quinta-feira, 29 de novembro de 2018

#204 LEE, Harper, Mataram a Cotovia

Opinião: 

"Para Maycomb, a morte do (…) era típica. Era típico um negro saltar e fugir. Era típico da mentalidade de um negro não ter planos, não pensar no futuro e limitar-se a aproveitar a primeira hipótese que lhe aparecia pela frente. (…) Isto só prova que, apesar de esse (…) ser casado legalmente, de se manter limpo e asseado, segundo dizem, de ir à igreja e tudo isso, quando chega o momento da verdade o verniz é demasiado fino. O preto aparece sempre à tona. "

Publicado em Julho de 1960, Mataram a Cotovia recebeu, no ano seguinte, o Pulitzer Prize. A autora, Harper Lee, cresceu no Alabama e, na década de trinta em que se desenvolve a narrativa, teria exatamente a mesma idade dos nossos protagonistas – Scout, a narradora, e Jem, o seu irmão mais velho.

Scout e Jem são educados pelo pai, o advogado Atticus Finch, numa localidade fictícia apelidada de Maycomb. Maycomb não é mais do que um decalque do Velho Sul fechado, elitista e preconceituoso, para além de muito hipócrita. Optando pela voz de uma menina de seis anos (no início da trama, e de oito anos quando a história se conclui), Harper Lee colocou tudo de um modo muito simples permitindo, inclusive, que Scout, na realidade Jean Louise, mudasse de opiniões ou caísse em mal-entendidos, motivados pela sua tenra idade. 

O que admirei no livro, a cada página, foi a humanidade das personagens, que acabam por revelar mundos interiores nem sempre coincidentes com os seus comportamentos ou postura. Cada um tem a sua frágil posição na fechada sociedade de Maycomb, como as crianças vão descobrindo por meio da observação e da sua ingénua participação nos eventos e rotina da cidade. Todos parecem capazes de mudar, de se elevar-se para além da sua débil de condição de humanos, ou de cometer atrocidades por receio, vergonha, preconceito. 

"No mundo há quatro tipos de pessoas. Há o tipo de pessoas normais, como nós e os nossos vizinhos. O tipo de pessoas dos bosques, como os Cunninghams, o tipo de pessoas que vivem em lixeiras, como os Ewells, e os negros.

- Então e os chineses e os índios Cajum, p'ra acolá em Baldwin County?

- Em Maycomb, quero eu dizer. O que acontece é que as pessoas como nós não gostam dos Cunninghams, os Cunninghams não gostam dos Ewells, e os Ewells odeiam e desprezam as pessoas de cor."

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(imagem da adaptação cinematográfica de 1965)


A personagem que menos se altera com a aridez dos ventos é, diria eu, Atticus Finch, que se mantém como estandarte da moralidade e da justiça. Quantas vezes o meu coração não se derreteu perante as lições, reprimendas e atenções que este pai dedica aos dois filhos ao longo das 335 páginas desta edição? Uma pessoa acaba a desejar ter um Atticus Finch a seu lado, é, um pouco como no romance de Steinbeck, A Um Deus Desconhecido, uma espécie de Jesus Cristo. E, como Jesus Cristo, as suas acções ameaçam a sociedade e os privilégios em vigor, e isso atrai retaliações e desperta a mesquinhez dos néscios. 

Destaca-se ainda outra personagem, Dill, que, segundo consta, foi esculpido pela autora à semelhança do seu amigo e vizinho de infância Truman Capote. Oferece-nos uma terceira visão pueril, um terceiro par de ouvidos que lida com o mundo dos adultos e o analisa, tecendo as suas conclusões por vezes enternecedoras, outras hilariantes.

Quando se vira a última página, instala-se um travo a segurança e melancolia. Senti mais ou menos a certeza pueril de que o mundo há-de compor-se, há-de ganhar juízo, há-de maturar, como também Scout e Jem vão crescendo e aperfeiçoando as suas capacidades e opiniões à medida que as estações se derramam nos seus quintais e alpendres, e se vão tornando capazes de distinguir o certo e o errado. Scout e Jem observam a vizinhança, e a vizinhança observa-os a eles, tecem julgamentos, enganam-se, cometem injustiças. São crianças, crianças maravilhosamente criadas pela autora, com um discurso coeso e competente, justificado pelo facto de o pai ser advogado, culto, actualizado e muito empenhado em fazê-los reflectir a cada passo da viagem em direcção ao mundo cínico dos adultos.

Ri-me muito, senti-me comovida outras tantas vezes, e terminei este conto do sul de madrugada, soltando um suspiro em seguida. Não sei porquê mas, quando suspiro ao fechar um livro e ao encaixar a sua mensagem, o livro fica. 


Sinopse: Durante os anos da Depressão, Atticus Finch, um advogado viúvo de Maycomb, uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos, recebe a dura tarefa de defender um homem negro injustamente acusado de violar uma jovem branca. Através do olhar curioso e rebelde de uma criança, Harper Lee descreve-nos o dia-a-dia de uma comunidade conservadora onde o preconceito e o racismo caracterizam as relações humanas, revelando-nos, ao mesmo tempo, o processo de crescimento, aprendizagem e descoberta do mundo típicos da infância. Recentemente, alguns dos mais importantes livreiros norte-americanos atribuíram grande destaque ao livro, ao elegerem-no como o melhor romance do século XX.

Plano Nacional de Leitura
Livro recomendado para os 7º, 8º e 9º anos de escolaridade, destinado a leitura autónoma.


Prémio Pulitzer

Críticas de imprensa
«Sem dúvida um verdadeiro fenómeno literário, este romance sulista não apresenta a mais pequena mácula nas suas delicadas folhas de magnólia. Divertido, alegre e escrito com uma precisão cirúrgica.» 
Vogue


«O estilo de Harper Lee revela-nos uma prosa enérgica e vigorosa capaz de traduzir com minúcia o modo de vida e o falar sulistas, bem como uma imensa panóplia de verdades úteis sobre a infância no sul dos EUA.» 

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