"- Mataram-me, menina Wene"
A minha primeira experiência com Gabriel García Márquez foi, precisamente, com "Cem Anos de Solidão". A cada livro ou mesmo frase que leio dele, posso apenas constatar que não estava preparada para ler essa obra-prima quando me aventurei nela. Não consegui gostar, não me apaixonei pelo surrealismo sul-americano que tanta beleza imprime às obras deste autor.
Na altura alguém, vendo-me com perfil de escritora no Goodreads, veio dizer-me, em privado, que só poderia escrever caca se tinha atribuído 1 estrela à obra-prima do Gabo. Na altura evoquei o evidente: não me identifiquei, não gostei. Uma classificação a uma obra artística é sempre mais um manifesto de percepção do que algo de aproximado a uma verdade absoluta. Não há verdades absolutas quanto à arte, mas há verdades incontornáveis. E é incontornável que o Nobel colombiano é um contador de histórias exímio.
Há um grande debate aí pelas redes sociais, a propósito da qualidade das obras/gosto pessoal dos leitores. Eu digo isto: se se quer avaliar a alma de um livro, a sua qualidade humanística, olhe-se aos leitores. Quem leu? Quem gostou? E daí retirem as vossas conclusões. Já que usei a palavra caca acima, vou chamá-la de novo: escreve-se muita caca hoje em dia. Há um culto do "escrever": as palavras caras, os floreados, o cliché, a piada fácil, a tentativa de criar um tcharan no encerrar da ideia que, na maioria das vezes, me suscita um "?" e um enrugar de testa. Mas que raio...?
Onde anda o conteúdo? Onde andam os contadores de histórias? Eu digo-vos, a meu ver, onde é que eles andam:
À escuta. Atrás das portas, nas esquinas, nos becos. É o tipo de cigarro nas beiças a duas mesas da vossa, ao pequeno-almoço. É o que finge ler o jornal enquanto vocês conversam com a vizinha na paragem de autocarro. É o que olha pela janela do metro enquanto vocês falam ao telefone. É o miúdo que se põe hirto enquanto vocês discutem, em casa e de janelas abertas, confiantes que ninguém vos ouve. E que depois guarda isso para si, ou corre em busca de uma caneta e do verso de um talão para apontá-lo. É quem saca da máquina fotográfica ou do gravador, ou que digita as vossas palavras à velocidade que as verbalizam, para não perder pitada da vossa alma falada. Daquilo que vos sai com naturalidade.
E Gabriel García Márquez é um observador nato. Os diálogos são incólumes, sãos, palpáveis. Chegam-nos por entre sopros do hálito das personagens, dos seus lábios gretados, dos seus dentes lascados, das suas sinusites e dos seus catarros. O homem é um extractor de almas, e quem o é só precisa de meia dúzia de páginas para contar uma história antes de cair na repetição.
Crónica de uma Morte Anunciada tem 107 páginas na versão em que a li, e é de uma riqueza literária inegável (uma verdade incontornável).
Santiago Nasar está condenado, todos os sabem. Mas aí entram as motivações humanas, as suas fraquezas, as suas crenças pessoais "ah, eles vão lá agora matar o rapaz". "Mas alguma vez?", e joga o seu vasto conhecimento da essência de um povo que é seu e de um passado de que também comunga. A força da tradição, que nos fortalece em certas situações e nos amordaça noutras, o assassino que não quer matar mas que o deve à honra, o povo que entende as razões e, ainda assim, leva flores ao morto.
Estou deserta (vim agora do Algarve) de continuar a lê-lo. "O Amor nos Tempos de Cólera" e agora esta maravilhosa crónica puseram-me alerta para aquilo que tenho andado a perder. Espero que se deixem prender com tanta intensidade quanto eu.
Um 5***** no absoluto matemático deste número infinito.
Sinopse: Vítima da denúncia falaciosa de uma mulher repudiada na noite de núpcias, o jovem Santiago Nasar foi condenado à morte pelos irmãos da sua hipotética amante, como forma de vingar publicamente a sua honra ultrajada e sob o olhar cúmplice ou impotente da população expectante de uma aldeia colombiana: é esta a história verídica que serve de base a este romance, e que, logo nas suas primeiras linhas, é enunciada. A capacidade de Gabriel García Márquez em reconstruir um universo possuído pela nostalgia, mágica e encantatória da infância e a sua genial mestria em contar histórias fazem deste romance mais uma das obras-primas que consagraram definitivamente este autor.
Sem comentários:
Enviar um comentário