Terminei a leitura.
Introdução:
A Beatriz era muito nova quando escreveu este
livro. Ainda assim, comprometer-se com 177 páginas de uma mesma história é mais
do que muitos adultos conseguem fazer, reconheço-lhe isso. Também consigo
antever que, de futuro, fará muito melhor do que isto. Tem potencial, isso é
incontornável. Mas esse potencial perceptível não pode toldar a minha percepção
quanto a esta obra em particular. Bem
como esta obra não pode toldar as
capacidades que, bem desenvolvidas, darão origem a bons enredos.
O espírito da autora transparece neste
romance. Eu própria ainda luto muito para esconder o meu nas minhas obras, e se vem mais escondido é precisamente porque aprendi a contrariar-me. Às vezes também escrevo cenas
impulsivas ou violentas que, depois, me dou conta de que ficariam melhor num
livro de Banda Desenhada com super-heróis. Tudo isso seria limado com o tempo.
Influenciada pelos romances que lia, os filmes
que via, as novelas que davam, escrevi coisas semelhantes. Escrevi histórias
sobre gémeas, perdas de memória, mudança de nomes e de identidade, doenças
terminais, meninas mimadas, o valor da amizade, mulheres a “espancar” homens de
fúria. Tudo isso foi limado ao longo dos últimos 12 anos, combatido,
aperfeiçoado.
Este livro, contudo, espelha bem esses meus primeiros manuscritos
e é por isso que não consegui deixar de sentir uma certa ternura pela autora,
que me lembra de mim própria há dez anos. Os próprios nomes das personagens,
como mencionei na publicação anterior, transparecem essa mesma imaturidade,
pureza e denunciam o quão sonhadora é: Luz, Lua, Lírio. Fala-se em estrelas
cadentes e a vertente inconsciente – sonho – está muito presente. Demasiado presente. A personagem tem
constantemente sonhos que a afastam da realidade e a ajudam a tomar decisões.
Balanço de ingredientes/géneros/tendências/debates:
misticismo, romantismo, acção, guerra, amor, amizade, drama. Tudo vivido com a
mesma intensidade, lição explicada, vivenciada e aprendida em meia dúzia de
páginas.
Personagem principal: Anne Marie ou “Ange de
Crystal”. Não consigo gostar dela, não é coesa. Tem uma certa presença, porque
consegui abstrair-me da escritora, de facto via esta Anne Marie, mas
detestava-a ao ponto de querer esbofeteá-la. Deve ser bipolar e esquizofrénica.
Contradiz-se. Ora é uma mártir ora diz que “sabe que não tem coração”. Ora é
frágil, desmaia do nada e entra em coma, ora imobiliza dois soldados e diz-lhes
que o melhor é “não se meterem com ela”. Não funcionam. Os ingredientes que a
compõem não funcionam.
Ritmo do livro: Ora oscila entre descrições
intermináveis de tarefas banais, ora pula tempo precioso para se compreender o
fio (de incoesão) da meada e os acontecimentos já se estão a precipitar.
Contexto temporal: desfazado.
Contexto espacial: desfazado. “Vou para a
guerra”, “Quando estava quase a chegar à guerra”. Deu ideia de que a guerra é
uma região da França.
Final: abrupto, a escritora parece exausta de
escrever, precipita as acções finais (num clímax cansativo em que recapitula tudo o que a personagem viveu no livro)
e fecha a obra.
Contexto geral: a obra existe num recanto da imaginação
da autora que não tem, na minha opinião, como funcionar – a menos que esta
inventasse um país e uma guerra e lhe atribuísse as características que bem
entendesse.
Enredo: cliché e previsível.
Pode ser culpa minha, porque sou presa à
realidade e ao exequível (embora reconheça falhas nas minhas obras também a
esse nível, mas é sobre elas que pretendo crescer), registei muitas coisas
impossíveis que basicamente mandam a lógica à fava. Alguns exemplos (não muito
mesquinhos, espero):
- Uma rapariga de vinte anos desmaia ao ver o
seu grande amor e “entra em coma”;
- Uma criança de oito anos perde a mãe e
adopta no mesmo instante outra mulher como mãe, chamando-a desse modo e
chamando “pai” a um homem que nunca viu e que está na guerra;
- Não existe espaço, o tempo é ambíguo;
- Uma mulher que acaba de perder o marido na guerra e de fazer um escândalo sobre essa notificação está a beijar um homem (segundo a temporalidade do livro) nessa mesma tarde e a dizer-se de novo apaixonada;
- A autora não se aventurou muito em
pormenores históricos, mas quando o faz não é assertiva;
- Uma mulher dá uma coça a dois homens
(soldados) só porque está irritada;
- Os nomes (sei que insisto nisto mas era o
mínimo dos mínimos para a autora nos ambientar na França, já que poderia dizer
que tudo se passa na Inglaterra e seria igual, visto que nunca “vemos” nem “cheiramos”
a França) não têm um contexto coeso – Luz, Lua, Lírio, Liz, Liana, Anne Marie,
Ange Crystal, Peter, Daniel, Roger, Diana, Margarida, Sky, Esther, Haillie,
Heather, Ashley;
- Pelo menos duas pessoas dizem que “mudaram
de nome”, uma para fugir à família que não aceita o seu casamento, outra para
ir para a guerra… não se entende porquê;
- Os temas não se conjugam bem nem são representativos
da época, ou pelo menos o modo como são abordados: violência doméstica, tráfico
de droga, penas de prisão perpétua, adopção, jornalistas asiáticas na França e
de “madeixas loiras”, revistas cor-de-rosa, lojas de pronto-a-vestir (1939)
onde se compram dez casacos de uma vez em clima de austeridade e guerra.
Enfim, não me levem a mal. Não digam que
estou a deitar abaixo uma autora quando deveria incentivá-la. Mas,
honestamente, a mim deu-me jeito saber que havia por aí pessoas que poderiam
pegar no meu trabalho e decepá-lo. Tive dez vezes mais cuidado n’O Funeral da
Nossa Mãe, e terei vinte vezes mais cuidado quando escrever/publicar o próximo.
Perdoem-me mas não basta ter-se treze anos e
escrever-se para se receber palmadinhas nas costas. Há que escrever bem para se
ser merecedor disso, o mérito não pode vir às prestações e não digo que a
Beatriz não vá longe, mas terá sempre sido uma decisão pouco acertada ter-se
estreado com este livro. O primeiro romance do Eça certamente que não foi nada
desta espécie e o Flaubert dedicou-se anos
à simplicidade do seu “Madame Bovary”, que nem mexe assim tanto com pesquisa
exterior mas sim com o carácter das pessoas, e não quis publicar mais nada para
não comprometer a qualidade inegável deste romance. Era um perfeccionista. Há
que não se ser demasiado apressado quando queremos que as coisas corram bem.
Os meus parabéns à autora pelas 177 páginas de uma história linear, é evidente que tem a vida toda pela frente para se
aprimorar. Mas não posso dar-lhe os parabéns pelo conteúdo da obra.