Este ano superei-me em termos de leituras. Desde 2015 que não lia tantos livros num ano (33 de momento, mas creio que consiga pelo menos acabar mais 2), e com certeza que não lia livros tão desafiantes.
O meu interesse por clássicos tem vindo a sobrepor-se aos livros contemporâneos, e sobretudo aquilo que chamo "os livros do momento". Best-sellers que surgem na lista do New York Times e que venderam aos milhões, mas que depois leio e meh. Não me inquietam. E eu, como tenho assumido várias vezes, leio para me inquietar.
Em resumo, olhando por sobre cada título a que me dediquei este ano, decidi escolher 5 que me apeteça comentar por algum motivo específico, e atribuir-lhes uma palavra que represente o que tirei da leitura.
#1 - SENTIDO
Em "O Estrangeiro", de Camus, nada faz sentido. Ou melhor, o sentido da narrativa com certeza transparece o caos da época em que foi escrito. Tendo sido publicado em 1942, é com certeza fruto da insegurança dos seus tempos, da guerra a nível global e do valor das vidas, diminuído pelos interesses das nações. Camus criou um homem indiferente, Mersault, que se deixa ir com as ondas. Um alheado da vida ao seu redor, a quem nada afecta, nada chega. Mersault é o homem inalcançável, um observador neutro do certo e do errado, sem vontade ou alento, que passa pela vida sem grande entusiasmo, mas sem se dizer, ao mesmo tempo, deprimido. O livro levou a que me questionasse se não será a nossa capacidade de reflectirmos, de nos iludirmos, de querermos, sonharmos, aquilo que nos torna humanos, espirituais. Ainda assim, não foi um livro que me tenha ficado. Não me apaixonei, e até já o vendi.
#2 CRU
Da primeira vez que tentei lê-lo, fiquei-me pela segunda página. Mas 2019 era o ano para me estrear com o nosso eterno candidato a Nobel. Fiquei surpreendida não pela narrativa do que foi o Ultramar, não pela escrita elaborada (que muito dificulta a leitura), mas pela crueza de tudo. Lobo Antunes leva-nos para um mundo frio e cruel, desprovido de calor humano, de compreensão, de abraços. Em Os Cus de Judas, é-nos apresentado um homem incapaz de esquecer África, ou de tirar a guerra da pele. Lobo Antunes lembrou-me que o Ultramar foi um desperdíciotremendo e embaraçoso para o regime português dos anos 60 e 70, e que também por isso o sofrimento dos envolvidos foi esmagado, obliterado pela ilusão colectiva de que podíamos vencer, ou de que valia a pena lutar. Apenas lamento que algumas frases levantassem voo de modo promissor, belas, pungentes, plenas de sentido, e que depois o autor as prolongasse por mais um, dois, vários raciocínios ou metáforas que despedaçavam a beleza simples da premissa inicial.
#3 MÁGICO
Creio que quando tinha uns 20 anos tentei ler Cem Anos de Solidão, sem sucesso. Não era a hora certa. Desta vez, tornou-se naquele prazer que levamos para toda a parte, que acarinhamos quando estamos distraídos e o temos no colo. Gabriel García Márquez, que recebeu o Nobel em 1982 pelo seu contributo para as letras, tem aqui a obra-prima do realismo mágico. É um Dali em versão romance, profundo, delicado, angustiante, maravilhoso. Daqueles que ficam para sempre, fruto da imaginação mais fértil com que me cruzei até hoje por estes caminhos. E pensar que as suas personagens, apesar de completamente loucas, originais, me são tão familiares!
#4 RÚSSIA
Este ano estive por duas vezes na Rússia. Primeiro em Fumo, de Ivan Turguénev, e depois nas páginas do famoso Crime e Castigo. Parece-me que a escola é à mesma, à qual também pertencia Tolstoi. O romance permitiu-me compreender melhor a natureza dos russos, os seus desafios, as suas dores, a sua melancolia. Os russos são loucos, de uma maneira maravilhosa e trágica, ou eram-no pelos olhos de Dostoievski. Um autêntico ensaio da natureza humana e da cultura de uma Rússia imensa; com rasgos de desespero, de humor negro, de esperança cega, de cobardia e de bravura, com lealdade, amizade, amor e sacrifício em boa medida. Não é um livro fácil, mas teve passagens inesquecíveis, como o banquete funerário do funcionário público, em que Katerina praticamente ofende cada um dos seus convidados com gargalhadas nervosas. Só tenho pena de não conseguir dizer (nem escrever!) o nome da personagem principal. Mas começa por R!
#5 TRANSCENDENTE
Há muito que não passava um Sábado na cama a ler (pelo menos sem me dar sono ao fim de dois parágrafos), mas foi o que aconteceu com O Fio da Navalha. Somerset Maugham é um dos meus escritores favoritos, e cada um dos seus livros que li guardei num cantinho especial da memória. Até ler este volume, julguei que Servidão Humana seria o meu livro favorito de sua autoria para sempre, mas mudei de ideias. Larry, o piloto da I Guerra Mundial em busca pelo sentido da vida - e pela resposta sobre a existência de Deus - que percorre o globo e abandona mesquinhices e materialismos conquistou-me. Esse espírito livre, ansioso por aprender, por conhecer, por descobrir, recordou-me das coisas essenciais à vida. Recordou-me o que é ser, em vez de simplesmente estar. Conduziu-me a dois momentos transcendentes, dois Nirvanas através da simples leitura dos êxtases das personagens. A compreensão da vida, a absorção da beleza da natureza pelos olhos de duas personagens, roubou-me o fôlego, encheu-me de paz. Larry é um aro de luz no centro de uma sociedade cinzenta, fútil, agarrada às tradições e encandeada pelo progresso na América e na Europa do entre guerras. Amei a passagem do tempo pelo seu punho, a evolução das personagens (oh, Elliott!), a subtileza de sentimentos, de acções, que o britânico sempre imprime nas pessoas que lhe saíram do punho... Admiro imenso o intelecto e a sensibilidade do autor, e guardo cada livrinho seu por ler como a um tesouro.
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