Fora-me dito que “Pássaros Feridos” era um livro sobre o
amor proibido entre uma nova zelandesa e um padre. Colocá-lo assim é simplista
demais. É um livro que põe em perspectiva as vidas, os papéis, as obrigações,
as dores de alma e os desafios que cada um está fadado a enfrentar.
A história começa com uma família de
imigrantes irlandeses com várias crianças a passar dificuldades na Nova
Zelândia, no início do séc. XX. É no seio dessa família que a única menina,
Maggie, começa a procurar o seu lugar no mundo. Nesta etapa da história surgem
os primeiros pontos fortes da mesma; a relação entre Fee e Patsy, os pais de
Maggie, e a doçura premente entre Maggie e o irmão mais velho, Frank.
Julguei que tudo se passaria aí,
nessa pequena cabana na Nova Zelândia, onde Maggie ajudaria sempre a mãe com as
mil e uma tarefas do lar e os seus muitos irmãos cresceriam para se tornar
tosquiadores como o pai. Mas então os ventos chamam-nos para a Austrália e,
desembarcados em Sydney, seguem para Drogheda, uma próspera fazenda de criação
de carneiros australiana. Como herdeiros dessa fazenda, os Cleary começam assim
a adaptação a uma vida com menos desafios, mas numa terra de grande beleza e de
grandes durezas também. Ora enfrentam dilúvios, ora sobrevivem a dez anos de
seca. Ora a vida animal tenta atacá-los – e inclusive arrebata-lhes vidas – ou desabam
tempestades com cargas eléctricas tão fortes que pegam fogo a hectares de
terra.
É neste cenário de adaptação que o
Padre Ralph de Bricassart conhece Maggie e a sua família, e se propõe a ajudá-los
com a adaptação e a proteger Maggie, posto que a mãe parece vê-la como algo de
incómodo e os irmãos se vão tornando demasiado duros para olharem pelas suas
necessidades. Ralph antevê na pequena Maggie o universo de brandura e
generosidade em que ela mais tarde se tornará e assim, nas circunstâncias mais improváveis, nasce um amor condenado à
grandiosidade da tragédia.
O livro atravessa quase todo o
século XX. Do que a II Guerra Mundial significou para a Austrália, como
possessão britânica, às muitas revoluções que tomaram a Europa e a mudaram,
tornando-a naquilo que é hoje. Os tempos também mudam; da avó Fee que hesita em
abandonar os corpetes e em envergar um vestido leve para os quarenta e cinco
graus à sombra da Austrália, à neta Justine que é actriz em Londres e adopta a
irreverência da recente “mini-saia”. Mas não é somente este o ponto forte do
livro – o retrato político-social do mundo ao longo de todo um século. O mais
significativo do livro são, sem dúvida, as relações interpessoais.
Cada uma das personagens principais,
de personalidades marcantes – Maggie,
Fee, Ralph, a tia Mary, Frank, Luke, Justine, Dane, Rainer, etc., etc., etc., tem
algo de tão rico em si que nos rouba o pio. Todos eles passam por verdadeiros
momentos de assombro em que se dão conta de quem são realmente, do que
pretendem, dos erros que cometeram, do que mais valorizam e que estão em vias
de perder. É um grande livro sobre perseguir-se os objectivos pessoais e
deixarmo-nos cegar por eles. É um livro sobre cometer-se erros, assumir-se
compromissos, choques de interesses, abdicação. O destino, ali tão marcante,
tudo o que vai a voltar, a vida a exigir pagamento para as benesses.
Já praticamente no final, o novo
ritmo protagonizado por três gerações de mulheres Cleary comoveu-me bastante.
Fee, Maggie e Justine são muito diferentes entre si. A primeira abraçou o seu
destino sem estrebuchar, a segunda lutou pelo que queria, mas a força dos
costumes subjugou-a, e a terceira vive a vida ao sabor das suas vontades.
Confesso que a Justine, embora tenha
aparecido para aí a 75% do livro, se tornou facilmente na minha personagem
favorita. Possuia a firmeza de carácter que faltava à Maggie, embora a própria Maggie não seja nenhum capacho, é um bocadinho mais conformada. Não me admira que causasse estranheza, posto que diz o que lhe passa
pela cabeça, choca quem a rodeia e não procura agradar ninguém. Comoveu-me a
sua força – em parte apenas fachada -, o amor incondicional que dedicava ao
irmão e, mais tarde, as dificuldades que encontrou para dar-se ao homem da sua
vida. Por medo de perder, de ser magoada, de querer e não poder ter. O amor é
fraqueza, e Justine sabe-o como ninguém.
Todas as personagens sofrem grandes
desenvolvimentos, grandes mudanças proporcionadas pelos tempos, as interacções
e a idade. Foi agradável ver esses envelhecimentos, o tempo parece ser, ele
mesmo, uma das personagens habilmente arquitectadas pela autora.
Como ponto fraco, que me impede de dar um cinco sólido, aponto duas mortes de personagens importantíssimas para a trama, que se sucedem de um modo pouco convincente e que se dão, também, sem motivo aparente. São um pouco rebuscadas, desenquadradas e inesperadas, embora tenham, claro, uma importância maior para o desenrolar do enredo.
É uma saga maravilhosa sobre uma
família de trabalhadores, de mulheres de época sem a presunção de serem mais do
que é esperado delas, mas também sobre o quebrar dos grilhões face aos
preconceitos do passado. Um retrato de vidas, melancólico e, por vezes,
doloroso. O livro lembra-me muito a filosofia budista, que defende que viver é sofrer. A obra compara os actos
humanos aos do pássaro que pressiona o próprio peito contra um espinho e que,
enquanto sofre, solta um trinado de beleza incomparável. Apenas que, no caso
dos humanos, sabemos o que sucede ao procurarmos o espinho, e ainda assim
fazemo-lo. "Pássaros Feridos" traz o conforto da inevitabilidade dos erros.
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Classificação: 5*****
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