tanta tropelia, tanto traço genuíno e distintivo, por entre os vícios e as semelhanças dos Aurelianos e dos Jose Arcadios, de modo a que a maravilha que acompanha toda a leitura renasça e nos surpreenda a cada nova geração. E o papel da Mulher, nesta obra de há 50 anos, é de uma perspicácia e de uma honestidade incríveis. É de uma sensibilidade magnífica o modo como um autor assume, sem melindres, que a Mulher, e em especial uma mulher – Úrsula – pode ser a mais clarividente das criaturas, e também a mais equilibrada naquela “casa de loucos”.
Sem dúvida, dos livros que ficam e que mudam a compreensão da literatura e da capacidade do Homem, sobretudo a do homem de 40 anos! - e que é possível que continue a ser lido e relido até ao final dos tempos.

Classificação: 5/5*****


Sinopse: Esta é a história da família Buendia, de Aurelianos e Josés Arcadios, geração após geração, de milagres e fantasias,de paixões e adultérios, descobertas e tragédias, de mortes e mortos, de histórias e histórias... e de muitas vidas, tantas quantas as línguas em que este romance já foi traduzido. O realismo mágico na pena de um dos maiores escritores do nosso tempo!

sábado, 20 de abril de 2019

#215 MAUGHAM, W. Somerset, O Fio da Navalha

Opinião: 
“- Ela tinha uma alma maravilhosa, ardente, idealista e generosa. Os seus ideais eram magnânimos. Até no final houve uma certa nobreza na forma como procurou a destruição.”

O Fio da Navalha, publicado em 1944, e adaptado ao cinema em 1946 e em 1985, é o terceiro romance que leio do escritor britânico W. Somerset Maugham. Quando li o seu Servidão Humana, soube de imediato que tinha encontrado um dos escritores que me acompanhariam pela vida fora, e cujas obras haveria de ler e reler. Guardei este volume para uma altura de crise, em que precisasse de ter confiança na obra em que pegasse e, se o início foi algo espinhoso, depressa a voz única do escritor me envolveu, e quando dei por mim não conseguia pousá-lo. Há muito que não leio romances em pouco mais de vinte e quatro horas, e devorei as 300 páginas deste nesse mesmo período de tempo. Ainda assim, sei que ficará comigo. É daqueles que haverei de mencionar vezes sem conta.

Embora a sinopse sugira que este romance conta a história do aviador Larry Darrell, por quem um companheiro de aviação dá a vida na I Guerra Mundial, o romance é muito mais do que isso. Maugham conseguiu transportar-me para o período entre guerras sem cair em politiquices nem ao detalhes aborrecidos de estratégia militar. De facto, não dissesse ele, a poucas páginas do fim, que “rebentou a guerra”, e nem nos apercebíamos que o maior conflito armado de sempre, com 70 milhões de baixas, se insinuava nas entrelinhas das receções parisienses das personagens que acompanhamos há duas décadas.

A ação tem início em 1919 na sociedade de Chicago, e ao longo destas páginas o próprio Maugham é uma personagem algo secundária, que transita de núcleo em núcleo e que vai tendo notícias das pessoas a quem nos apresenta. Começamos por conhecer Elliott, um americano que circula nas esferas mais altas da sociedade Europeia, e que insiste que a única cidade civilizada para um homem superior viver é Paris. A partir daí, temos a ponte criada entre os capitalistas americanos, a bolsa, os corretores e o desejo desenfreado de progresso nos anos prósperos que antecedem o crash, e a realeza em decadência na Europa pós-guerra, que vive de superficialidades e de pedantismo. 

Sendo Larry o fio condutor que intriga o nosso narrador – e que ilustre narrador! – ao longo dessas duas décadas, ficamos a saber que o aviador parece ter perdido parte do juízo quando o seu melhor amigo da Força Aérea deu a vida para o salvar de uma ofensiva alemã, e o Larry de antes, com apenas 18 anos, bem posicionado na sociedade, com uma fortuna modesta e de noivado marcado com Isabel Bradley, uma menina de bem, muda. De repente, Larry deixa de se interessar pelo lado mundano da vida, e coloca-se à parte, como observador circunspeto. Procuram ceder-lhe um lugar entre os bem-posicionados de Chicago, pedem-lhe que se junte à construção de um país que se evidencia mais próspero do que o velho mundo, delapidado pela guerra e pelos velhos costumes de repente fora de moda, mas Larry garante, para desconcerto de quem o rodeia, que tudo o que deseja da vida é fazer “nada”, e que deve valer-se do privilégio de ter um bom rendimento para poder dedicar-se a isso mesmo.

Esta é a premissa principal de um livro que, um pouco à semelhança de Servidão Humana, me parece uma senda pessoal, muito espiritual e até mística a certa altura. O que, pela voz metódica e ultrarracional – por vezes também romântica e melancólica – de Maugham, poderia soar a contrassenso. 

descriptionHá várias passagens de grande riqueza humana. Aliás, ler o meu escritor favorito referir-se ao “animal humano”, uma expressão com que tantas vezes nos identifico, por ausência de outra que melhor exemplifique o que pretendo dizer, coloca-me em plena sintonia aquilo que julgo que Maugham sentia e pretendia ilustrar. É este o forte deste romancista. A capacidade de observação, a perspicácia, a tempos a ironia e o humor, a classe, a crítica social - elegante, subtil -, mas também a ausência de pedantismo que lhe permite falar ora de rameiras ora de condessas com a mesma elegância, a mesma dignidade.
 
Destaco dois momentos de Nirvana que servem para exemplificar momentos de clarividência de duas personagens – uma delas o próprio Larry, a outra um homem de negócios que de repente, perante o crash da bolsa, se vê despojado de tudo o que lhe era caro. Foram passagens de tamanha beleza, tamanha carga emocional… Maugham encheu-me o peito e depois esvaziou-o com um grande suspiro com essas passagens, mas eu já não me sentia a mesma depois de as ler. São sítios próximos a outros que experimentei em meditação ou em momentos em que contemplei a natureza, e por isso os senti na pele com a nitidez de um arrepio.

A tempos claustrofóbica, a sua descrição da alta sociedade americana e europeia parece-me bastante detalhada, e soa-me desgastante. Tantas receções, cocktails, jantares, idas ao teatro… Enfim, tanto ócio, tanto hedonismo, tanta hipocrisia, tanta superficialidade e, ainda assim, tanta grandeza e humanidade nesses simples humanos, Comuns Mortais como o autor os nomeia, cai-me sempre enternecedora; é-me palpável.

Cheguei a meio do livro sentindo-me íntima não só do nosso escritor deambulante, mas também de toda e cada uma das personagens, e a cada vez que o autor se cruzava numa das suas viagens – Paris, Marselha, Mónaco, Londres – com essas pessoas que, desconfio, são bem reais, mas às quais ele terá prestado a cordialidade de alterar os nomes, dei por mim a beber avidamente das atualizações das suas vivências, das reviravoltas das suas expetativas e desencantos.

Larry, como caminho sinuoso e de poucas palavras que constitui em simultâneo a maravilha e o mistério deste romance, constitui um contraste gritante para com o borrão cinzento dos tais Comuns Mortais. É como se fosse uma obra de Picasso no marasmo bucólico de uma exposição de nenúfares. É com as suas viagens, a sua abordagem à vida, ao mal e aos outros, que o livro de facto se supera, e é das suas parcas palavras que tirei as principais lições de O Fio da Navalha.

Destaco também a elegância desta edição da Asa, que me parece irrepreensível e sem dúvida muito adequada ao conteúdo sublime deste romance. A isto junta-se a grande competência da tradução, que me pareceu elevar um livro já de si de extrema elegância e por vezes até poético.
A ler no momento certo.

Classificação: 5*****

Sinopse: Quando um amigo e colega de combate morre ao tentar salvá-lo, a vida de Larry Darrell muda para sempre. Para o jovem aviador americano, a morte passa então a ter um rosto. O inexorável mistério da morte leva-o a questionar o significado último da frágil condição humana e a embarcar numa obstinada e redentora odisseia espiritual. Ao recusar viver segundo as convenções impostas pela sociedade para buscar o sentido da vida (que encontrará, certa manhã, algures na Índia), Larry torna-se simultaneamente uma frustração para os que o rodeiam - principalmente para Isabel, a namorada, e Elliott, tio desta, que cultivam acima de tudo a aceitação e o prestígio sociais - e a personificação de um ideal de espiritualidade e não-compromisso. Por duas vezes adaptado ao cinema, O Fio da Navalha é um romance intemporal. As ansiedades e dúvidas de Larry são também as nossas; continuamos até hoje a buscar um sentido para a nossa existência. Para encarnar essa luta contra o destino, Somerset Maugham criou um dos mais fascinantes personagens do seu vasto legado literário. Da Primeira à Segunda Guerra Mundial, passando pela Grande Depressão, ele leva-nos, através das sociedades francesa, americana e inglesa, à verdade mais recôndita da alma e do sentimento humanos.

domingo, 14 de abril de 2019

#214 STEINBECK, John, A Pérola

Sinopse: Baseada num conto popular mexicano, A Pérola constitui uma inesquecível parábola poética sobre as grandezas e as misérias do mundo tão contraditório em que vivemos. E, assim, a história comovente de uma pérola enorme, de como foi descoberta e de como se perdeu… levando com ela os sonhos bons e maus que representava, mas é também a história de uma família e da solidariedade especial entre uma mulher, um pobre pescador índio e o filho de ambos.

Opinião:

"Não é bom desejar muito uma coisa. Pode arredar a sorte. Basta desejá-la um pouco, porque é preciso muito tacto com Deus ou com os deuses."

A Pérola é uma novela de J. Steinbeck - provavelmente o meu escritor favorito -, publicada em 1947. Como a sinopse anuncia, é baseado num conto popular mexicano. 

O tom da leitura foi-me muito familiar. Recordou-me sobretudo A Um Deus Desconhecido (1933), que é um dos meus livros favoritos. Tem a mesma carga mística, profética, quase divina desse outro volume.


Uma vez mais, creio antever algum socialismo nas exposições deste autor californiano. Steinbeck volta a pegar num núcleo de pessoas desfavorecidas e atira-os aos lobos. Nesta curta leitura de 98 páginas, nem por isso menos intensa, apresenta-nos a Kino, Juana, e ao filho do casal de pescadores de pérolas, Coyotito. Kino é o chefe da família, é sobre os seus ombros que assentam os seus alicerces. Juana é o lado espiritual, a voz que procura conter os impulsos de bestialidade do bicho-humano. São nativos mexicanos, falam a "língua comum" há pouco tempo, e vivem à beira mar, que lhes traz a cada dia o sustento. Isolados do burburinho da cidade e um pouco à margem das suas regras, não cultivam ambições nem procuram ser mais do que são. A fonte de rendimentos é o barco que Kino herdou do pai, e que pertencera, em tempos, ao seu avô. É com ele que mergulha em busca de pérolas, que depois vendem aos negociantes da cidade.


Steinbeck consegue enlear-nos em toda a sociedade de La Paz (California Sur), e apresenta-nos os muitos defeitos dos extratos que a compõem. Esses defeitos tão humanos são postos em evidência quando Kino encontra uma pérola de valor e dimensão extraordinárias. 


O até então pobre, ignorante e marginalizado Kino, é alvo da curiosidade de toda a cidade. Em breve as coisas escalam e a ganância do padre, do médico, dos outros pescadores e dos compradores de pérolas, põem em risco o equilíbrio sólido da pequena família de nativos que, até então, pouco tivera e menos ambicionara.


Creio que Steinbeck queria mostrar os efeitos nefastos da ganância na sociedade. Diria que esta ganância é a mesma que expôs em As Vinhas da Ira (1929), quando parte da população americana perecia de fome, e a outra aproveitava o seu desespero para progredir pagando baixos salários e explorando-os até à última gota de sangue. Os princípios são os mesmos. Steinbeck deixa também claro o quão difícil é, para alguém à margem, entrar numa sociedade que é aparentemente aberta e heterogénea, plena de oportunidades, mas que no fundo é viciada e corrupta. Deixa evidente que há uma tendência para que o humano tire proveito de outro humano que se lhe apresente vulnerável. A prova disso é que, a partir do instante em que Kino descobre algo valioso, algo que desperta a cobiça de todos os outros, é como se toda a cidade se unisse para o esmagar e expropriar do que poderia significar, para ele, uma possível ascensão social.


Senti as emoções que me acompanharam nestas outras leituras. Injustiça. Desespero. Uma vez mais, o autor conseguiu imprimir uma aura quase de um Jesus Cristo, ou de um profeta, ao seu personagem masculino central. E Juana, por sua vez, é como uma Maria sofredora e mãe. Acima de qualquer coisa, é mãe.


Lê-se muito rápido e é uma excelente introdução à obra deste Nobel (1962) americano.Recomendo vivamente!

Classificação: 5*****

segunda-feira, 1 de abril de 2019

#213 SARAMAGO, José, Caim



Sinopse: Neste novo romance, o vencedor do prêmio Nobel José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.


Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

Opinião: Salvo erro, Caim é o último romance escrito e publicado em vida por José Saramago (2009). Lê-se em várias fontes que esta revisitação do Velho Testamento pelo primeiro assassino da humanidade – Caim – é mordaz, provocadora, e que portanto irritou bastante os católicos. Diria, tendo em conta que o Velho Testamento é praticamente a Torá, que deve ter irritado igualmente os judeus. Já o vi acusado de antissemita aqui e ali. Pela minha experiência, uma crítica à religião/cultura judaica/feitos do estado Israelita resulta sempre, para os judeus, como antissemitismo. Talvez antissemitismo para o judeu signifique “ato de criticar um pormenor da cultura judaica”, depois extrapolado para “ódio aos judeus em geral”. 

Saramago era um homem clarividente quanto a deus, e um idealista político. Podemos, ou não, discordar das suas crenças, mas não há como não admitir que dispunha delas de modo coerente. Era um bom argumentador, via o mundo do seu jeito simples e por essas ideias se regia. Não há como não admirar um homem que é fiel às suas crenças, sobretudo quando estas se alinham do lado da humanidade e contra a barbárie – neste caso, contra as fábulas grotescas do Velho Testamento. 

Adorei o livro. Adorei-o por ser agnóstica, adorei-o por compartilhar destes mesmos princípios e deste mesmo horror para com a vileza e a brutalidade. Ri-me, mas, acima de tudo, adorei a viagem. Adorei as imagens, o ângulo que Saramago me emprestou, a partir do qual pude analisar tudo com certa fanfarronice. 

Em “Caim”, Saramago visita o Génesis, introduz-nos a um deus caprichoso e incongruente, ciumento e invejoso, e não se coíbe de assim o denominar. A partir da expulsão de Adão e Eva do paraíso, o autor leva-nos aos seus três filhos, Abel, Caim e Set, e à responsabilidade do todo-poderoso no assassinato de Abel. Marcado na testa e condenado a vaguear pela Terra recém-criada, Caim atravessa os muitos contrassensos do Velho Testamento, e Saramago dá voz a um fratricida, para que este julgue as ações de um ser dito inquestionável. Pasme-se o leitor a cada vez que Caim, que tão friamente assassinou o irmão com uma queixada de jumento, se horroriza com os desmandos do senhor. Montado num jumento, viaja de tempo em tempo, de cidade bíblica em cidade bíblica. É assim que vamos às terras de Nod, à Torre de Babel, e é também assim que assistimos à destruição de Jericó, à desgraça de Job e ao dilúvio que extermina a primeira humanidade.

O Deus do Velho Testamento é cruel, mimado e parece-me terrivelmente enfadado com a sua própria criação. Saramago, valendo-se da sua genialidade, ousadia, e de um humor irónico delicioso, atreve-se a mostrar-nos isso mesmo em “Caim”. Não há como negar essa malvadez que o autor se limita a realçar e a comentar. 

Uma leitura rápida, apesar do estilo à la Saramago. Pareceu-me que, por fim, já falo a sua língua sem dificuldade. Outra viagem prazerosa e que apela a excelentes reflexões, pelo punho do único Nobel de literatura português. Aconselho vivamente!

”O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede (…). O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.”

Classificação: 5*****