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terça-feira, 16 de julho de 2013

#95 CORTÁZAR, Julio, O Jogo do Mundo


Opinião: Eu quis muito apaixonar-me por este livro. Vivê-lo, digamos assim. La Rayuela, capítulo 7. Na voz de Julio Cortázar, senti a boca cheia de flores ou peixes enquanto beijava um grande amor. É o meu pedaço favorito de literatura de sempre. Por muito que o livro não seja o meu favorito, essa preciosidade é. É um livro intimista, todo ele poderia passar-se dentro da cabeça (conturbada) do Oliveira, que deambula nas ruas de Paris. São pessoas complicadas, o Oliveira, a Maga e o Clube da Serpente, que discutem questões literárias. Abrem uns quantos debates nesta área e apresentam-nos Blues de excelente qualidade. É um retrato intimista de uma pobreza que o não é de mente. Nus de personagens poderosas, multidimensionais, que tocam e mudam e aconchegam a vida uns dos outros. Um estilo narrativo difícil, volátil, com rasgos de genialidade. Amei de paixão cerca de 75% do livro, mas a retirada de uma das minhas personagens favoritas da acção originou uma cisão na leitura. Voltei a pegar-lhe hoje, sem saber que o terminaria de enfiada. Pareceram-me quase aborrecidos e entediantes estes últimos capítulos. Mencionei a existência de uma chave para ler o livro? Cap. 2, cap. 141, ca. 3, cap. 110, cap. 4., etc. Li-o como sugerido pelo autor, sem saber em que pé da narração me encontrava. Não há um princípio-meio-fim. O capítulo 56, o último da estrutura “convencional”, foi um esvoaçar de páginas, passei-o na diagonal, um pouco entediada. É difícil mantermo-nos à tona num livro como este, que por vezes roça a genialidade absurda. Mais tarde, com outra maturidade, tentarei buscá-lo de novo e, quem sabe, todo ele me saiba a mel.
Por agora, não foi o momento certo. Cortázar merece-me a 100%, e eu andei a meio gás.

Julio Cortázar é um grande nome da literatura Argentina. Publicou "La Rayuela", ou o Jogo do Mundo em 1963 e o livro continua a encantar jovens mundo fora. Segundo as palavras do próprio, esta obra foi incompreendida pelo público a que pensou que pudesse dirigir-se. Foram os jovens, esses sim, a captar-lhe a essência e a deixarem-se fascinar pelo seu conteúdo. Também admitiu que dificilmente consegue escrever sobre o indivíduo a sós em si próprio. Escrevia sim sobre grupos, círculos, e sobre as suas interacções. O papel do todo perante cada um e o que o "eu" é face ao todo.

Os Gotan Project, que misturam a sofisticação francesa com o tango argentino, têm uma homenagem musical ao capítulo 7 desta obra.

Sinopse: O amor turbulento de Oliveira e da «Maga», os amigos do Clube da Serpente, as caminhadas por Paris em busca do Céu e do Inferno, têm o seu outro lado na aventura simétrica de Oliveira, Talita e Traveler, numa Buenos Aires refém da memória.


A publicação de «O jogo do mundo» (Rayuela) em 1963 foi uma verdadeira revolução no romance mundial: pela primeira vez, um escritor levava até às últimas consequências a vontade de transgredir a ordem tradicional de uma história e a linguagem usada para a contar. O resultado é este livro único, cheio de humor, de risco e de uma originalidade sem precedentes.
Considerado o romance que melhor retrata as inquietudes e melhor resume o Século XX na visão latino-americana do mundo, desde a sua publicação, gerações de escritores são, de uma maneira ou de outra, devedoras de «O jogo do mundo».

Classificação: 4****/*


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Rayuela - iv


Durante toda aquela tarde, ele assistiu uma vez mais, uma de tantas vezes mais, testemunha irónica e comovida do seu próprio corpo. Às surpresas, encantos e decepções daquela cerimónia. Habituado sem saber aos ritmos da Maga, de repente um novo mar, uma ondulação diferente arrancava-o dos automatismos, confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão rodeada de dissimulações.
O encanto e o desencanto de passar de uma boca para a outra, de procurar de olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentir que a curva não é igual, que tem uma base mais espessa, um tendão brevemente tenso com o esforço de se aproximar para beijar ou morder. Cada momento do seu corpo frente a um desencontro delicioso, ter que esticar-se um pouco mais ou que baixar a cabeça para encontrar a boca que antes estava ali tão próxima, acariciar uma anca mais definida, provocar uma resposta e não a obter, insistir, distraído, até se perceber que é necessário inventar tudo mais uma vez, que o código ainda não foi estabelecido, que as chaves e os números vão nascer novamente, e serão diferentes, e responderão a outra coisa. O peso, o cheiro, o tom de uma gargalhada ou de uma súplica, os tempos e as precipitações, nada coincide sendo sempre igual, tudo nasce novamente sendo imortal. O amor brinca a inventar-se, foge de si mesmo para regressar na sua espiral acolhedora, os seios cantam de outra forma, a boca beija mais profundamente ou como que vinda de longe, e num momento onde antes havia apenas cólera e angústia, existe agora o jogo puro, a brincadeira incrível, ou pelo contrário, à hora em que antes de caía no sono, no balbuciar de algum disparate, existe agora uma tensão, algo não comunicado mas presente, que exige entrar, qualquer coisa como uma raiva insaciável. Só o prazer no seu estado último é ele mesmo; antes e depois o mundo ficou desfeito em pedaços, e é necessário nomeá-lo novamente, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra.

cap. 92

quinta-feira, 28 de março de 2013

Rayuela - iii


«Em Montevideu era a mesma coisa, uma pessoa não podia amar ninguém de verdade, passavam-se de imediato coisas estranhas, histórias de lençóis ou de cabelos, e tantas outras coisas para uma mulher, Ossip, os abortos por exemplo.»

cap. 27





Montevideu (1964)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Rayuela - ii





«- A pintura é outra coisa, não é um produto visual – disse Etienne. – Eu pinto com todo o meu corpo, e nesse sentido não sou assim tão diferente do teu Cervantes ou do teu Tirso de não sei quantos. O que dá cabo de mim é a mania das explicações, o Logos entendido exclusivamente como verbo.
- Etcétera, disse Oliveira, mal-humorado. – Por falar em sentido, a vossa conversa parece um diálogo de surdos.
A Maga cingiu-se ainda mais contra ele. «Agora esta vai dizer alguma das suas asneiradas», pensou Oliveira. «Primeiro precisa de esfregar-se, de decidir-se epidermicamente.». Sentiu uma espécie de ternura rancorosa, algo tão contraditório que devia ser a pura verdade. «Seria necessário inventar-se a bofetada doce, o pontapé de abelhas. Mas neste mundo as últimas sínteses continuam por descobrir. Perico tem razão, o grande Logos vela. Que pena, fazia falta o amoricídio, por exemplo, a verdadeira luz negra, a antimatéria que tanto dá que pensar a Gregorovius.»

cap. 9

Rayuela - i


«A desordem em que vivíamos, isto é, a ordem segundo a qual um bidé se vai convertendo natural e paulatinamente em arquivo de discos e de correspondência por responder, parecia-me uma disciplina necessária, ainda que não quisesse dizê-lo à Maga. Tinha-me levado muito pouco tempo a compreender que não havia por que apresentar a problemática da realidade em termos metódicos à Maga; o elogio da desordem tê-la-ia chocado tanto como a sua denúncia. Para ela não havia desordem, soube-o no mesmo momento em que vi o conteúdo da sua mala (foi num café da rue Réamur, chovia e nós começávamos a desejar-nos), e depois de ter reparado nesse detalhe, eu aceitei-o e favoreci-o; a minha relação com a maior parte das pessoas era feita dessas desvantagens, e quantas vezes, deitado numa cama que não era feita há muitos dias, ouvindo a Maga chorar porque um bebé no metro lhe tinha trazido à memória Rocamadour ou vendo-a pentear-se depois de ter passado a tarde inteira em frente a um retrato de Leonor de Aquitânia e estar morta de vontade de se parecer com ela, me ocorria como um género de arroto mental que esse a-b-c da minha vida era uma penosa estupidez porque se ficava pelo mero dialéctico, pela escolha de uma má conduta em lugar de uma conduta, de uma módica indecência em vez de uma decência gregária. A Maga penteava-se, despenteava-se, voltava a pentear-se. Pensava em Rocamadour, cantava algo de Hugo Wolf (mal), beijava-me, perguntava-me algo sobre o penteado, punha-se a desenhar num papelinho amarelo, e tudo isso era indissoluvelmente ela, enquanto eu ali, numa cama deliberadamente suja, a beber uma cerveja deliberadamente quente, era sempre eu e a minha vida, eu com a minha vida diante dos outros.»

cap. 2