quarta-feira, 14 de novembro de 2018

#202 FAULKNER, William, O Som e a Fúria


Opinião: Ao contrário do que tinha imaginado, O Som e a Fúria é um livro que se debate com o leitor. Ler Faulkner, estando tão enamorada de Steinbeck, trouxe os escritores americanos para o topo dos meus favoritos, e a América para o foco do meu interesse e curiosidade. Lê-lo durante a viagem a Nova Iorque há-de torná-lo inesquecível na minha memória, porque ler na estrada é sempre especial.

Como simplificar a leitura e as emoções despoletadas por um livro que só compreendi após muita pesquisa paralela, muito voltar atrás, e que agora, que releio aquele primeiro capítulo dificílimo, me comove até às lágrimas?

Há algo de trágico, de lúgubre e de muito pesado e sufocante na narrativa de Faulkner. Li algures que é "demasiado dramático", mas eu acho o oposto, e é isso que fere. Os motivos para a explosão estão lá, ardem no peito de quem lê, mas as personagens de Faulkner seguram-nos a ferros dentro de si mesmos, contêm-se e implodem. 

Neste romance, publicado em 1929, que narra e
ventos fictícios de 1910 e 1928, Faulkner dá-nos a conhecer uma família de Jefferson que, segundo consta, é uma localidade por si inventada. Apresenta-nos uma família aristocrática do sul, sempre em declínio ao longo da narrativa. Dá-se a falência financeira mas, pior do que isso, assiste-se ao colapso moral da família Compson, de tal modo que uma aversão incontida e inexplicável parece brotar de uns para com os outros, e minar tudo durante os dezoito anos que separam o primeiro relance que temos da família e o último. 

O núcleo principal do romance são os quatro filhos de Caroline Compson; o deficiente Maury, rebatizado Benjamin, Jason, Quentin e Candace. Caddie, como única mulher e única personagem sem um capítulo em que expresse a sua voz, acaba por ter um travo a personagem principal, posto que é para ela que é canalizada a responsabilidade pela degeneração da família, e é também em redor dela e das suas ações que gravitam as restantes personagens. 

O livro está dividido em quatro partes, a primeira pelo ponto de vista de Benjy (1928), a segunda é um dia na vida de Quentin (1910), a terceira é narrada a partir do quotidiano de Jason (1928) e a última é uma visão mais geral, um pouco mais focada na velha criada negra da família, Dilsey.

Se a primeira e a segunda parte me deixaram desorientada, porque não conseguia deslindar o panorama geral, por outro a riqueza da narrativa manteve-me pregada às palavras, à vivacidade de cada personagem e do seu discurso, e ia sorvendo pequenos significados dos trechos desconexos que me iam chegando. O riacho. Um menino agarrado ao portão de casa. "Ela não vai voltar, do que é que está à espera?". "Disseram cala-te, e eu calei-me". "Mas já voltou ao berreiro, mas para quê, não me querem dizer?","Dêem-lhe uma flor que ele já se cala, vêem?". Entendi, ainda antes de ir ler sobre o romance, porque não pensei que precisaria de apoio para compreendê-lo, que a voz que inaugura o livro é a de uma personagem muda, uma criança ou um deficiente mental. 

Faulkner foi semeando pistas nessa primeira parte: surge a idade do narrador em diálogos (e que diálogos!), referenciada em trinta e três anos, e depois vem um trecho em que alguém lhe pega ao colo, e entendemos que estamos noutro recanto da memória de Benjy, e é tudo desfocado mas muito intenso, e o que se evidencia é o facto de esta criança ser um fardo, um constrangimento e um embaraço, e tantas vezes as únicas palavras que lhe dirigem é para lhe pedir que se cale. Ao seu ritmo, as vozes, os tempos, as personagens, andavam todos embrulhados. Com o avançar do romance, e requer concentração, vamos montando o puzzle.

Vamos entendendo a passagem do tempo pela miríade de negros que serviram a casa, outrora uma grande propriedade e de estábulos cheios, e de como tudo se reduz a uma velha que vai parando ao subir as escadas para ganhar fôlego, e a uma cocheira apenas com uma égua exausta, e em como Benjy vai sendo de novo renegado para a companhia dos mais novos a cada nova geração da família Compson e da família de Dilsey, e de como é sempre apanhado nos esquemas dos pequenos que ficam encarregues de o distrair e de o levar para fora da casa, onde a Dilsey quer trabalhar sossegada na cozinha, e a mãe está sempre doente e fechada no quarto, convencida de que foi amaldiçoada.

É interessante que não seja claro o motivo da decadência dos Compson. Talvez a fraqueza de carácter do pai, a vitimização da mãe, a alegada promiscuidade da única fêmea, a fragilidade de espírito de Quentin e a rudeza rancorosa de Jason, mas as culpas são, sem dúvida, canalizadas para Benjy e Caddie, os elos mais fracos, a mulher e o deficiente. Pensemos que a América estava à beira do crash, e que a Lei Seca já vingava, e talvez se considere que os Compson estão apenas a ser fustigados pelos tempos, mas talvez o seu passado aristocrático os impessa de procurar apoio uns nos outros, como fazem os Joad de Steinbeck em "As Vinhas da Ira". 

Faulkner explora com mestria as relações de irmãos, o tecido da autoridade entre eles, uma menina e depois mulher muito mais determinada do que qualquer outro do seu clã, e a sua doçura e paciência para quem mais precisava dela, bem como o amor cego que um homem que terá para sempre três anos de idade mental dedica àquela que mais compaixão e afecto lhe dedicou. Benjy pode ser retardado, como lhe chamam, mas entende o que é ser-se amado e é por isso que a sua lealdade está tão ancorada à irmã Caddie. Também o antigo Sul e os negros - "ainda estou para conhecer um negro que sirva para alguma coisa" - ganha vida e nitidez, por vezes até uma crueldade muito particular, que não a óbvia, num tempo em que a sociedade se começava a despir da tradição, e em que todos ambicionavam novas oportunidades.

Estou a reler as duas primeiras partes, apenas para revisitar aquelas linhas com as novas dúvidas que a leitura suscita, e para me comover e maravilhar com os detalhes que agora ganham sentido a cada parágrafo.

Não tenho dúvidas de que o guardarei na gaveta dos meus livros favoritos.

Sinopse: O Som e a Fúria é a tragédia da família Compson, apresentando algumas das personagens mais memoráveis da literatura: a bela e rebelde Caddy, Benjy, o filho varão, o assombrado e neurótico Quentin; Jason, o cínico brutal, e Dilsey, o criado negro. Com as suas vidas fragmentadas e atormentadas pela história e pela herança, as suas vozes e acções enredam-se para criar o que é, sem dúvida, a obra-prima de Faulkner e um dos maiores romances do século XX. William Faulkner afirmou muitas vezes que O Som e a Fúria era o romance mais próximo do seu coração porque era o que lhe tinha causado mais sofrimento e angústia a escrever. Neste magnífico romance, publicado pela primeira vez em 1929, Faulkner criou a «menina dos seus olhos», a bela e trágica Caddy Compson, cuja história nos conta através dos monólogos separados dos seus três irmãos: Benjy, o idiota; Quentin, o suicida neurótico; e o monstruoso Jason.

O Som e a Fúria é o seu quarto romance e a primeira das suas obras primas indiscutíveis, aquela que, mais do que qualquer outra, confirmou Faulkner como figura central da literatura do século. 

Classificação: 5/5*****

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