terça-feira, 28 de maio de 2013

Servidão Humana #2

Algures no Goodreads surge uma review a este livro, com uma classificação bastante depreciativa, em que o identifica como “uma sucessão de erros da personagem principal”, é vê-lo cometer um disparate atrás do outro. Eu concordo com isto, mas adoro o livro por esse mesmo motivo. Acho que acabei de entender o que é que o Maugham pretendia com este livro: vêem-se assim expostos os vícios e as fraquezas de uma civilização a quem nada está vedado. As possibilidades são infinitas. Desde o meu último update, o Phillip já esteve em Inglaterra (Kent) e na Alemanha (Heidelberg), e também em grandes urbes como Londres ou Paris. Já trilhou uma espécie de Introdução à Contabilidade, que emerge na viragem do século como profissão de novos cavalheiros, e estuda Arte em Paris. No novo século é-lhe até difícil distinguir um cavalheiro dum comum trausente. No novo século as mulheres têm famas dúbias e envolvem-se em escândalos amorosos (mesmo as solteiras). Viveu um envolvimento conturbado com Mrs. Wilkinson, uma criaturinha que ele quase abomina mas da qual se serve apenas porque, na visão de Phillip, estava na hora de ter um romance para narrar aos amigos. Se Phillip é uma personagem amorosa, admirável? Não, Phillip é, na minha opinião, uma marioneta. Dança ao sabor das milhentas possibilidades do novo século. A Europa inteira é-lhe um anfiteatro de ruelas por onde se embrenhar. A onde ir? O que aprender? O que fazer? Quem ser? Phillip está perdido. Podendo ser qualquer coisa, dispersa-se. Terá vinte e poucos anos e já desistiu da carreira eclesiástica (desacredita Deus), já largou um ano de estágio em Contabilidade, está agora a desencantar-se com o seu parco talento para a pintura numa escola de Paris. Mas a culpa não é de Phillip, a culpa é dos tempos. Os tempos obrigam-no a ter um caso amoroso - e ele é muito susceptível ao que pensam dele, é muito orgulhoso e tímido também -, os tempos obrigam-no a deslocar-se para onde a vida fervilha realmente, a Cidade das Luzes, os tempos obrigam-no a querer imitar um Manet ou um Monet, um Renoir ou um Degas. O desafio é a limitação do seu talento aos seus almejos. Ele nem sequer é uma pessoa efusiva, mas deixa-se absorver pelas personalidades marcantes que vão surgindo aqui e ali, todas elas mais fortes do que ele. Ele é  uma sombra da luz que os outros emanam, absorve-os e tenta seguir-lhes o exemplo, quase sempre com fraco desempenho. Impressiona-se facilmente e, apesar de ser inteligente, é demasiado ingénuo (e novo) para se conhecer a si próprio. Está ancorado às convenções, ao que parece bem, enquanto brame que é um homem moderno e dono do seu destino. É uma alma fraca, ansiosa por se ligar a outras, ciumento, cobarde demais para ser cruel ou directo, persistente mas também teimoso, desmotivado e desmoralizado pela anomia social do século que se aproxima.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Servidão Humana #1


Conheci o Somerset Maugham através d’O Véu Pintado, e conheci O Véu Pintado através da adaptação de 2006 com o Edward Norton e a Naomi Watts. Filme precioso, um olhar íntimo sobre a vida privada de um casal dos anos 30. O livro é diferente; é desconcertante na sua abordagem ao coração humano, à inclinação incontornável ao erro, ao mais fácil, ao queimar-se uma outra vez na mesma chama. A profundidade humana é tocante, fascinante e qualquer leitor se identifica facilmente com estes espectros erróneos que o Maugham descreve. Foi um romance um pouco mais da minha linha, no sentido em que há uma relação central como fio da meada. Há a China, a cólera e a mulher infiel. E pronto, eu estava rendida. Não precisei de muito para penar pelo seu “Servidão Humana”. Já mencionei que, de visita à Russborough House, em Wiclow (Irlanda), parei numa biblioteca enorme à procura dum autor que conhecesse e, de entre todos os nomes desconhecidos, apenas Maugham me acenou? Foi como estar, subitamente, em casa.

SPOILERS, SPOILERS ALL AROUND!

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O livro começa com a morte de uma mãe. Uma criança órfã que anseia por carinho e por vitimar-se. É humano, será que vale a pena dizermos que quer vitimar-se? Trata-se apenas de tirar alguma vantagem das desgraças pessoais. Para este rapazinho, isso espelha-se no abraço, na palavra de compaixão, nos mimos que podem servir de recompensa à perda da mãe. Nesta primeira centena de páginas podia já o romance encerrar-se, e eu estaria já rendida e apaixonada. Não há romance, há apenas relações humanas. O servilismo, a existir, é do eu perante si próprio. Este Phillip Carey, esta pessoa tão comum e, contudo, tão intrigante, é já uma das minhas personagens favoritas de sempre. Isto porquê? Phillip sofre de todas as mesquinhices humanas: vaidade, mentira ocasional, orgulho exacerbado, ciúme injustificado, ocasionalmente inveja. Cresceu à sombra dum tio vigário e, por isso, nunca duvidou de Deus ou da veracidade absoluta da doutrina da Igreja Anglicana. Nunca, até certo ponto. Nesta primeira centena de páginas Phillip foi já confrontado com a possibilidade de vir a tornar-se também ele vigário e, posteriormente, começa a questionar, através de conhecimentos que faz na Alemanha, longe do Kent onde cresceu, se existirá realmente uma religião verdadeira ou um deus único. O que estou a apreciar é, sobretudo, o meu desbastar dos receios que alimentava quanto a este livro; é um livro enorme (lê-se incrivelmente bem), Somerset é um grande escritor, será que conseguirei acompanhá-lo? (ele esforça-se por vir ao meu encontro sem, no entanto, me tomar por imbecil), será um pseudo-intelectual? Terá algo a acrescentar-me? (o autor atira-nos para os olhos a ignorância de Phillip  mais gritante a cada vez que algo de novo lhe é ensinado. Tão vastas as extensões, depressões, viragens de rumo da Natureza humana num livro com ainda tanto para oferecer.
Philipp é tímido, tem pé boto, é inteligente mas tantas vezes estes dois factores impedem-no de expressar essa inteligência e é tomado por idiota. Cada pessoa com que se cruza – as que ama e as que odeia – são palpáveis e apaixonantes a seu modo. Mr. Carey, o tio vigário. Mrs. Carey, nunca mãe, tia de sangue, frágil e submissa (queixa-se, porque é mulher, obedece, porque é esposa). Mr. Watson, o director de colégio religioso que ri demasiado alto e é bruto a demonstrar carinho pelos alunos. Mr. Perkins, director da escola preparatória, descendente de um fanqueiro, por isso desprezado pela trupe de intelectuais abastados que ensinam nessa escola, tão inteligente e perspicaz que é finalmente com ele que a sagacidade de Phillip se expande.
Phillip a descobrir o poder da literatura para alheamento dos que vivem existências infelizes. Phillip a aprender a ser selectivo na Literatura. Phillip a considerar a Igreja Anglicana como um elemento de conforto na sua vida. Phillip a considerar deus um ultraje a igreja um embuste. Phillip a considerar a sua orfandade motivo de pena, de dessabor. Phillip a considerar o seu pé boto um entrave para criar ligações. Phillip a agradecer a deus pelo fardo do pé boto, que lhe permitiu crescer mais ou menos à margem dos restantes, aculturando-se enquanto os restantes jogam futebol. Phillip a querer alguém – um amigo – só para si. Phillip  odiar esse amigo. Phillip a querê-lo de volta. Phillip a querer desistir da escola, a lutar afincadamente para consegui-lo. Phillip inconsolável, irritado consigo mesmo, por ter conseguido deixar a escola, vencido a batalha, quando afinal tudo o que quer é ficar. E a sua comoção face à beleza, à arte, à natureza, surge como um marco importante na vida de qualquer ser humano. Foi naquele dia que primeiramente testemunhou a beleza, e a sua vida mudou.
Estou arrebatada, encantada por tanta complexidade. Estão aqui algumas das melhores personagens com que tive o prazer de privar na Literatura, juntando-se a Kitty Fane d’O Véu Pintado, Scarlett O’Hara e Rhett Buttler do E Tudo o Vento Levou, e Dr. Victor Frankenstein e o monstro, do livro homónimo ao médico.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

#86 BESSA-LUÍS, Agustina, A Sibila

Sinopse: A Sibila é um romance de Agustina Bessa-Luís. Sibila, que remete para a figura clássica da Sibila de Delfos, significa adivinha e refere-se à personagem Joaquina Teixeira, a Quina. O livro não se atreve a narrar a história do nascimento à morte da protagonista, mas contou a vida de duas gerações anteriores da família Teixeira e duma posterior e ainda de outras famílias e amigos próximos desta. Narra conspirações, corrupções e intrigas de parentes, criados, amigos e inimigos. De passagem ocorrem críticas à burguesia rural, mas no romance avulta sobretudo uma reflexão sobre a dimensão metafísica do ser humano. Quina não tinha poderes sobrenaturais, era apenas atilada e prática conselheira; ninguém da sua igualha a tratava por sibila. Morreu velha e doente, mas orgulhosa da casa que salvara da falência e da fortuna que amealhara. A história começa e termina com Germa, sua sobrinha, filha do irmão Abel, que representa uma geração já urbana, desenraizada dum espaço a que Quina sempre se sentira presa.

Opinião: De vez em quando acontece-me ler um livro onde perco o pé. Em relação à “Sibila”, da Agustina Bessa-Luís, julguei-me na eminência de me afogar. A cerca de setenta páginas do fim (é um livro pequeno, de 248 páginas) recuperei esse pé, e tornou-se um gosto nadar por estas águas. Perguntei-me, inclusive, o que se terá passado nas restantes páginas para que lhes tivesse tamanho alheamento. Já próximo do fim identifiquei o factor em falta n. 1 - a convergência, a eminência de uma revelação, uma história com a estrutura “habitual” (facilitada, vá), do género 1. problema 2. tentativa de resolução 3. solução! Neste livro estende-se sim a narração da vida de uma família do Minho - penso que seja o Minho, devido a alguns elementos culturais que identifiquei - vinho verde e filigrana entre os mais óbvios. Mas sem um problema, um mistério, um segredo por desenvolver. É um simples (not so simple, though) relato de algumas gerações cujas vivências se deram sob o mesmo tecto. É esse o principal fio da meada, no livro - a casa da Vessada, como nenhum outro. Dando por mim a apreciar finalmente o livro - logo quando estava prestes a findar-se, identifiquei o factor em falta n. 2, o que me impediu de segui-lo com sofreguidão desde o início: não é uma história de amor, não há, tãopouco, amor em lado algum. Não há, nesta obra, qualquer vestígio de amor romântico. É um relato um pouco cru dos afectos, como se estes estivessem sempre suspensos da utilidade que nos possam ter, do quanto estamos dispostos a darmos de nós, do que somos e do que queremos que os outros pensem que somos. Há amor, sim, mas um amor conturbado, ora devoto, ora despeitoso, ora amargurado por ser amor, ora orgulhoso de não ser outra coisa qualquer. Deixem-me tentar explicar-me melhor, num discurso bem mais básico do que o da mestria fluida da Agustina:

O livro tem dois marcos temporais - que eu tenha identificado - o ano de recuperação da casa da Vessada, 1870, e a Implantação da República, porque desaparecem dos carros (a tracção animal) os brasões. Fora isto, o tempo é algo demolidor, transversal, algo que mescla todos e que não discrimina ninguém. A história não tem um elo de ligação muito acentuado. A passagem temporal é algo ténue, é contada como que algo percepcionável. Isto é, ora a pessoa se sente nova - e todos ao seu redor são jovens, ora a pessoa ainda se sente nova e enérgica, mas todos ao seu redor já são velhos, ora a pessoa já está velha e acabada e os restantes lhe parecem mais fortes. A casa sofre algumas fases que acompanham o vigor de Quina, a personagem principal. Primeiro é totalmente destruída por um fogo, gravando-se em seguida o ano de 1870 na varanda. Em seguida Quina nasce, a propriedade começa a recuperar-se e a prosperar discretamente. Quina atinge a juventude com mais vitalidade que a mãe e, tendo o pai falecido, assume naturalmente o rumo da propriedade; impõem-se-lhe. É nesta época que, pressupostamente, se encontra mais aguçada a sua capacidade de “sibila”, de vidente, de mulher do oculto, das intuições das entrelinhas da vida. Mas confesso que de vidente não lhe vi muito. Se calhar procurei literalmente esse dom quando, na realidade, se trata de mexeriquice de vizinhos, de cegos perante um elemento que vê. Penso que o seu condão de bruxa é apenas a sua inteligência límpida por entre tolos, o seu conhecimento do outro que a faz sobrepôr-se-lhe, conduzi-lo, extrair-lhe o que pretende. Na Quina denoto uma certa pretensão, um certo desejo preemente de ser diferente dos outros, mais sensitiva, procurada para conselhos e rumos, livre para proferir desmandos. No fundo, ela quer ser mais do que um adereço, dois braços, suor, num mundo de homens, e vale-se assim daquilo que é temido - em certas épocas combatido, noutra tolerado com o respeito do receio - nas mulheres; o sexto sentido, a adivinhação, a sensibilidade para prever desfechos, a esperteza feminina equiparada a feitiçaria. Nunca a vi a fazer mais do que umas rezas aos vizinhos, mas estes próprios a apelidam de “sibila”, e ela gosta disso. Com o amadurecimento, contudo, passa da vaidade à quase apatia. Torna-se mais humilde, passa a reconhecer valores - como a simplicidade forçada de quem vive bem mas não quer ostentar - que outrora lhe causavam espécie. Uma das minhas personagens favoritas é o Custódio. Lembrou-me o Heathcliff do Monte dos Vendavais. Aliás, muito deste livro me recordou o Monte dos Vendavais, mas enquanto n’A Sibila a natureza humana se agita nos sobressaltos da vida, na obra-prima de Emily Brontë agita-se nas incongruências do amor.


Quando se aproxima do fim – para mim, mera leitora – torna-se mais fácil de compreender, embora continue a primar pela complexidade. Que princípios moveram, afinal, esta personagem, esta Quina? O que, na vida, lhe foi mais importante? Apesar da luta por se impor, por ser diferente sem no entanto ofender, a que convenções é incapaz de fugir?
“A Sibila” é um romance complexo, difícil de digerir. Tive alguma ajuda ao adquiri-lo na edição da Guimarães editores em segunda mão, porque todas as palavras difíceis (que são aí cinco por página) vinham sublinhadas e com a respectiva definição na margem, o que me permitiu lê-lo em três semanas em vez de três meses. Arrastou-se sempre, contudo, a impressão perturbadora de não compreender a totalidade do que estava perante os meus olhos.
Penso que um dia o lerei de novo - com a atenção sobre-humana que dediquei às últimas dezenas de páginas -, porque é-me sempre precioso ver uma mulher erguer-se, com os seus defeitos e fraquezas inerentes, e vingar num meio de homens.
Voltarei, sim, a ler Agustina Bessa-Luís, quase certa de que encontrarei a mesma perspicácia, a mesma profundidade humana, em qualquer outro dos seus romances.

Classificação: 4****/*

sábado, 4 de maio de 2013

#85 MARTEL, Yann, A Vida de Pi

Classificação: 5*****

Sinopse: Quando Pi tem dezasseis anos, a família decide emigrar para a América do Norte num navio cargueiro juntamente com os habitantes do zoo. Porém, o navio afunda-se logo nos primeiros dias de viagem. Pi vê-se na imensidão do Pacífico a bordo de um salva-vidas acompanhado de uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Em breve restarão apenas Pi e o tigre.

Opinião: Este livro – e o respectivo filme – estão envoltos em muito falatório. Primeiro os elogios à tecnologia utilizada para recriar, no filme, um tigre e o ambiente inóspito do pacífico. Ang Lee ganha, felizmente, o Óscar pela direcção deste filme sublime. Uma obra gritante de beleza, espiritualidade e talento. Não imagino um ocidental a consegui-lo. Mas quanto ao filme já falei aqui. Entretanto também o livro havia sido premiado com o Booker Prize. Yann Martel é acusado de plágio – Max e os Felinos, de Moacyr Scliar seria a fonte original. É ainda criticado pela arrogância com que reagiu a essa acusação. Eu lavei-me desse escândalo e isolei-o do conteúdo da obra.
Li, em resenhas de quem já tinha percorrido as suas páginas, que a obra sofre um corte abrupto. Aproximadamente as cem primeiras páginas falam de uma vida na Índia. Um nome, “Piscine”, uma cidade, “Pondicherry”, um jardim zoológico com um rinoceronte que, por se sentir solitário, partilha o espaço com um rebanho de cabras. A Índia… os cheiros, os rostos, as crenças. E um rapaz simultaneamente hindu, cristão e muçulmano. Uma aventura – poderia dizer-se -, visto que este rapaz lingrinhas e vegetariano sofre um naufrágio e fica à deriva no Pacífico com um tigre, uma zebra, uma hiena e um orangotango. Mas não é bem isso, é ainda mais do que isso. Uma aventura interior, contra a nossa própria natureza, os nossos limites, o nosso corpo que cede mesmo quando a mente se esforça por continuar, as nossas fraquezas e melindres. Um conto solitário, angustiante, ainda assim enternecedor. Eu quase sentia a doçura intrínseca entre Pi e o tigre. Tanto o Martel como o Ang Lee conseguiram tornar essa relação sólida, palpável, subtil e credível. É um feito. Sorri com diversas nuances da interacção entre este rapazinho indiano e o tigre.
De facto há uma mudança abrupta da primeira parte do livro para a segunda. Não necessariamente má, como fui levada a crer. A primeira parte é sobre necessidades de ser enquanto a segunda é sobre as de sobreviver. Um livro que nos obriga a rever quem somos e até onde iríamos se a fome, a sede, o medo da morte, o definhar lento, nos instigassem.