segunda-feira, 1 de abril de 2019

#213 SARAMAGO, José, Caim



Sinopse: Neste novo romance, o vencedor do prêmio Nobel José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.


Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

Opinião: Salvo erro, Caim é o último romance escrito e publicado em vida por José Saramago (2009). Lê-se em várias fontes que esta revisitação do Velho Testamento pelo primeiro assassino da humanidade – Caim – é mordaz, provocadora, e que portanto irritou bastante os católicos. Diria, tendo em conta que o Velho Testamento é praticamente a Torá, que deve ter irritado igualmente os judeus. Já o vi acusado de antissemita aqui e ali. Pela minha experiência, uma crítica à religião/cultura judaica/feitos do estado Israelita resulta sempre, para os judeus, como antissemitismo. Talvez antissemitismo para o judeu signifique “ato de criticar um pormenor da cultura judaica”, depois extrapolado para “ódio aos judeus em geral”. 

Saramago era um homem clarividente quanto a deus, e um idealista político. Podemos, ou não, discordar das suas crenças, mas não há como não admitir que dispunha delas de modo coerente. Era um bom argumentador, via o mundo do seu jeito simples e por essas ideias se regia. Não há como não admirar um homem que é fiel às suas crenças, sobretudo quando estas se alinham do lado da humanidade e contra a barbárie – neste caso, contra as fábulas grotescas do Velho Testamento. 

Adorei o livro. Adorei-o por ser agnóstica, adorei-o por compartilhar destes mesmos princípios e deste mesmo horror para com a vileza e a brutalidade. Ri-me, mas, acima de tudo, adorei a viagem. Adorei as imagens, o ângulo que Saramago me emprestou, a partir do qual pude analisar tudo com certa fanfarronice. 

Em “Caim”, Saramago visita o Génesis, introduz-nos a um deus caprichoso e incongruente, ciumento e invejoso, e não se coíbe de assim o denominar. A partir da expulsão de Adão e Eva do paraíso, o autor leva-nos aos seus três filhos, Abel, Caim e Set, e à responsabilidade do todo-poderoso no assassinato de Abel. Marcado na testa e condenado a vaguear pela Terra recém-criada, Caim atravessa os muitos contrassensos do Velho Testamento, e Saramago dá voz a um fratricida, para que este julgue as ações de um ser dito inquestionável. Pasme-se o leitor a cada vez que Caim, que tão friamente assassinou o irmão com uma queixada de jumento, se horroriza com os desmandos do senhor. Montado num jumento, viaja de tempo em tempo, de cidade bíblica em cidade bíblica. É assim que vamos às terras de Nod, à Torre de Babel, e é também assim que assistimos à destruição de Jericó, à desgraça de Job e ao dilúvio que extermina a primeira humanidade.

O Deus do Velho Testamento é cruel, mimado e parece-me terrivelmente enfadado com a sua própria criação. Saramago, valendo-se da sua genialidade, ousadia, e de um humor irónico delicioso, atreve-se a mostrar-nos isso mesmo em “Caim”. Não há como negar essa malvadez que o autor se limita a realçar e a comentar. 

Uma leitura rápida, apesar do estilo à la Saramago. Pareceu-me que, por fim, já falo a sua língua sem dificuldade. Outra viagem prazerosa e que apela a excelentes reflexões, pelo punho do único Nobel de literatura português. Aconselho vivamente!

”O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede (…). O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.”

Classificação: 5***** 

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