sexta-feira, 12 de julho de 2019

#225 CARVALHO, Maria João Lopo de, O Fado da Severa

Sinopse: Na Mouraria, cruzam-se dois mundos quando a noite cai. O dos marujos, dos rufiões, das mulheres de má vida, as tabernas enchem-se com os filhos enjeitados da cidade. À procura de consolo, de um regaço pago, de vinho e de fadistagem. Vão eles e os nobres, embuçados, em busca do fruto proibido. 


Longe do São Carlos, onde as damas e as joias são legítimas, dos palácios nas Laranjeiras, mergulham no mundo sórdido e apaixonante onde se canta e bate o fado. E ninguém o faz melhor do que Severa, filha de cigano e de meretriz. Do pai herda o tom de pele, o sangue quente; da mãe a profissão e as artes de prender os homens.
São muitos os que a visitam, mas só um lhe deixa marca, o conde de Vimioso. É dele e da Severa esta história, nascida entre corridas de toiros, casas de má fama, recitais privados. É esse o amor proibido que Maria João Lopo de Carvalho tão bem evoca, num tom que nos remete para uma Lisboa feroz e verdadeira. 
Uma história onde brilham sempre a luz e as sombras dessa Lisboa e o indomável espírito de Severa: a cigana que inventou o fado, a mulher que vendeu o corpo - mas que nunca vendeu a alma.

Opinião: Este livro foi uma grande surpresa.

Em primeiro lugar, tenho sempre muito receio de ler ficção nacional, sobretudo ficção histórica. As experiências que tenham tido levam a uma "santificação" das figuras da nossa História, o discurso desenrola-se em deixas afetadas, o retrato de época costuma ser feito com largo recurso a descargas de informação que cansam até ao bocejo. Mas a Severa não é bem uma figura passível de santificação, era cigana, prostituta e fadista, o que deve convergir para o fundo do poço da sociedade portuguesa no século XIX. A faixa da sociedade que, não fora ela e o fado, mal seria recordada pelos livros de História.

Houve coisas que considerei excelentes, outras que assim assim, outras que me aborreceram. A classificação transmite o prazer que senti ao longo da leitura, e que me fazia regressar a este livro de tanta presença, ainda para mais bonito e com uma letra gorda que muito facilitou a leitura e o avançar das páginas.

Separando as águas, vamos lá avaliar os ingredientes deste romance histórico.

Pontos positivos que engrandeceram a leitura: 
- O linguajar dos fidalgos e da canalha, que tão bem identifica o nível social a que cada um pertence nesta Lisboa da década de 30 e 40 do século XIX;
- O vocabulário de época, que nos imerge na magia desses tempos;
- As deixas românticas, que conseguem convencer sem ser melodramáticas, coisa que não teria sentido num amor entre um leviano e uma prostituta;
- O retrato psicológico das personagens, sobretudo do conde de Vimieiro, mas também da Marta Mamalhuda, do Nisa, etc., personagens com substância que saltam das páginas, e que povoam Lisboa, o que nos faze sentir que dominamos a capital e as suas figuras;
- A pesquisa histórica - é evidente, mesmo antes de chegar à "Bibliografia", que a autora se empenhou numa pesquisa meticulosa para montar a narrativa, tiro-lhe o chapéu por isso!
- As descrições de espaços, miseráveis e imundos, opulentos e vistosos, que tão bem separaram os dois mundos em que o romance se apoia;
- O conhecimento que passa, de modo natural, a respeito do fado, das suas origens e ritos naquela época que o imprimiu na genética dos portugueses.

E os pontos a melhorar que me causaram ocasional enfado: 
- Nem sempre as informações saem com naturalidade, pelo que é frequente haver grandes trechos descritivos e enumerações, ou mesmo quando as mulheres, em diálogo, falam da moderníssima machine à clavier e a descrevem por x polegadas vezes x polegadas, o que me pareceu pouco realista e que identifico como infodump;
- Na continuação do primeiro ponto, as descrições geográfica, aqui e ali, nomes de ruas, esquinas, etc., são informadas de modo exaustivo, o que talvez faça sentido porque as personagens moviam-se ali, mas também acaba por cansar tanto nome de Rua, Largo, Travessa, etc.;
- O ritmo temporal do romance é algo inconstante, porque começa com uma Severa já adulta, e segue até à sua morte, sendo que por 80% do tempo se concentra em dois ou três anos, e depois sofre um salto como se tivéssemos decidido abandonar a personagem e apressar-lhe o fim (consequentemente, rematar o livro);
- A publicidade pouco discreta a outra personagem que a autora abordou em romance, Marquesa de Alorna, apenas porque também não saiu natural;
- O facto de o mesmo acontecimento ser analisado por várias personagens, o que fez sentir que o livro somente se repetia, sem grande avanço;
- O sentir que, apesar de não ter de haver uma aura de misticismo em torno da Severa para explicar o porquê de ela ter ficado para a posterioridade, também não haver nada que dê a entender que ela era diferente das restantes mulheres do seu tempo, porque, além da sua beleza, não há grande ênfase atribuído às suas caraterísticas únicas (o ser meio cigana, o cantar melhor do que as outras, o dançar com mais alma, etc.).
- O facto de a Severa ser tão conhecida pelo seu amante, o conde de Vimioso, e de este lhe ter aberto - creio não estar errada contra esses factos históricos - a porta para os salões nobres do reino, onde ela terá atuado, ficando assim o seu nome para a posterioridade. Esta realidade é explorada de modo muito contido, aflorada apenas ao de leve.
- Por último, não gostei dos últimos dois capítulos do livro - o primeiro apressa o fim da Severa, como um ponto final abrupto, escrito de um modo tão sumário que voltei atrás para conferir se não estava a ler as Notas Finais. O último não me fez qualquer sentido, porque também não serve para mostrar que a Severa será lembrada, foge ao cerne do livro e só vem baralhar e roubar o travo de melancolia que poderia ficar no fim, e que julguei garantido por ser conhecida a sina da pobre fadista.

O balanço é positivo, porque o livro me entusiasmou do início ao fim. A autora criou um ambiente muito intenso e palpável, que acabou por se tornar uma deliciosa viagem ao século XIX. Infelizmente, foi a Severa quem mais se apagou, mas o Portugal do Costa Cabral surgiu-me bem nítido.

Classificação: 4/5*****

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