"Os Maias", obra-prima de Eça de Queirós e romance
intemporal, foi primeiramente publicado no Porto em 1888. Popularmente falado por se tratar de uma história de amor incestuoso com uma introdução
exageradamente descritiva, onde é apresentada ao leitor a casa da família Maia.
De facto, da primeira vez que tentei ler o romance, em 2006, fui desmotivada
pela referida descrição do Ramalhete. Pareceram-me quinze páginas sobre
chaminés e tapetes. Agora que lhes dei uma segunda oportunidade decidi que ia
apreciar a descrição da casa, ia deixar que o Eça me levasse lá pela mestria da
sua escrita - de que tinha tido um vislumbre n’A Cidade e as Serras. E sabem
que mais? A casa tem uma descrição de meia dúzia de parágrafos. Pronto. Pode
ser muito a respeito de uma mera propriedade, mas de facto faz sentido, porque
é a introdução a uma vida de luxos e vícios, que retrata bem a sociedade
portuguesa no último quartel do séc. XIX.
Eça de Queirós, do pouco que entendo de
literatura, pertence à corrente realista. Denota-se, inclusive, um certo
despeito pelo romantismo e ultra-romantismo que imortalizaram, por exemplo,
Camilo Castelo Branco, cerca de vinte anos antes. Não na pena do autor, mas nas
palavras que vai colocando na boca dos seus personagens, todos eles muito
críticos, dados a fervorosos discursos de honra e de ideais. Tudo parece digno
de esmiuçar nesta sociedade retratada por Eça, e todos se dão ares de grande
integridade moral. No entanto, nenhuma personagem é realmente casta ou
moralmente correcta.
Ega, Carlos da Maia, o Eusebiozinho, Dâmaso, o
Taveira, Cruges, o Cohen, o Craft, Castro Gomes, o Gouvarinho. Nunca se
compreende realmente o que fazem estes condes e homens do governo e de
pândegas. São, ao que é sugerido, a fina flor das relações de Lisboa. No
entanto nunca se chega a compreender muito bem aonde vão buscar os rendimentos
que sustentam as suas vidas de luxos, whist (jogo de cartas muito
apreciado à época), charutos, cigarrettes, teatro, grémios e
passeiozinhos de charrete em Sintra. O retrato geográfico de Portugal é delicioso - com o
comboio até ao Porto, “estradas de ferro”, assim chamados os caminhos de ferro,
numa desconfiaça muito lusitana, mais de cem anos depois de a Inglaterra ter
dado o impulso à Revolução Industrial, o vapor para o Alfeite, etc. A Lawrence, em Sintra, os travesseiros,
os ovos moles de Aveiro, os fados assim mencionados, louvados mais de cem anos antes de se tornarem património mundial...! Eça foi um visionário. Tantas referências que
tive de absorver no estudo do turismo assim naturalmente descritas, como se Eça
adivinhasse que, pela sua qualidade, perdurariam no tempo... Tão contemporâneo
e intemporal quanto se tivesse sido escrito hoje sob o signo dos romances de
época, tão em voga.
Referências literárias, filosóficas e políticas
são outras tantas: Robespierre, Proudhon, Darwin, Voltaire, Garibaldi,
democracia, um cheirinho já ao socialismo e à república, etc., etc.. Foi como
um meeting de figuras famosas, só que vivenciadas em tempo real. As
opiniões sobre tudo e sobre nada preenchem centenas de folhas. Perto do fim,
inclusive, as intrigas sociais e as discussões políticas e literárias
multiplicam-se, ficando a Maria Eduarda e o Carlos um pouco esquecidos. Todo o
livro é muito boémio, com trejeitos de ironia preciosos e um clima bonacheirão
e de bazófia que ora nos desespera, ora nos enche de bom humor. A cobardia, os
falsos ares de finura, os falsos escrúpulos, duelos de florete, ameaças de
escarros em faces gorduchas, a falta de moral para se discursar sobre
determinado assunto, o amante da mulher casada que se ofende com o seu marido,
por se ter atrevido a surpreendê-los...! E
as mulheres? Fonte de problemas, infiéis, frágeis, insistentes, a
personificação do pecado. E então surge Maria Eduarda, um aparente modelo de
virtudes, ainda assim corruptível, que se revela a maior das desgraças na vida
de Carlos da Maia... mas também a maior das lições.
As últimas linhas, o último raciocínio deste
romance, são desconcertantes, esperançosos, trazem um sorriso aos lábios e um
inchaço bom ao peito. Não há trevas no final de uma intriga que tanta dor causa
a tantas personagens que acabamos por amar. Há, sim, um certo optimismo de quem
tem noção de ser impotente perante os grandes factos. Aqui também vejo o
realismo, porque por muito difícil que seja o desafio, por muito que doa a
perda, a vida continua. E, quando tivermos de voltar a correr,
correremos. Está-nos no sangue, é a nossa natureza.
Ao nível dos grandes clássicos, e digo-o enquanto
leio, em paralelo, O Conde de Monte Cristo. Mostra uma vanguarda de
pensamentos, uma insolaridade que nos é típica, um carácter muito português e
uma influência - na realidade pouco influente, quase ridícula de tão mal
absorvida - dos estrangeiros, sobretudo da França. Tudo é motivo para se
colocar uma expressãozinha francesa. Tudo é très chique, chique a valer.
No fundo, o “português” prevalece sobre o cavalheiro, de cabeça quente e punho
cerrado, apostado em encher cabeças de bengaladas ao primeiro desaforo... Um
autêntico teatro de civilidade ensaiada. Um romance único que requer pés e
cabeça durante a leitura. Quase quatro semanas depois, terminei-o finalmente. O
sentimento é um misto de feito grandioso - e de admiração perante um feito
grandioso que foi, para Eça, escrever uma obra ao nível dos grandes clássicos -
e de alívio.
Classificação: 5*****
Fico feliz que você tenha lido Os Maias, amado, faz parte de mim... Fez parte dos meus anos de Universidade de Letras em Sao Paulo, Brasil. Mudou a minha vida. Sou uma eterna admiradora do Eça, a sua percepçao do mundo! Personagens incríveis e o Ramalhete é um deles, porque o Ramalhete tem vida! Por isso tanta descriçao, pois "ele" presenciou muita coisa... Sempre digo que se há alguma coisa que Portugal soube fazer bem, foi Literatura.
ResponderEliminarQuerida Eliana,
EliminarMuito obrigada pelo seu comentário e pela sua devoção aos Maias. Eu adoro literatura mas não considero o povo português muito amigo de ler em geral. Felizmente estou mesmo no epicentro dos que lêem e lêem muito! Adiei a leitura dos Maias até agora, aos meus 22 anos, porque há um estigma em torno dele - o tamanho, o incesto, as descrições do Eça. Tudo isso ultrapassado e obtive um dos meus livros favoritos, que voltarei a ler várias vezes ao longo da minha vida.
PS - O Brasil também não se tem saído nada mal, Jorge Amado e Chico Buarque estão bem ali, na minha estante :)