Descobri que não sei escrever e isso, para uma pessoa que tem nas letras um hobby, uma terapia, um possível sonho, é inquietante. Antes do Acordo Ortográfico ser implantado, em 2009, eu sabia que «flôr» já não tinha acento circunflexo, como me ensinaram que tinha quando, entre 1995 e 1999, fiz o ensino primário. Quando publiquei o meu primeiro romance, em 2011, não me passava pela cabeça convertê-lo para uma grafia que me era desconhecida, que em certa medida não me parecia lógica e que foi, acima de tudo, controversa. Já se falava no Acordo, mas envolto em tanta polémica que se tornou fácil contorná-lo, ignorá-lo.
Segui publicando romances de cariz histórico, e consegui contornar o Acordo. De algum modo, parece que é facultativo escrever-se no Português que está instituído legalmente, e que tanto trabalho e esforço deve ter arrancado a uma boa comitiva de intelectuais linguísticos (perdoem-me por não saber como se escreve intelectuais ao dia de hoje – com C ou sem C, eis a questão). Entretanto aportei no facto de que o Português das edições antigas de livros que leio – como “As Vinhas da Ira”, da coleção do Jornal Público – não é o mesmo que o das edições que adquiro recentemente, pelo que ao ler já não estou a aprender a escrever, pelo contrário, estou inclusive a desaprender algo que me era adquirido. Como se uma capacidade da qual me orgulhava me tivesse sido arrebatada sem mais.
Mas o que me custou mais foi ter entregado um novo manuscrito à minha editora – o primeiro manuscrito em que julguei ter cedido à pressão do Acordo Ortográfico, em que julguei que simplificava, que me aproximava dos muitos mundos e letras portugueses no globo, em que, de modo ingénuo, considerei que a intuição haveria de me ajudar a pôr a minha língua por escrito na sua correta forma – e descobrir que a língua em que escrevi não existe. Há um limbo entre o que era e o que é. Escrevo na antiga grafia e afinal há uma nova para aquele vocábulo, ou arrisco eliminar um C que afinal ficou, e o manuscrito é-me devolvido rasurado a cada página. A cada parágrafo uma nota do revisor a questionar em que me baseei para escrever aquela palavra assim. Menções a vários acordos, pré e pós, isto e aquilo, e a palavra a fundar-se no lodo da incerteza, da imprecisão gráfica. “A autora tem de optar se quer manter Acordo ou não”. Ah é uma opção? Desde 2009 que cada cidadão luso tem o seu próprio Português? Faz a sua própria escolha dependendo da versão do Google Chrome e do Microsoft Word que tem instalado no computador? E quando isso está em colisão com o Outlook que tem instalado no trabalho?
Estou magoada. Não me interessam os motivos do Acordo, as intenções do Acordo. Interessa-me saber que me interesso pela Língua Portuguesa, que a tenho usado como instrumento de trabalho e de lazer, de ócio, de prazer, e que agora me é estranha. Interessa-me – desconcerta-me – saber que escrevo de um modo, os meus avós de outro, e a minha irmã mais nova de outro. Esse fosso geracional linguístico era escusado, pelo menos entre mim e ela. Não nos entendemos nos recados e nos post-its, e nem sequer temos autoridade para corrigir o Português uns dos outros. Sabemos lá nós.
O Acordo Ortográfico roubou-me a palavra, a língua, a certeza. Agora os meus manuscritos têm de ser corridos no conversor do Acordo Ortográfico. Há outro modo de registar corretamente o que tentei atabalhoadamente dizer no meu texto. O meu texto está todo errado. Tornei-me uma iletrada, o que é trágico quando se ama assim as palavras.
Os Portugueses já não sabem escrever – o AO atirou-nos para o lodo do analfabetismo, iliteracia entre Licenciados, entre Doutores. Quantos de nós, não vivendo dire(c)tamente das Letras (como Tradutores, Editores, Professores, Linguistas), estão certos de saber escrever em Português? Quantos de nós compraram os livrinhos “Português para totós” para reaprender a sua língua, em efe(c)tivo?
Bom, talvez alguns Portugueses ainda saibam escrever na sua língua. Eu descobri ontem que já não sei. Obrigada, Cavaco Silva.
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