Philippe Claudel é perturbador.
Entranha-se-me nos ossos. Em tantos anos de leitura, consegue uma coisa que me
é já rara: intrigar-me. Este homem intriga-me. Além de me intrigar, deixa-me
presa a ele. Ainda só li duas das suas obras – O Barulho das Chaves e Almas Cinzentas. O Barulho das Chaves contém pequenos relatos, muito fáceis de ler,
compilados em 76 páginas. Refere-se aos onze anos que passou a ensinar Francês
num estabelecimento prisional. Este livro, tão cinzento quanto a sua outra obra
que li, ajuda a compreendê-lo para lá do explicável. Claro que Claudel escreveu
o Almas Cinzentas. Quem se não um homem que lidou com esta dicotomia de cores
na natureza humana poderia escrever um livro sobre sermos todos cinzentos, e
não exactamente brancos ou pretos?
Claudel é ousado. Claudel tira-me
o sono. Açambarca-me os pensamentos, conquista-me e transforma-me. A cada livro
seu uma nova inquietação. A natureza humana perante a minha vista, tão clara
contada pela sua voz, tão genuína nas suas percepções – e não julgamentos -, e
eu cega para ela até aqui.
«Marcel B., cinquenta e sete
anos, prestes a ser libertado por falta de provas suficientes, depois de ter
sido acusado de abusar sexualmente da neta de onze anos, e que preferiu
enforcar-se no fecho da janela da cela, durante a noite anterior à sua
libertação, em vez de regressar à aldeia.».
E prossegue, recordando-se
algures doutro recluso:
«William I. era mecânico “na vida
civil”, como ele dizia. Confessou-me que, todas as noites, montava e desmontava
mentalmente, peça a peça, o motor de um 504
diesel. “Para aguentar”, acrescentava.»
E eu não prossigo. Não posso prosseguir.
Deixo-me ficar, meio entorpecida, pela consciência desta humanidade cinzenta,
ambígua, tão simultaneamente abjecta e vulnerável, enternecedora, sobre a qual
Claudel me vai falando.
Por agora tenho de guardar O
Relatório de Broderick para mais tarde. Não quero arriscar-me a esgotar todos
os meus recursos do Claudel enquanto não há muito mais. Vou saboreá-lo aos
poucos, como a minha mãe dizia que fazia com o chocolate quando era pequena. Não
pode haver impulsos de devoração compulsiva quando sabemos que depois disso só recriminação.
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