Sinopse: A Sibila é um romance de Agustina Bessa-Luís. Sibila, que remete para a figura clássica da Sibila de Delfos, significa adivinha e refere-se à personagem Joaquina Teixeira, a Quina. O livro não se atreve a narrar a história do nascimento à morte da protagonista, mas contou a vida de duas gerações anteriores da família Teixeira e duma posterior e ainda de outras famílias e amigos próximos desta. Narra conspirações, corrupções e intrigas de parentes, criados, amigos e inimigos. De passagem ocorrem críticas à burguesia rural, mas no romance avulta sobretudo uma reflexão sobre a dimensão metafísica do ser humano. Quina não tinha poderes sobrenaturais, era apenas atilada e prática conselheira; ninguém da sua igualha a tratava por sibila. Morreu velha e doente, mas orgulhosa da casa que salvara da falência e da fortuna que amealhara. A história começa e termina com Germa, sua sobrinha, filha do irmão Abel, que representa uma geração já urbana, desenraizada dum espaço a que Quina sempre se sentira presa.
Opinião: De vez em quando acontece-me ler um livro
onde perco o pé. Em relação à “Sibila”, da Agustina Bessa-Luís, julguei-me na
eminência de me afogar. A cerca de setenta páginas do fim (é um livro pequeno,
de 248 páginas) recuperei esse pé, e tornou-se um gosto nadar por estas águas.
Perguntei-me, inclusive, o que se terá passado nas restantes páginas para que
lhes tivesse tamanho alheamento. Já próximo do fim identifiquei o factor em
falta n. 1 - a convergência, a eminência de uma revelação, uma história com a estrutura
“habitual” (facilitada, vá), do género 1. problema 2. tentativa de resolução
3. solução! Neste livro estende-se sim a narração da vida de uma família do
Minho - penso que seja o Minho, devido a alguns elementos culturais que
identifiquei - vinho verde e filigrana entre os mais óbvios. Mas sem um
problema, um mistério, um segredo por desenvolver. É um simples (not so
simple, though) relato de algumas gerações cujas vivências se deram sob o
mesmo tecto. É esse o principal fio da meada, no livro - a casa da Vessada,
como nenhum outro. Dando por mim a apreciar finalmente o livro - logo quando
estava prestes a findar-se, identifiquei o factor em falta n. 2, o que me
impediu de segui-lo com sofreguidão desde o início: não é uma história de amor,
não há, tãopouco, amor em lado algum. Não há, nesta obra, qualquer vestígio de
amor romântico. É um relato um pouco cru dos afectos, como se estes estivessem
sempre suspensos da utilidade que nos possam ter, do quanto estamos dispostos a
darmos de nós, do que somos e do que queremos que os outros pensem que somos.
Há amor, sim, mas um amor conturbado, ora devoto, ora despeitoso, ora
amargurado por ser amor, ora orgulhoso de não ser outra coisa qualquer.
Deixem-me tentar explicar-me melhor, num discurso bem mais básico do que o da
mestria fluida da Agustina:
O livro tem dois marcos temporais - que eu
tenha identificado - o ano de recuperação da casa da Vessada, 1870, e a
Implantação da República, porque desaparecem dos carros (a tracção animal) os
brasões. Fora isto, o tempo é algo demolidor, transversal, algo que mescla
todos e que não discrimina ninguém. A história não tem um elo de ligação muito
acentuado. A passagem temporal é algo ténue, é contada como que algo
percepcionável. Isto é, ora a pessoa se sente nova - e todos ao seu redor são
jovens, ora a pessoa ainda se sente nova e enérgica, mas todos ao seu redor já
são velhos, ora a pessoa já está velha e acabada e os restantes lhe parecem
mais fortes. A casa sofre algumas fases que acompanham o vigor de Quina, a
personagem principal. Primeiro é totalmente destruída por um fogo, gravando-se
em seguida o ano de 1870 na varanda. Em seguida Quina nasce, a propriedade
começa a recuperar-se e a prosperar discretamente. Quina atinge a juventude com
mais vitalidade que a mãe e, tendo o pai falecido, assume naturalmente o rumo
da propriedade; impõem-se-lhe. É nesta época que, pressupostamente, se encontra
mais aguçada a sua capacidade de “sibila”, de vidente, de mulher do oculto, das
intuições das entrelinhas da vida. Mas confesso que de vidente não lhe vi
muito. Se calhar procurei literalmente esse dom quando, na realidade, se trata
de mexeriquice de vizinhos, de cegos perante um elemento que vê. Penso que o
seu condão de bruxa é apenas a sua inteligência límpida por entre tolos, o seu
conhecimento do outro que a faz sobrepôr-se-lhe, conduzi-lo, extrair-lhe o que
pretende. Na Quina denoto uma certa pretensão, um certo desejo preemente de ser
diferente dos outros, mais sensitiva, procurada para conselhos e rumos, livre
para proferir desmandos. No fundo, ela quer ser mais do que um adereço, dois
braços, suor, num mundo de homens, e vale-se assim daquilo que é temido - em
certas épocas combatido, noutra tolerado com o respeito do receio - nas
mulheres; o sexto sentido, a adivinhação, a sensibilidade para prever desfechos,
a esperteza feminina equiparada a feitiçaria. Nunca a vi a fazer mais do que
umas rezas aos vizinhos, mas estes próprios a apelidam de “sibila”, e ela gosta
disso. Com o amadurecimento, contudo, passa da vaidade à quase apatia. Torna-se
mais humilde, passa a reconhecer valores - como a simplicidade forçada de quem
vive bem mas não quer ostentar - que outrora lhe causavam espécie. Uma das
minhas personagens favoritas é o Custódio. Lembrou-me o Heathcliff do Monte dos
Vendavais. Aliás, muito deste livro me recordou o Monte dos Vendavais, mas
enquanto n’A Sibila a natureza humana se agita nos sobressaltos da vida, na
obra-prima de Emily Brontë agita-se nas incongruências do amor.
Quando se aproxima do fim – para mim,
mera leitora – torna-se mais fácil de compreender, embora continue a primar pela complexidade. Que princípios moveram,
afinal, esta personagem, esta Quina? O que, na vida, lhe foi mais importante?
Apesar da luta por se impor, por ser diferente sem no entanto ofender, a
que convenções é incapaz de fugir?
“A Sibila” é um romance complexo, difícil
de digerir. Tive alguma ajuda ao adquiri-lo na edição da Guimarães editores em
segunda mão, porque todas as palavras difíceis (que são aí cinco por página)
vinham sublinhadas e com a respectiva definição na margem, o que me permitiu
lê-lo em três semanas em vez de três meses. Arrastou-se sempre, contudo, a
impressão perturbadora de não compreender a totalidade do que estava perante os
meus olhos.
Penso que um dia o lerei de novo - com a
atenção sobre-humana que dediquei às últimas dezenas de páginas -, porque é-me
sempre precioso ver uma mulher erguer-se, com os seus defeitos e fraquezas
inerentes, e vingar num meio de homens.
Voltarei, sim, a ler Agustina Bessa-Luís,
quase certa de que encontrarei a mesma perspicácia, a mesma profundidade
humana, em qualquer outro dos seus romances.
Classificação: 4****/*
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