terça-feira, 4 de setembro de 2012

#52 QUEIRÓS, Eça de - Os Maias


"Os Maias", obra-prima de Eça de Queirós e romance intemporal, foi primeiramente publicado no Porto em 1888. Popularmente falado por se tratar de uma história de amor incestuoso com uma introdução exageradamente descritiva, onde é apresentada ao leitor a casa da família Maia. De facto, da primeira vez que tentei ler o romance, em 2006, fui desmotivada pela referida descrição do Ramalhete. Pareceram-me quinze páginas sobre chaminés e tapetes. Agora que lhes dei uma segunda oportunidade decidi que ia apreciar a descrição da casa, ia deixar que o Eça me levasse lá pela mestria da sua escrita - de que tinha tido um vislumbre n’A Cidade e as Serras. E sabem que mais? A casa tem uma descrição de meia dúzia de parágrafos. Pronto. Pode ser muito a respeito de uma mera propriedade, mas de facto faz sentido, porque é a introdução a uma vida de luxos e vícios, que retrata bem a sociedade portuguesa no último quartel do séc. XIX.
Eça de Queirós, do pouco que entendo de literatura, pertence à corrente realista. Denota-se, inclusive, um certo despeito pelo romantismo e ultra-romantismo que imortalizaram, por exemplo, Camilo Castelo Branco, cerca de vinte anos antes. Não na pena do autor, mas nas palavras que vai colocando na boca dos seus personagens, todos eles muito críticos, dados a fervorosos discursos de honra e de ideais. Tudo parece digno de esmiuçar nesta sociedade retratada por Eça, e todos se dão ares de grande integridade moral. No entanto, nenhuma personagem é realmente casta ou moralmente correcta.
Ega, Carlos da Maia, o Eusebiozinho, Dâmaso, o Taveira, Cruges, o Cohen, o Craft, Castro Gomes, o Gouvarinho. Nunca se compreende realmente o que fazem estes condes e homens do governo e de pândegas. São, ao que é sugerido, a fina flor das relações de Lisboa. No entanto nunca se chega a compreender muito bem aonde vão buscar os rendimentos que sustentam as suas vidas de luxos, whist (jogo de cartas muito apreciado à época), charutos, cigarrettes, teatro, grémios e passeiozinhos de charrete em Sintra. O retrato geográfico de Portugal é delicioso - com o comboio até ao Porto, “estradas de ferro”, assim chamados os caminhos de ferro, numa desconfiaça muito lusitana, mais de cem anos depois de a Inglaterra ter dado o impulso à Revolução Industrial, o vapor para o Alfeite, etc. A Lawrence, em Sintra, os travesseiros, os ovos moles de Aveiro, os fados assim mencionados, louvados mais de cem anos antes de se tornarem património mundial...! Eça foi um visionário. Tantas referências que tive de absorver no estudo do turismo assim naturalmente descritas, como se Eça adivinhasse que, pela sua qualidade, perdurariam no tempo... Tão contemporâneo e intemporal quanto se tivesse sido escrito hoje sob o signo dos romances de época, tão em voga.
Referências literárias, filosóficas e políticas são outras tantas: Robespierre, Proudhon, Darwin, Voltaire, Garibaldi, democracia, um cheirinho já ao socialismo e à república, etc., etc.. Foi como um meeting de figuras famosas, só que vivenciadas em tempo real. As opiniões sobre tudo e sobre nada preenchem centenas de folhas. Perto do fim, inclusive, as intrigas sociais e as discussões políticas e literárias multiplicam-se, ficando a Maria Eduarda e o Carlos um pouco esquecidos. Todo o livro é muito boémio, com trejeitos de ironia preciosos e um clima bonacheirão e de bazófia que ora nos desespera, ora nos enche de bom humor. A cobardia, os falsos ares de finura, os falsos escrúpulos, duelos de florete, ameaças de escarros em faces gorduchas, a falta de moral para se discursar sobre determinado assunto, o amante da mulher casada que se ofende com o seu marido, por se ter atrevido a surpreendê-los...! E as mulheres? Fonte de problemas, infiéis, frágeis, insistentes, a personificação do pecado. E então surge Maria Eduarda, um aparente modelo de virtudes, ainda assim corruptível, que se revela a maior das desgraças na vida de Carlos da Maia... mas também a maior das lições.
As últimas linhas, o último raciocínio deste romance, são desconcertantes, esperançosos, trazem um sorriso aos lábios e um inchaço bom ao peito. Não há trevas no final de uma intriga que tanta dor causa a tantas personagens que acabamos por amar. Há, sim, um certo optimismo de quem tem noção de ser impotente perante os grandes factos. Aqui também vejo o realismo, porque por muito difícil que seja o desafio, por muito que doa a perda, a vida continua. E, quando tivermos de voltar a correr, correremos. Está-nos no sangue, é a nossa natureza.
Ao nível dos grandes clássicos, e digo-o enquanto leio, em paralelo, O Conde de Monte Cristo. Mostra uma vanguarda de pensamentos, uma insolaridade que nos é típica, um carácter muito português e uma influência - na realidade pouco influente, quase ridícula de tão mal absorvida - dos estrangeiros, sobretudo da França. Tudo é motivo para se colocar uma expressãozinha francesa. Tudo é très chique, chique a valer. No fundo, o “português” prevalece sobre o cavalheiro, de cabeça quente e punho cerrado, apostado em encher cabeças de bengaladas ao primeiro desaforo... Um autêntico teatro de civilidade ensaiada. Um romance único que requer pés e cabeça durante a leitura. Quase quatro semanas depois, terminei-o finalmente. O sentimento é um misto de feito grandioso - e de admiração perante um feito grandioso que foi, para Eça, escrever uma obra ao nível dos grandes clássicos - e de alívio.
Já conheço os Maias.

Classificação: 5*****

2 comentários:

  1. Fico feliz que você tenha lido Os Maias, amado, faz parte de mim... Fez parte dos meus anos de Universidade de Letras em Sao Paulo, Brasil. Mudou a minha vida. Sou uma eterna admiradora do Eça, a sua percepçao do mundo! Personagens incríveis e o Ramalhete é um deles, porque o Ramalhete tem vida! Por isso tanta descriçao, pois "ele" presenciou muita coisa... Sempre digo que se há alguma coisa que Portugal soube fazer bem, foi Literatura.

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    1. Querida Eliana,
      Muito obrigada pelo seu comentário e pela sua devoção aos Maias. Eu adoro literatura mas não considero o povo português muito amigo de ler em geral. Felizmente estou mesmo no epicentro dos que lêem e lêem muito! Adiei a leitura dos Maias até agora, aos meus 22 anos, porque há um estigma em torno dele - o tamanho, o incesto, as descrições do Eça. Tudo isso ultrapassado e obtive um dos meus livros favoritos, que voltarei a ler várias vezes ao longo da minha vida.

      PS - O Brasil também não se tem saído nada mal, Jorge Amado e Chico Buarque estão bem ali, na minha estante :)

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