Sinopse: «Kitty sente-se prisioneira de um casamento
infeliz e de um estilo de vida que está longe de ser aquele que sonhou para si.
Sem que tivesse obtido a notoriedade social que desejava e afastada do seu país
e da família devido à profissão do marido – bacteriologista destacado para Hong
Kong –, a jovem acaba por encontrar algum consolo numa relação extra conjugal.
Mas a traição acaba por ser descoberta pelo marido, que leva a cabo uma
estranha e terrível vingança… Através do despertar espiritual da
adorável e fútil Kitty, Somerset Maugham pinta um retrato vívido da presença
britânica na China e apresenta-nos uma galeria de personagens inesquecíveis.»
Opinião:
"O Véu Pintado", adaptação com Edward Norton e Naomi Watts, é dos
meus filmes favoritos. A banda sonora é simplesmente sublime! Li trechos do
livro a ouvi-la, amplamente comovida pela beleza e a nostalgia que transmite.
Já ouvi quem dissesse que estava muito aquém do livro, mas hoje, e terminada a
leitura, considero até que o filme - tendo em conta a altura a que um filme se
pode erguer perante um livro, é tão bom quanto o dito cujo, neste caso. Vou
explicar que matemáticas básicas me levam a este resultado: o filme romanceou
um pouco a história, fazendo com que a Kitty se redimisse devido ao amor e à
admiração que acaba por nutrir pelo marido. Julguei que fosse um romance assim,
sobre redenção. Sobre o facto de ela ser jovem e viver de centelhas de brilho
para, em seguida, se dar conta do verdadeiro valor intrínseco à natureza
humana. Em contrapartida o livro exibe o talento nato do autor para explorar o
funcionamento da mente e das emoções humanas.
O livro é sobre
erros. Sobre arrependimento e sobre recaídas, sobre desprezo, compreensão e
incompreensão, e sobre o quão inalcançáveis algumas pessoas nos parecem, tal
fechado é o seu modo de ser. Houve uma parte em que a Kitty teve um relance da
complexidade do marido e descreve esse momento como olhar para uma floresta
frondosa e escura à noite, vê-la alumiada momentaneamente por um relâmpago,
julgar ter lá visto algo e, então, regressar às trevas. O Walter Fane é um
puzzle fascinante e comovente. É ternamente apaixonado pela Kitty (não digo
loucamente porque é demasiado tímido e contido, mas a dimensão do seu afecto é
obviamente desmesurada) e fica feito em cacos quando ela o trai. Provavelmente
para se perdoar a si próprio - por ter amado uma criatura como ela, uma
adúltera mimada e caprichosa - e para atenuar a sensação de desprezo por si
mesmo (pelos mesmos motivos), obriga-se a fazer um sacrifício maior. Um
sacrifício que porá em risco tanto a sua vida quanto a da sua esposa infiel:
como bacteriologista, refugia-se em Mei-tan-fu, um recanto na China onde as
pessoas perecem como moscas devido à Cólera.E é nesse cenário
exótico e de choque de culturas que a Kitty "cresce". Nos poucos
meses (dois ou três) que passa em contacto com a doença, com as freiras do
orfanato, com o seu vizinho inglês que vive com uma mulher manchu, a sua mente
expande-se e ela começa a reflectir sobre a vida, o amor, a felicidade, si
própria, a religiosidade, e a tentar decifrar o modo como a sua traição
modificou o marido - outrora tão dedicado - e a condenou à infelicidade e a
caminhar lado-a-lado com a morte. As suas prioridades rearranjam-se e ela
começa a vencer os próprios preconceitos e a desejar ser uma pessoa melhor.A Kitty Fane
tornou-se, rapidamente, uma das minhas personagens favoritas da literatura. A
Naomi Watts é bonita e tem aquele ar doce meio espevitado, mas a personagem em
três dimensões do livro tem pensamentos preciosos que espelham a mesquinhez que
ocupa tão frequentemente a mente dos humanos. Ela enoja-se, de início, por ter
de conviver com crianças chinesas - amarelas e de nariz achatado e olhos
inexpressivos, segundo ela própria. Ela sente repulsa de uma criança que tem
uma doença que implica um tamanho de cabeça desproporcional em relação ao corpo
e que se baba, e que para mais a segue e está obcecada por conseguir o seu
afecto. Ela pensa nela própria antes de pensar nos outros - e com o seu
desenvolvimento ao longo do livro começa a importar-se cada vez menos consigo e
mais com o bem estar geral, de um modo sincero que acaba por espelhar um
crescimento gradual e maduro. Faz amizades genuídas que a ajudam a entreabrir
os véus que envolvem os grandes mistérios da personalidade e das razões humanas.O filme, tendo
forjado uma reconciliação entre o Dr. Fane e ela, satisfez o meu senso
romântico, porque achei que havia ali muito pano por onde debater. O orgulho
ferido dele e o amor que, vencendo o primeiro, prevalece. O vencer do asco que
parece ter ao marido - por ele não ser bem-parecido nem popular e por ceder com
facilidade aos seus desígnios - por parte da Kitty. Mas *spoiler alert!* a
Kitty do livro acaba por admirar e respeitar o marido, mas a reconciliação
nunca se dá. Inclusive, ao morrer, ela implora-lhe por perdão. E ele responde:
o cão foi que morreu.Adorei a viagem ao
interior da Kitty e à sua percepção de quem a rodeava. Adorei as paisagens
chinesas e a sua cultura (é o segundo livro, no espaço de um mês, que leio e
que revolve em torno da China). Adorei as reviravoltas da mente do autor, que
me pôs a reflectir seriamente e, inclusive, me comoveu uma ou outra vez. Fiquei
fascinada pelo Walter, que pertence exactamente ao tipo de homem que só se ama
quando se tem um elevado grau de maturidade. E sobretudo adorei o absurdo da
vida: qual é o caminho a seguir? A Kitty não sabe. Algum dia virá a perdoar-se
a si própria? A Kitty não sabe. O marido chegou a perdoá-la? A Kitty também não
sabe. É um romance desconcertante, lido num sopro que durou dois dias, que me
comoveu e me encheu de melancolia e de pequenas tristezas. As das despedidas
para sempre. As das grandes viagens para não mais regressar. As da tragédia
humana e social. Apesar de
magistralmente bem escrito, arquitectado e conduzido, não consigo dar-lhe
cinco. Atribuo-lhe um quatro e setenta e cinco sólido. Apenas não posso dar
cinco porque o li à procura desse descer à terra da Kitty, mas os seus erros,
de tão térreos, acabam por ser exasperantes. O autor foi tão realista que não
sobrou umas lascazinhas de romance para esta romântica se agarrar. A relação da
Kitty e do Walter tem tantas potencialidades a partir do momento em que ela se
apercebe do valor dele! Como é que o autor não a desenvolveu? Oh Somerset, eu
sei que na vida real as pessoas têm tendência a prosseguir pela estrada mais
fácil, pelo caminho dos erros aonde se insinua, lá ao fundo, a pirite, qual
ouro dos tolos... mas não poderias ter levado a Kitty a um porto seguro? Não
podias tê-la conduzido até ao ouro genuíno? Não poderia ela ser daquelas raras
pessoas que a literatura descreve como tendo-o achado, enquanto a pirite é para
os que se ficam pela vida real...? Até isso louvo na tua obra...! Que coragem
para não dares aos leitores o que eles querem.Contudo, foi das
leituras mais prazerosas dos últimos tempos. Certamente que um dia voltarei a
lê-lo... quem saiba esteja eu própria mais consciente da falta de nexo da
existência.
«But soon a wonder came to light,
That showed the
rogues they lied;
The man recovered
of the bite,
The dog it was that
died.»
Oliver Goldwin
Classificação: 4,75****/*
Exactamente, para ficção o final nao é nada de extraordinário. Esperava-se mais. Como historia verídica o caso mudaria de figura. E pelos vistos o livro vai pelo mesmo caminho. Ainda assim o filme será preferível pelas paisagens.
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