quinta-feira, 28 de março de 2019

#212 TURGUÉNEV, Ivan, Fumo

"Este Verão, fui ao Palácio de Cristal, perto de Londres, que, como sabe, contém uma espécie de exposição de tudo o que a inteligência humana engendrou – uma enciclopédia da humanidade, por assim dizer. Pois ao passear por entre todas aquelas máquinas e instrumentos e estátuas de grandes homens, pensava ao mesmo tempo que se fosse dada uma ordem para que, se uma nação qualquer desaparecesse da face da Terra, desaparecesse imediatamente do Palácio de Cristal tudo o que essa nação inventara – a nossa mãezinha, a Rússia ortodoxa, podia sumir-se no inferno que nem um prego, que nem um alfinete se moveria: tudo ficaria no seu lugar, pois nem o samovar, os sapatos de corda e o knut – esses nossos famosos produtos – nem eles foram inventados por nós.”

Opinião: Fumo de Ivan Turguénev, é a minha primeira incursão nos grandes autores russos. Porque não começar por Dostoievski ou Tolstoi? Bom, este livro tem umas 500 páginas a menos do que os grandes clássicos da mãe Rússia, e eu imaginava os obstáculos. A sociedade, a complexidade dos costumes, a estranheza dos nomes, da geografia, das ideologistas e da mentalidade.

Tentei enquadrar a mentalidade russa do século XIX em tudo o que sei sobre a época, e que não é muito no contexto dessa nação. Sabia que os Romanov ainda dominavam a Rússia Imperial, sabia que havia príncipes às mãos cheias, e que era uma sociedade militarizada desde as ameaças de Napoleão, passando pela Guerra da Crimeia que, no caso deste romance, fora resolvida há cerca de uma década. As ideias socialistas já viajavam por uma Europa cada vez mais cosmopolita, de contrastes, unida pelo vapor dos comboios.

Em Fumo, consolida-se a ideia de que a Rússia bebia das tradições Europeias. Na época deste romance (1867), vamos conhecer um jovem estudante, Grigori Litvínov, que observa as mutações na sociedade ao seu redor. Vive num tempo de príncipes falidos, de burgueses em ascensão, em que os extratos sociais se misturam, se confundem. O território Russo enfrenta grandes alterações devido a agitações sociais, e é-me claro que o romance é uma sátira, uma crítica duríssima à fanfarronice dos antigos aristocratas, que viviam de imitar os franceses e os alemães. Mas é também época de nacionalismos exacerbados, e creio que os homens que, por entre os fumos da aristocracia, dos salões, dos casinos, dos bailes, erguem a voz para condenar esses hábitos de bons vivants falidos, são os pais dos que, em 1917, escorraçam o Czar do poder. É, portanto, o retrato de cidadãos russos num momento em que, em simultâneo, se maravilham e se repugnam perante a sua pátria e os seus conterrâneos.

A ação decorre em Baden, e parece que todos vivem de ócio, de maledicência, de saudosismo e de tagarelice. É a época do romantismo literário na Europa e, dez anos antes, Gustave Flaubert metia-se em problemas por causa da frivolidade da sua Madame Bovary. Trata-se, talvez por isso, de uma história de amor em todas as suas nuances, entre Grigori e Irina Pavlóvna, duas almas de mundos diferentes. Grigori um idealista, algo conformado, ponderado e honesto, e Irina, uma deslumbrada pelos vestidos, as jóias, as luzes da vida social.

Creio que o autor conseguiu imprimir grande humanidade às suas personagens, no sentido em que temos aqui o leque completo de representantes daquilo que julgo ser a sociedade russa, em toda a sua heterogeneidade, de meados do século XIX. Temos o idealista que vagueia pela cidade alemã em busca de um “verdadeiro russo”, que fale russo e que despreze aqueles ares de Franceses que ao aristocratas e militares se dão, o revolucionários que sobe a cada palanque e grita contra a situação da Rússia, expropriada dos seus valores base, temos o militar orgulhoso que beneficia do momento em voga, a esposa desencantada, aborrecida, amoral, e a rapariga virtuosa, sincera e idealista, que, de algum modo, personifica o que de melhor aquela pátria consegue produzir.

Litvínov não está menos perdido do que os restantes, mas Irina personifica, para o jovem estudante, a fronteira entre os dois mundos. O manter-se na Europa, a salvo dos conflitos russos e da sua crescente instabilidade, o praticar Francês e jogar na roleta, conversar com a elite do seu país e observá-los por entre o fumo dos serões, ou embarcar numa locomotiva de regresso a S. Petersburgo, onde poderá assumir o seu papel de burguês na nova ordem em construção, deixando para trás o fumo de toda aquela leviandade.

Foi um romance agradável, algo melodramático no que ao quadrado amoroso diz respeito, mas parece-me uma aposta segura na introdução aos clássicos russos.


Sinopse: «Fumo, de Turguénev, contém uma notável diagnose da vida política e intelectual russa de meados do século passado, e por isso alguns críticos têm querido considerá-lo um roman à thèse. Sem dúvida, as longas diatribes sobre os problemas políticos e sociais do tempo podem levar-nos a pensar assim. Mas este romance contém também uma das mais belas histórias de amor de Turguénev, e narrada com uma técnica insuperável. E precisamente o que me leva a não aceitar a opinião dos partidários do roman à thése é esta extraordinária história de amor. Julgo que ainda ninguém notou como é singular: uma história de amor que, nas mãos de um escritor romântico como Turguénev (perdoem-me os que o consideram realista, que também é) insolitamente não se resolve em cataclismo.»

Classificação: 3***/*****

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