quarta-feira, 14 de novembro de 2018

#203 CAPOTE, Truman, Boneca de Luxo


Sinopse: Em 1958, numa América ainda não imune ao espectro da guerra fria e já marcada por uma certa ânsia de transgressão, Boneca de Luxo parecia combustanciar verdadeiramenteo espírito da época e, ao mesmo tempo, propor uma filosofia de vida capaz de converter os modelos severos de moral puritana numa prática pura de alegria, da "irreflexão", da vitalidade.
Divertido, fascinante, perfeitamente equilibrado do ponto de vista estilístico, este romance é, sem dúvida, a obra mais feliz e agradável da actividade literária de Truman Capote - apesar de estarmos na presença de um apaixonado e firme empenho de denúncia civil.
"Boneca de Luxo", publicado em 1958, é a minha primeira incursão na obra de Truman Capote. A narrativa tem lugar em 1943 - ao contrário do icónico filme protagonizado por Audrey Hepburn, ambientado nos anos 60 - e explora, a meu ver, a hipocrisia de uma sociedade sem valores, mesmo durante a Guerra. Do mar branco e preto de cidadãos comuns, com supostos princípios e moral, emerge a colorida vizinha do escritor que nos conta a história, e cujo nome nunca é mencionado. Enquanto o escritor é tímido e vive uma vida de contenção, Holly move-se noutros sítios e transpira glamour.
Holly Golightly tem 19 anos e tem tanto de sofisticada quanto de inocente e inconvencional. O escritor vê-a primeiro pelo filtro da indulgência, depois do fascínio, depois da frustração e por fim do amor, e acaba arrastado para as aventuras da vivência exuberante da vizinha, em torno da qual gravitam as restantes personagens. 
Truman Capote criou uma personagem inesquecível, uma mulher autêntica no seu fingimento, capaz de forjar amizades genuínas e de compartilhar os seus fantasmas em raros momentos de abertura com quem se sente segura. Holly não mente a si mesma nem àqueles por quem tem estima, e luta por ser feliz num mundo onde teve de se catapultar dos roubos de rua para as visitas contemplativas à Tiffany's. Muito se pode aprender com ela. "Claro que nos casamos, pois se nunca antes me casei!", ou "Claro que vou ao Brasil, ainda para mais nunca lá estive", e outras filosofias de vida de uma jovem muito magra que se coloca acima de todas as suas relações, que dá e que espera retorno, embora não deixe de sofrer desilusões, e que não é bem uma prostituta, porque a decisão é sempre sua, e que se vale da imoralidade e da hipocrisia dos outros para viver como uma mercenária honesta, mesmo que soe paradoxal.

Holly Golightly, a extraordinára protagonista, é uma rapariga alegremente avessa às convenções sociais e às conveniências, que se orienta nas sua opções por uma profunda moralidade, feita de solidariedade, de gestos generosos, de absoluta falta de malícia, e que, precisamente por isso, infringe as obtusas normas de moral burguesa. Com a pequena corte de indivíduos "esquisitos" de que se rodeia, constitui um núcleo que involuntariamente prefigura uma socialidade diferente, mais aberta e, afinal de contas, mais feliz. Mas o mundo que a circunda não aceita facilmente a sua ingénua atitude contra a corrente, e Holly será obrigada a pagar por isso: envolvida sem culpa numa questão de droga, acabará por se libertar, mas será abandonada pelo homem com quem estava para casar. E, todavia, o conformismo não triunfa, já que a rapariga parte, pronta a recomeçar a sua vida noutro lado, com uma carga vital quiçá acrescida.

Espantou-me a coragem de Capote para publicar algo assim, algo que explora a sexualidade e a psique femininas, que fortalece a sua vontade e a sua autononia, criando uma Holly independente, determinada, auto-suficiente mesmo nos seus momentos de maior fraqueza. E que criou homens que entendem o amor para além da posse. E é um livrinho delicioso de apenas 96 páginas. Lê-se num ápice. 

Opinião: Porque eu amo o José... Deixava de fumar se ele me pedisse. Ele é bondoso, faz-me rir até me passar o ferro em brasa, só que agora já não tenho assim tantos ataques, a não ser às vezes, e de qualquer modo já não são tão horríveis que precise de engolir calmantes ou de me arrastar até ao Tiffany's: levo-lhe o fato à lavandaria, ou recheio uns cogumelos, e sinto-me bem, mesmo bem. Além disso, deitei fora todos os meus horóscopos. Devo ter gasto um dólar em todas as estrelinhas do raio do planetário. É uma chatice, mas a verdade é que as coisas boas só acontecem se formos bons. Bons? É mais se formos honestos, não uma honestidade de cumprir a lei... - eu cá era capaz de profanar uma campa e de roubar os dois olhos de um morto se achasse que isso me dava gozo por um dia -, mas uma honestidade para connosco. Tudo menos ser-se cobarde, fingido, um bandido emocional, uma puta: preferia ter cancro a um coração falso. O que não tem nada de beato, é uma questão muito prática. O cancro pode matar, mas a alternativa de certeza que mata. Oh, que se lixe, passa-me a guitarra que eu canto-te um fado num português impecável."

Terminei de ler este romance ontem à noite no Canadá, numa banheira gigante, com chuva lá fora, e uma máscara de rosas no rosto e uma chávena de chá de menta ao lado da banheira. Senti-me parte do enredo. 


Classificação: 4,5****/*

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