terça-feira, 12 de março de 2013

#78 SARAMAGO, José, As Intermitências da Morte

(acherontia atropos)

Classificação: 4,5****/*

Sinopse: «No dia seguinte ninguém morreu.» Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.

Opinião: O que se espera desta obra é, além da escrita signatária do nosso Nobel da Literatura (1998), um retrato duma sociedade a quem a morte (ela exige que não se use maiúscula) virou as costas. Um ensaio sobre o fim magistralmente conduzido...

Saramago expõem-nos um conto (posso dirigir-me a esta obra nestes termos?) reflexivo, do interesse de qualquer ser vivo temente à morte - mais do que a deus. 
Na primeira metade do livro (por vezes um pouco exaustiva, devido a tantas hierarquias e pontos de vista acerca deste fenómeno de não-morte, assistimos à reacção de um país às inesperadas "férias" desta entidade. Se a morte deixasse de matar, que faríamos com a dor e o sofrimento? Que seria dos corredores dos hospitais? Que seria das monarquias com os seus reis convalescentes em eterna agonia? Como realça o narrador, sempre é diferente de eternamente. Que faria a humanidade se fosse eterna? Se não houvesse passagem para o outro lado?
Além de desesperar, faria os possíveis para aceder a esse outro lado, sugere Saramago. Pagaria para morrer, sugere Saramago. A Igreja veria a base dos seus alicerces deitada por terra, a sua utilidade real desfeita. O Governo debater-se-ia com a moral, uma crise económica e demográfica, de braço estendido a quem se oferecesse para resolver os problemas - clandestinamente - por eles. Os funerários, trabalhadores de morgues, floristas, carpideiros, etc., lamentariam a falta de matéria-prima para a prática do seu ofício. As famílias, hospitais, lares, lutariam, embaraçados, por livrar os seus espaços e as suas camas dos moribundos. Filósofos sair-se-iam com teorias sobre diferentes tipos de morte, o herdeiro nesta Monarquia Constitucional receia ainda que a mãe nunca lhe dê lugar, visto recusar-se a passar para o outro lado.

Fatalidade incontornável, fim da viagem, última etapa, inquietação constante, a morte afigura-se, neste livro, com uma voz, um rosto (descarnado) e curiosidade para com os mortais. Afigura-se também como alívio supremo, a seu tempo tão desejado.
A cerca de 60% da leitura, surge a perspectiva da morte. Da morte que dá mostras de cansaço, de entorpecimento de ossos, de até algum desgaste mental e solidão, pois que fala com a sua gadanha, quando intrigada, aguardando por uma explicação. Em certas ocasiões a gadanha até responde. O ritmo do livro corre muito mais fluido, envolvendo o leitor e impedindo-o de deixar as suas páginas... 
Parece, contudo, que demos duas partes muito distintas no livro, com um estilo narrativo e ritmos diferentes. Primeiro a perspectiva das vítimas da ausência da morte, num ritmo que pula de prisma em prisma, que corre rápido, prático, por vezes um pouco moroso mas sem se perder em detalhes. Tudo é política, religião, máphia, estratégia. Depois a perspectiva da morte, num ritmo bem mais rápido (a narrativa acompanha-se com mais facilidade, mas as acções não se atropelam), mais emotivo, mais intimista, mais musical, literalmente. 

O discurso de José Saramago, quando nos embrenhamos na sua escrita, é assertivo, emblemático, sarcástico e perspicaz. É um gosto sentir que o acompanho. Fiquei muito surpreendida pelo facto de que esta obra de inegável lucidez ter sido publicada em 2005, quando o autor tinha já 83 anos. Aqui está a prova irrevogável de que Saramago é, realmente, uma mente de excelência no panorama da literatura mundial.


Que magnífica perspectiva sobre a vida e a (sua necessidade da) morte!

«No dia seguinte ninguém morreu»

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