quarta-feira, 22 de maio de 2013

Servidão Humana #1


Conheci o Somerset Maugham através d’O Véu Pintado, e conheci O Véu Pintado através da adaptação de 2006 com o Edward Norton e a Naomi Watts. Filme precioso, um olhar íntimo sobre a vida privada de um casal dos anos 30. O livro é diferente; é desconcertante na sua abordagem ao coração humano, à inclinação incontornável ao erro, ao mais fácil, ao queimar-se uma outra vez na mesma chama. A profundidade humana é tocante, fascinante e qualquer leitor se identifica facilmente com estes espectros erróneos que o Maugham descreve. Foi um romance um pouco mais da minha linha, no sentido em que há uma relação central como fio da meada. Há a China, a cólera e a mulher infiel. E pronto, eu estava rendida. Não precisei de muito para penar pelo seu “Servidão Humana”. Já mencionei que, de visita à Russborough House, em Wiclow (Irlanda), parei numa biblioteca enorme à procura dum autor que conhecesse e, de entre todos os nomes desconhecidos, apenas Maugham me acenou? Foi como estar, subitamente, em casa.

SPOILERS, SPOILERS ALL AROUND!

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O livro começa com a morte de uma mãe. Uma criança órfã que anseia por carinho e por vitimar-se. É humano, será que vale a pena dizermos que quer vitimar-se? Trata-se apenas de tirar alguma vantagem das desgraças pessoais. Para este rapazinho, isso espelha-se no abraço, na palavra de compaixão, nos mimos que podem servir de recompensa à perda da mãe. Nesta primeira centena de páginas podia já o romance encerrar-se, e eu estaria já rendida e apaixonada. Não há romance, há apenas relações humanas. O servilismo, a existir, é do eu perante si próprio. Este Phillip Carey, esta pessoa tão comum e, contudo, tão intrigante, é já uma das minhas personagens favoritas de sempre. Isto porquê? Phillip sofre de todas as mesquinhices humanas: vaidade, mentira ocasional, orgulho exacerbado, ciúme injustificado, ocasionalmente inveja. Cresceu à sombra dum tio vigário e, por isso, nunca duvidou de Deus ou da veracidade absoluta da doutrina da Igreja Anglicana. Nunca, até certo ponto. Nesta primeira centena de páginas Phillip foi já confrontado com a possibilidade de vir a tornar-se também ele vigário e, posteriormente, começa a questionar, através de conhecimentos que faz na Alemanha, longe do Kent onde cresceu, se existirá realmente uma religião verdadeira ou um deus único. O que estou a apreciar é, sobretudo, o meu desbastar dos receios que alimentava quanto a este livro; é um livro enorme (lê-se incrivelmente bem), Somerset é um grande escritor, será que conseguirei acompanhá-lo? (ele esforça-se por vir ao meu encontro sem, no entanto, me tomar por imbecil), será um pseudo-intelectual? Terá algo a acrescentar-me? (o autor atira-nos para os olhos a ignorância de Phillip  mais gritante a cada vez que algo de novo lhe é ensinado. Tão vastas as extensões, depressões, viragens de rumo da Natureza humana num livro com ainda tanto para oferecer.
Philipp é tímido, tem pé boto, é inteligente mas tantas vezes estes dois factores impedem-no de expressar essa inteligência e é tomado por idiota. Cada pessoa com que se cruza – as que ama e as que odeia – são palpáveis e apaixonantes a seu modo. Mr. Carey, o tio vigário. Mrs. Carey, nunca mãe, tia de sangue, frágil e submissa (queixa-se, porque é mulher, obedece, porque é esposa). Mr. Watson, o director de colégio religioso que ri demasiado alto e é bruto a demonstrar carinho pelos alunos. Mr. Perkins, director da escola preparatória, descendente de um fanqueiro, por isso desprezado pela trupe de intelectuais abastados que ensinam nessa escola, tão inteligente e perspicaz que é finalmente com ele que a sagacidade de Phillip se expande.
Phillip a descobrir o poder da literatura para alheamento dos que vivem existências infelizes. Phillip a aprender a ser selectivo na Literatura. Phillip a considerar a Igreja Anglicana como um elemento de conforto na sua vida. Phillip a considerar deus um ultraje a igreja um embuste. Phillip a considerar a sua orfandade motivo de pena, de dessabor. Phillip a considerar o seu pé boto um entrave para criar ligações. Phillip a agradecer a deus pelo fardo do pé boto, que lhe permitiu crescer mais ou menos à margem dos restantes, aculturando-se enquanto os restantes jogam futebol. Phillip a querer alguém – um amigo – só para si. Phillip  odiar esse amigo. Phillip a querê-lo de volta. Phillip a querer desistir da escola, a lutar afincadamente para consegui-lo. Phillip inconsolável, irritado consigo mesmo, por ter conseguido deixar a escola, vencido a batalha, quando afinal tudo o que quer é ficar. E a sua comoção face à beleza, à arte, à natureza, surge como um marco importante na vida de qualquer ser humano. Foi naquele dia que primeiramente testemunhou a beleza, e a sua vida mudou.
Estou arrebatada, encantada por tanta complexidade. Estão aqui algumas das melhores personagens com que tive o prazer de privar na Literatura, juntando-se a Kitty Fane d’O Véu Pintado, Scarlett O’Hara e Rhett Buttler do E Tudo o Vento Levou, e Dr. Victor Frankenstein e o monstro, do livro homónimo ao médico.

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