quarta-feira, 3 de abril de 2013

Rayuela - iv


Durante toda aquela tarde, ele assistiu uma vez mais, uma de tantas vezes mais, testemunha irónica e comovida do seu próprio corpo. Às surpresas, encantos e decepções daquela cerimónia. Habituado sem saber aos ritmos da Maga, de repente um novo mar, uma ondulação diferente arrancava-o dos automatismos, confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão rodeada de dissimulações.
O encanto e o desencanto de passar de uma boca para a outra, de procurar de olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentir que a curva não é igual, que tem uma base mais espessa, um tendão brevemente tenso com o esforço de se aproximar para beijar ou morder. Cada momento do seu corpo frente a um desencontro delicioso, ter que esticar-se um pouco mais ou que baixar a cabeça para encontrar a boca que antes estava ali tão próxima, acariciar uma anca mais definida, provocar uma resposta e não a obter, insistir, distraído, até se perceber que é necessário inventar tudo mais uma vez, que o código ainda não foi estabelecido, que as chaves e os números vão nascer novamente, e serão diferentes, e responderão a outra coisa. O peso, o cheiro, o tom de uma gargalhada ou de uma súplica, os tempos e as precipitações, nada coincide sendo sempre igual, tudo nasce novamente sendo imortal. O amor brinca a inventar-se, foge de si mesmo para regressar na sua espiral acolhedora, os seios cantam de outra forma, a boca beija mais profundamente ou como que vinda de longe, e num momento onde antes havia apenas cólera e angústia, existe agora o jogo puro, a brincadeira incrível, ou pelo contrário, à hora em que antes de caía no sono, no balbuciar de algum disparate, existe agora uma tensão, algo não comunicado mas presente, que exige entrar, qualquer coisa como uma raiva insaciável. Só o prazer no seu estado último é ele mesmo; antes e depois o mundo ficou desfeito em pedaços, e é necessário nomeá-lo novamente, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra.

cap. 92

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