quinta-feira, 26 de outubro de 2017

#186 MCNAUGHT, Judith, Whitney, Meu Amor

Sinopse: Whitney Stone é uma jovem de personalidade forte. Algo que o pai, um homem frio e calculista, não tolera. Decidido a acabar de uma vez por todas com a paixão que a filha nutre pelo vizinho Paul, envia-a para Paris. Sob os cuidados e carinho dos tios, a trapalhona e reguila Whitney transforma-se numa mulher lindíssima. A sua sensualidade e carisma conquistam a sociedade parisiense e captam a atenção do poderoso Duque de Claymore. Mas o coração de Whitney há muito que está tomado por Paul. Essa é, pelo menos, a convicção da jovem. Até ao dia em que dá por si a sentir-se tentada pelo duque - uma atração que a delicia e perturba, pois é a primeira vez que percebe que o seu coração tem uma vontade muito própria. Já o duque não tem qualquer dúvida. Ele deseja Whitney. E planeia tê-la, não obstante o crescente número de obstáculos, que incluem o "pormenor" de ela estar apaixonada por outro homem, a apreensão da tia e os planos do pai ganancioso, que, para se salvar da ruína, faz um acordo secreto. A moeda de troca? A sua filha…

Opinião: Este livro mexeu comigo. Não me surpreendi ao descobrir que não me lembrava de uma linha do livro a cada página que ia lendo (e são muitas). Mas iniciei a leitura sabendo que o lera uma vez, teria uns 17 ou 18 anos, em Inglês ou em PT-BR, e que tinha AMADO o livro. Foi a porta aberta para que começasse a ler estes romances cor-de-rosa de época, dos quais devo salientar que as minhas escritoras favoritas continuam a ser, sem sombra de dúvida dentro do género, a Sherry Thomas e a Julia Quinn. 

Desta vez, simplesmente, abominei cada página. Será embirrância? Será que perdi a inocência e a ingenuidade que me permitiram viver o livro quando era mais jovem? Estou mais inclinada para pensar que cresci e que a minha percepção de amor se alterou. O que encontrei nestas 630 páginas é uma versão travestida do que, para mim, é o amor.

O romance é o primeiro da Judith McNaught, como a própria salientou na nota final, e estimulou-a a iniciar a sua prolífera carreira na escrita. Ganhou prémios (não me dei ao trabalho de investigar quais), e com certeza deve ter gerado uma mina de dinheiro, porque tantos do mesmo género lhe sucederam (dela e de outras autoras)...
Escrito em 1978, apenas publicado em 1985, tornou-se um best-seller instantâneo, e até entendo porquê: é um Fifty Shades of Grey versão século XIX em rendas e folhos. Talvez, neste ponto, me deva perguntar o que atrai tanto as mulheres em livros onde a personagem masculina é doentiamente possessiva e ciumenta? Deixaremos a reflexão para daqui a pouco. 

Resumo simples do livro (sem *muitos* spoilers): 
Nas primeiras 300 páginas do livro, o duque conhece a jovem mais linda, maravilhosa, sensual, inocente, esbelta, alta, voluptuosa, espirituosa e inteligente da festa, com o nome mais estranho de sempre. A jovem põem-no a rir e insulta o seu título, duvidando que seja de facto um duque. Isso acende qualquer coisa nele, e decide ir para casa e passar um cheque ao pai dela para a "comprar". A partir daí, toma a sensata decisão de tentar que se conheçam melhor antes que ela saiba que estão noivos. Se o livro terminasse na página 300, depois desses passeios a cavalo, dessas risadas juntos, talvez tivesse merecido pelo menos quatro estrelas. Ainda assim, a impetuosidade "especial" que a autora tentou imprimir à personagem feminina principal é exasperante, mas a racionalidade do duque equilibrava as coisas, funcionava como o juízo do leitor e as coisas harmonizavam-se. Mas o problema é que o livro continuou e, a partir do momento em que Whitney descobre o acordo entre o duque e o seu pai, o livro torna-se aquilo que gosto de apelidar de uma "fantochada" onde imperam os mal-entendidos. Ora eu valorizo uma boa comunicação acima de tudo, e nem por sombras algo do género poderia suceder na minha vida. Por isso, começo logo por considerar as personagens principais muito inaptas para um relacionamento sério, e a coisa descamba para mim.

Preparem-se, porque abaixo vou embirrar com tudo, mas mesmo com tudo.

Vamos por pontos:
1) A personagem principal feminina;
2) A personagem principal masculina;
3) O vocabulário/a tradução;
4) A bajulação às duas personagens principais por parte de todas as outras;
5) O rumo dos acontecimentos a partir da página 300;
6) Mal-entendidos;
7) Conteúdo histórico;
8) O comprimento do livro.

Whitney Stone é uma beldade inglesa destrambelhada. Não me ocorre outra palavra, a escritora queria que assim fosse. E aqui iniciamos o ponto 1). «Whitney», não consigo imaginar este nome no século XIX excepto, talvez, num armazém de madeiras de Nova Iorque, tipo "Whitney&Cº". Um pouco como Jennifer Merrick do outro livro da série Um Reino de Sonho, são nomes que dificilmente existiam na época. Esta insistência em escolher um nome que distinga a personagem das restantes, não a torna especial. Torna-a irreal, e isso, somado ao traço tresloucada, que é comum a ambas, torna-as bonecos animados, mas muito bonitos, a fazer piruetas e macacadas de página para página. Depois a autora cobre-as do elogio "espirituosas", ou "corajosas", ou "orgulhosas", ou "teimosas", como se fossem sinónimo de firmeza de carácter. 


As coisas que estas personagens vão fazendo são irrealistas e impensáveis na época e, ainda que alguém pensasse assim tão "fora da caixa", a reacção da sociedade nunca seria tão complacente só porque possuem uma beleza etérea e são maravilhosas e encantadoras até à exaustão, como a narrativa não se cansa de repetir. Falta realismo, uma grande dose de realismo em coisas simples quando a construção das personagens principais.

Por falar em personagens principais, chegamos ao ponto 2). Os duques, condes, viscondes, marqueses, etc., por quem estas mulheres se apaixonam, são sempre o homem mais alto do baile, com os ombros mais largos, uma riqueza obscena e uma inteligência que arruma para o lado a de todos os outros. A sociedade inglesa do século XIX seria assim tão desprovida de pessoas sensatas? É por isso que gosto do gago da Julia Quinn, ou do seu visconde falido. Neste livro, a loucura da personagem masculina vai além de todos os outros. Primeiro é obcecado pela mocinha principal, sem que jamais se entenda o porquê (além de lhe admirar, até ao enjoo, a beleza etérea, dos maravilhosos olhos verdes, das esbeltas curvas, dos fartos seios, do lustroso cabelo castanho-avermelhado, da altivez e do queixo erguido em desafio), depois vai por caminhos tortuosos para chegar ao que quer. Se bem que meter-se por caminhos tortuosos é algo típico de todas as personagens deste livro. Se alguém quer algo, nunca diz "Serves-me um pouco de chá?"; é mais provável que finja a própria morte para que alguém lhe traga uma chávena. Depois o seu passado nunca foi bem explicado. Isto é, tudo leva a crer que tenha tido um passado tranquilo e um lar pleno de amor e protecção, além do evidente conforto financeiro. Mas, ainda assim, é inseguro e desconfiado, traços que a autora nunca se dá ao trabalho de explicar do ponto de vista psicológico. Sofreu algum abuso? Foi abandonado? Foi roubado? O pai fugiu de casa? Que raio se passa com a criatura para assumir que é vítima de conspirações a todo o instante?


Em português, todas as festas, jóias, mansões, sorrisos, etc., eram exageradamente descritos. O ponto 3) ia-me pondo louca. Não se escreve "Moveu as pernas", mas sempre "Moveu as longas/esbeltas/suaves pernas". Nunca há um "Passou um casaco nos ombros", mas sempre "ombros largos", "maravilhosos/esplêndidos olhos verdes", "intrigantes olhos cinzentos", "longos dedos", "ancas estreitas", "seios sumptuosos", "esplêndida refeição", "sorriso encantador", etc. Já não podia com tanta adjectivação, senti-me prestes a gritar perante a repetição da cor do cabelo/olhos dela, dos musculosos ombros/pernas/peito dele, etc. Que frete!

Tudo isto explica porque o ponto 4) também surge: toda a gente se pela de medo pelo duque e se verga de admiração pela duquesa. O duque é magnânimo, autoritário, arrogante, rico, inteligente, escandalosamente atraente e jovem, e ela é também jovem, inocente, pueril, divertida, espirituosa, inteligente (fala grego, italiano, alemão, inglês e francês, e com apenas 20 anos!), e são ambos excelentes cavaleiros. Como são abençoados, e toda a gente o relembra a cada duas páginas!, por entre pedidos de casamento e suspiros de admiração.


Já ia mais ou menos chateada com tanto surrealismo cómico que, quando chega o momento da revelação da identidade do vizinho, Mr. Westland (ponto 2), tudo descamba. A personagem feminina, tão cheia de fibra, começa a emburrecer gravemente. Ele perde a razão e torna-se um bruto (ponto 2). Descobrimos que estes dois seres tão inteligentes e iluminados não conseguem ter uma conversa sem tirarem N conclusões diferentes, que depois os levam a agir da maneira mais absurda imaginável. Os conflitos são-nos atirados para o colo um atrás do outro. Perdoam-se, fazem as pazes, para depois desconfiarem de novo e estarem outras tantas páginas a carpir-se enquanto os outros os lembram que são maravilhosos e encantadores e lhes garantem que o outro os ama.


Já disse que os mal-entendidos (ponto 6) me tiram do sério? Uma boa comunicação não será o que distingue duas pessoas feitas uma para a outra de dois tolos iletrados na arte de socializar?

Em termos de enquadramento histórico, só sabemos que é Inglaterra porque a autora o menciona, o ponto 7) é em tudo deficitário para uma amante dos factos como eu. Não digo que não houvesse nenhuma pesquisa, mas acho que foi mais ao nível dos cordões entrelaçados no cabelo que a duquesa usava. Além de que, a dada altura, se fala de "retratos", mais para o final do livro. Se estivesse no pós-guerra napoleónica e antes da Guerra da Crimeia, dificilmente haveria fotografia, e certamente não das gerações anteriores. Tudo se resume a carruagens, títulos e bailes. Não se fala de nada de específico, até a igreja onde se dá o tão esperado casamento é apenas "a igreja". É vago e o romance sofre com isso - para além de agonizar com todo o resto!

Por fim, o livro nunca mais acabava (ponto 8). Um horror. Quando pensávamos que tudo tinha terminado, recomeça de novo. O ciclo torna-se de tal modo insuportável que, à luz da sabedoria dos meus quase vinte e oito anos, estou certa de ter tirado o perfil psicológico destes dois. Ele vai sempre agredi-la, e ela está confortável na posição de vítima carpideira. Seria assim a vida toda.


Classificação: 2,5**/***

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

#185 DONOGHUE, Emma, O Prodígio


Sinopse: A jovem Anna recusa-se a comer e, apesar disso, sobrevive mês após mês, aparentemente sem graves consequências físicas. Um milagre, dizem.

Mas quando Lib, uma jovem e cética enfermeira, é contratada para vigiar a menina noite e dia, os acontecimentos seguem um diferente rumo: Anna começa a definhar perante a passividade de todos e a impotência de Lib. E assim se adensa o mistério à volta daquela pobre família de agricultores que parece envolta num cenário de mentiras, promessas e segredos.
Prisioneira da linguagem da fé, será Anna, afinal, vítima daqueles que mais ama?
Um drama intenso sobre os perversos caminhos do fundamentalismo, mas também sobre como o amor pode vencer o mal nas suas mais diversas formas
.
Opinião: Na segunda metade do séc. XIX, Elizabeth Wright é uma enfermeira de uma nova estirpe. Treinada por Florence Nightingale e com uma vasta experiência que incluí assistência na Guerra da Crimeia, Lib é destacada para uma missão envolta em secretismo e leva muito a sério a sua incumbência. Embarca para uma Irlanda que recupera da Grande Fome, para se apresentar perante um comité que lhe pede uma tarefa aparentemente simples: vigiar uma jovem de onze anos que, ao que parece, não ingere nenhum alimento desde há quatro meses.
A apaixonante Irlanda vem assim retratada pelos olhos de uma inglesa, e, portanto, como um recanto retrógrado, supersticioso e ignorante, no qual imperam fantasias sobre fadas, santos de trazer por casa e fitinhas com dores expiadas nos ramos das urzes. Para Lib, a Irlanda subsiste como um último reduto da Era Medieval na Europa, e é com essa certeza que se convence de que, num piscar de olhos, será capaz de desmascarar os intervenientes da farsa em curso.
Foi uma leitura muito agradável, sobretudo porque três personagens se destacam do mar um tanto ou quanto monótono das restantes: Lib, Anna (a criança que recusa alimento) e William Byrne, um jornalista católico dividido entre o sensacionalismo que a imprensa procura e a curiosidade crescente quanto ao caso. A inteligência destes três, combinada com o retrato de época da Irlanda mística e profundamente católica do século XIX, fazem valer cada página do romance. A acção desenrola-se num ritmo um pouco lento, bastante descritivo, mas é daqueles livros que, sorvido aos poucos, nos leva a grandes reflexões.
É que Anna O’Donnell é uma menina encantadora, apesar de cegamente devota, e não são claros os motivos que a levam a abandonar-se daquele modo à religião. A função de Lib é a de entender se Anna realmente sobrevive sem alimento, para êxtase dos fanáticos religiosos que rodeiam a criança, ou se alguém a tem alimentado em secretismo para lucrar com a circunstância. Nas longas horas que passa a observar a menina, várias teorias vão-se formando, e a ligação das duas vai-se adensando, até que Lib, a tão profissional enfermeira de Miss N., começa a perder o auto-controlo e ameaça destruir a sua reputação de obediente e metódica, quando o desejo incontrolável de interferir a assalta a todos os instantes.
É uma narrativa de humanidade, que mexe com o que é sagrado em nós e com o tema muito actual da tolerância religiosa, e dos limites do indivíduo perante a máquina maior.

Classificação: 4,5****/*

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

#184 SOARES, Carla M., O Ano da Dançarina

Sinopse: No ano de 1918, o jovem médico tenente Nicolau Lopes Moreira regressa da Frente francesa, ferido e traumatizado, para o seio de uma família burguesa de posses e para um país marcado pelo esforço de guerra, pela eleição de Sidónio Pais e pela pobreza e agitação social e política. 



No regresso, Nicolau vê-se confrontado com uma antiga relação com Rosalinda, dançarina e amante de senhores endinheirados, e com as peculiaridades de uma família progressista. 
Enquanto a Guerra se precipita para o fim e, em Lisboa, se vive a aflição da epidemia e da difícil situação política, a família experimenta o medo e perda, e Nicolau conhece um amor inesperado enquanto trava as suas próprias batalhas contra a doença e os próprios fantasmas. Este é um romance de grande fôlego, histórico, empolgante e profundo, sobre a superação pessoal e uma saga familiar num tempo de grande mudança e turbulência em Portugal.

Opinião: O Ano da Dançarina é o terceiro livro que leio da Carla M. Soares (imperdoável nunca ter lido o Chama ao Vento), e reafirma uma vez mais a minha teoria de que se cresce a cada livro.
Neste romance encontrei um retrato fiel de época, um enredo equilibrado, um livro polido, uma história cativante. Conforme o título sugere, acompanhamos um ano específico na história do nosso país – 1918 – com todas as tropelias que o pautaram. 
Para contextualizar a época: em 1918 celebrava-se o primeiro ano após as Aparições de Fátima. Não havia santuário, não havia reconhecimento do Vaticano, não havia capelinha, e os três pastorinhos ainda estavam vivos e no pastoreio. Nesse ano deu-se um golpe de estado e Sidónio Pais torna-se presidente da recente República Portuguesa, enquanto a nobreza se retorcia ainda de desencanto para com a perda dos títulos nobiliárquicos, os republicanos andam de candeias às avessas e os políticos atropelam-se pelo controlo do futuro da nação. A somar a isto (já de si bastante, contabilizando os ataques dos anarquistas ao parlamento), o Corpo Expedicionário Português perdia a vida em vão nas trincheiras francesas, e ainda surge uma doença indecifrável, um vírus desconhecido que se pensa, hoje, ser uma variante do H1N1, uma mistura de gripe das aves e gripe suína, que se estima que tenha dizimado algo como, pelo menos, 50 milhões de vidas humanas entre os anos de 1918 e 1920 (a Segunda Guerra terá resultado em 70 milhões de mortos, e foi o momento mais negro da História da humanidade, pelo que a gripe foi quase, se não tão, letal quanto isso). 
O palco do romance é a residência dos Lopes Moreira, uma família burguesa de cinco irmãos sob a alçada dócil da mãe, viúva, num mundo em constante mudança. Nicolau, Bernarda, César, Eunice, Pedro e Guilhermina vivem um ano inesquecível pelos piores e pelos melhores motivos. 
É sobretudo a partir das vivências de Nicolau, médico-tenente, que atravessamos esse ano. Nicolau e os traumas de guerra. Nicolau e a impotência perante a epidemia. Nicolau e o papel das mulheres, a vida noturna, as doenças, a imundície de um povo sem meios e analfabeto. Gostei muito dessa personagem, bem como do seu irmão, César, que reúne uma energia muito jovem e positiva, e que foi a minha personagem favorita. Também gostei de ver os sobressaltos de uma sociedade misógina e patriarcal, que olha com estranheza o desejo de emancipação do género feminino, e que se alimenta de intrigas e jogos políticos. 
Houve partes em que se exaltava a pátria – um pouco do nosso Portugal foi forjado nessa época -, e em que me senti arrepiada, porque o retrato era tão nítido que imaginava a silhueta austera do republicano elegante, de bengala, de barbas aprumadas, de chapéu, a consagrar a sua vida e a sua liberdade ao ideal que tinha para Portugal. Diria até que se tece uma exaltação à República, quiçá involuntária, porque mostra os solavancos a que muitos foram submetidos para que outros pudessem gozar de valores maiores – o sufrágio, o direito à greve, à liberdade de imprensa e de expressão. 
E a espanhola, ou pneumónica, ou influenza, ou , um horror que se infiltrou tanto em casas de ricos como de pobres, de sidonistas e seus opositores, tão familiar que lhe deram vários nomes, e que ceifou tantas vidas em três fôlegos, dois dos quais arrasadores e vividos nesse ano de 1918... É um retrato macabro da doença, da desinformação, da impotência do ser humano mais esclarecido perante as limitações do seu tempo e do chamado progresso. O Homem vergado à natureza e suas impiedades.
Louvo a meticulosidade da pesquisa, do trabalho realizado com equilíbrio e método, e do racionalismo que, apesar da época conturbada, conduz todas as páginas. Também existem passagens de evidente emotividade, que servem para recordar que os carácteres se moldam nos momentos de maiores dificuldades, ainda que a esperança oscile a cada reviravolta dos elementos.
Um livro que recomendo pelo excelente cuidado com a época, um ano até agora um tanto ignorado no panorama literário (à exceção do Mataram o Sidónio! do Moita Flores, que, pela sinopse, se assume mais político do que social). Adoro leituras que me obrigam a pausas para fazer pesquisas no google, e que me deixam com o travo agridoce do muito que aprendi e do mais que ainda tenho de aprender a respeito de um assunto que me parece agora do maior interesse.
Um livro que apelou à nacionalista que há em mim, e que apenas não me arrancou aquela quinta estrela porque, como romântica incurável, ansiava por um "Romeu e Julieta" num livro onde a Pátria, ferida, é o motivo de todos os sacrifícios.

Classificação: 4****/*



quarta-feira, 24 de maio de 2017

#183 MCNAUGHT, Judith, Lembras-te de mim?

Opinião: Amei este livro, sobretudo o tecido familiar da Diana Foster, a personagem principal, e a delicadeza das expectativas e das suas acções dentro desse círculo. Não me é fácil simpatizar com uma protagonista, mas isso geralmente acontece com a mesma é uma mistura de força e fragilidade. Também apreciei muito as partes em que a autora nos permitia ver vislumbres do passado da reservada Diana e do rapaz que ajudava o seu pai nas cavalariças enquanto estudava. Gostei do desenvolvimento da relação dos dois, foi ternurento e emotivo, sentia-se de facto o afecto a florescer entre eles, e a autora deu-lhe mais sal do que às habituais histórias em que os atributos físicos são rebobinados ao ponto da exaustão. Também me deixei envolver pelos segredos familiares, a mãe um tanto leviana, o pai meio desligado. É nesse contexto que Diana e Cole se aproximam, e, mesmo depois de anos separados, nunca esquecem a familiaridade que partilharam na juventude. É sempre bom ler sobre duas pessoas que calcorrearam as estações da sua vida com garra e determinação, e que no momento certo se reaproximam, cada um com nova bagagem e as com as suas conquistas e derrotas, e reatam algo que ficara por concretizar no passado.
Não costumo ler romances contemporâneos, contam-se pelos dedos os que li (A Montanha entre nós, Sozinhos na Ilha, Segredos do Passado, poucos mais). Mas este, realmente, valeu a pena. Cativou-me e devolveu-me a vontade de ler Judith Mcnaught.
Quando o bilionário Cole Harrison se aproxima dela com dois flûtes e uma garrafa de champanhe, Diana é apanhada de surpresa, pois reconhece nele o moço de cavalariça que desapareceu da sua vida vinte anos antes. E, fazendo jus à sua reputação de magnata, Cole tem uma proposta para ela: um casamento de conveniência, pois arrisca-se a perder uma fortuna se não se casar em breve. Diana dificilmente imaginaria nessa noite que iria reencontrar Cole, muito menos sucumbir ao esquema elaborado dele, para não falar no perigo de ceder a uma paixão avassaladora


Sinopse: É a contragosto que Diana Foster se encontra num extravagante baile de caridade, rodeada pela fina-flor do Texas. O noivo acabou de a deixar, trocando-a por uma herdeira italiana, e a jovem anseia apenas por um pouco de privacidade. Mas está em jogo a sua carreira e o bom nome da família. Como gestora da empresa familiar, Diana tem uma imagem a manter. E a fasquia não podia estar mais alta pois ela é editora da revista Beautiful Living, uma publicação de referência no que toca à tranquilidade doméstica.

Classificação: 5*****/5

Lido aprox.: Dez. 2016

terça-feira, 23 de maio de 2017

#182 MCNAUGHT, Judith, Um Reino de Sonho

Opinião: "Porque será que, quando te rendes, me sinto sempre como se fosse eu que tivesse sido conquistado?"


Foi a segunda vez que li este livro, mas não sabia quando o comprei que já o tinha tido nas mãos.
Jennifer é noviça numa abadia na Escócia, e portanto católica, membro de um clã e inimiga declarada dos ingleses. Royce é o braço direito do rei Henrique nos seus avanços bélicos contra a Escócia, difere em princípios, religião e patriotismo. Neste ponto dou valor à escritora por toda a pesquisa que evidentemente levou a cabo, e por todos os detalhes que nos fornece. Nada a dizer também a nível de contexto histórico (estamos em 1499), e dos contrastes entre a Escócia e a Inglaterra, uma sustentada por clãs temerários e orgulhosos, outra sustida pela ganância de nobres que enriquecem pilhando a outra e aumentando os domínios da sua coroa. É época de torneios, de agitação política, de catolicismo fervoroso enquanto Henrique ameaça virar as costas a Roma e fundar a sua própria religião, de fortificações, cercos, violações e pilhagens.
A minha embirrância começa logo com o nome da personagem principal: Jennifer. Uma rápida incursão na wikipédia diz que é a adaptação de Guinevere, adaptada na língua inglesa durante o sec. XX. História também é um bocadinho de intuição, e não consigo imaginar um diálogo entre a princesa Cátia e a duquesa, a senhora Soraia, enquanto as assiste a boa aia Jéssica, um doce de moça.
Só neste instante fui ver a origem do nome, mas faz-me espécie que não se tenha consultado uma lista de nomes tradicionais escoceses da época, de modo a chamar-lhe Heather, Fiona ou Arabella. Irrita-me que algumas pessoas fiquem agora com a impressão de que alguém se chamava Jennifer no sec. XV.
Depois, o livro começou mais ou menos bem, mas cedo se revelaram as intenções da autora: despejar todo e qualquer conflito possível para o meio do enredo. Então ele é raptos, ele é fugas, ele é conspirações, ele é traições, ele é drama, ele é mal-entendidos, ele é tudo. Se terminasse na página 300, com tudo um pouco melhor gerido, teria sido menos exasperante. Sobre cada duas páginas de felicidade amorosa, abatiam-se cinquenta de uma nova quezília. E, pior, aquela personagem feminina é de bradar aos céus. A autora não me convenceu de modo algum. A pessoa pode cortar com as convenções da sua época, mas só até certo ponto.
Não me importo quando os livros têm obstáculos, quando os problemas se sucedem, mas ao menos o coração das personagens principais tem de ser leal, tem de ser constante. Aqui dei por mim, muito cedo, a perguntar-me o que é que o famoso Lobo Negro via nesta Jenny: eram os seios, os maravilhosos olhos azuis, o ultrasuave cabelo ruivo, o sorriso e os dentes brancos, e a coragem. Sempre a coragem e o desafio, louvados ao ponto do rolar a vista. E o retrato incongruente da noviça de dezassete anos virgem e pouco vivida, enclausurada, que brincava com os rapazes e não teme o guerreiro inglês que todos temem.E Royce? Royce tudo faz por ela, em tudo a poupa, sorri muito de repente e tem atitudes românticas. Tudo engole, o que, para mim, é difícil de entender e desmancha a consistência da personagem.
Não me conseguiram vender este livro. Ele é um mártir às mãos da criança mimada e bipolar que McNaught aqui descreve. O perfil da jovem ingénua mas fogosa, corajosa mas insegura, determinada mas submissa, orgulhosa e que humilha, a de coração bondoso que perdoa todas as provações a que a sujeitam, não funciona para mim. Salva-se a tia Elinor e o gigante Arik; emparelhados puseram-me a rir.
Lembrou-me os livros da Sveva Casatti Modignani, que devorei com os meus 14 aninhos, e que cedo abandonei porque me apercebi de que havia um padrão nas personagens femininas: eram lindas, maravilhosas, ricas mas vindas de famílias operárias, toda a gente lhes admirava a fibra, a garra, o ardor com que se batiam pelo que queriam. Todos as admiravam e lhes teciam os maiores elogios. E elas ali... sem tomarem uma decisão, sem fazerem nada que não deslumbrarem um industrial da moda milanês. Era muita conversa para pouca acção. As atitudes das suas Giulias nunca estavam à altura da admiração que lhes projectava e fartei-me.

Uma nota para a tradução portuguesa, que só melhora depois da página 200. Ler "positivamente carregado de galhos", ou "terna ingénua", "doce coração", "esbelto pescoço", etc., foi embaraçoso. Também achei que a culpa é em parte do manuscrito original, porque enjoei o número de vezes em que a escritora repetiu, não fôssemos nós esquecer, que o homem era enorme e tinha ombros muito largos, e que era bronzeado e tinha dentes muito brancos e olhos cinzentos. E ela? Os olhos dela lembram veludo molhado (não importa a cor, desde que molhado), ou safiras líquidas (?), e também tem os dentes muito brancos, a pele leitosa, os seios e os lábios generosos, a cintura muito fina, os cabelos acobreados.Foi tudo repetido ao ponto do enjoo. Mas ai, como era fácil amar no séc. XV!

Sinopse: Chamam-lhe o Lobo Negro. Nunca perde uma batalha. Temido por todos, Royce Westmoreland, duque de Claymore, é um guerreiro inglês intrépido. Tão intrépido que comete a loucura de manter sequestrada a filha do seu maior rival, o chefe do poderoso clã escocês Merrick.

Jenny Merrick pode ter sido raptada do colégio de freiras que frequentava, mas não vai ficar de braços cruzados. A bela e fogosa jovem tenciona lutar com unhas e dentes e destruir este inglês grosseiro que se julga dono de tudo - e o facto é que consegue enfurecê-lo melhor do que ninguém.
Quando, por decreto real, são obrigados a casar, espera-se o pior. A feroz batalha de vontades, porém, não tarda a dar lugar a uma paixão escaldante, mas muito breve… Agora, após uma devastadora traição e uma série de mal-entendidos, Jenny vai ter de decidir a quem deve a sua lealdade…
Um clássico romântico. Uma das obras mais aclamadas da bestseller Judith McNaught.

Classificação: 2,7***/**

quinta-feira, 11 de maio de 2017

#181 QUINN, Julia, Um Pedacinho de Céu

Sinopse: Quem conhece Honoria Smythe-Smith sabe que, para lá das suas inúmeras qualidades, a jovem tem algumas... enfim... particularidades, nomeadamente:
1. É uma entusiástica (e péssima!) violinista
2. Fica fora de si sempre que alguém diz “Bicho”
3. NÃO está apaixonada (não está!) pelo melhor amigo do irmão
3. Sobrevivem ao pior espetáculo musical do mundo



Já Marcus Holroyd, conde de Chatteris, é o seu oposto. É um rapaz tímido e responsável, mais conhecido por:
1. Ser lamentavelmente dado a entorses do tornozelo
2. Carregar o fardo de ser um dos solteirões mais cobiçados
3. NÃO estar (de todo!) apaixonado pela irmã do melhor amigo 

Juntos...
1.São grandes amigos
2. Comem quantidades escandalosas de bolo de chocolate

Julia Quinn tem para eles planos que incluem...
1. Uma febre mortífera 
2. Momentos (muito!) embaraçosos
3. Um final desesperadamente romântico 


Opinião: Foi um livro ao estilo do Amor e Enganos, da mesma autora. É mais doce e romântico do que erótico. Em termos de sequência de acontecimentos, grande parte do livro é despendido na anunciada “febre mortífera”. Não está mal feito, o leitor importa-se realmente com o herói em agonia. Marcus é um tipo porreiro e Honoria tem uma certa força intrínseca. Gostei sobretudo da interação entre a protagonista e a mãe. Achei que a mãe dela poderia ter sido melhor explorada. As aparições da Lady Danbury acrescentam sempre um toque de humor ao livro. Há química entre os protagonistas, é uma bonita história de um amor que surge de mansinho e arrebata os jovens incautos. Não é um livro que arranque suspiros, mas recorda-nos que o amor pode nascer de ajuda mútua e de afeição quase fraternal. Ao contrário daquelas histórias em que a pessoa que se almeja é alguém que parece desadequado e até nos faz mal. Em “Um Pedacinho de Céu”, duas pessoas descobrem que a outra é perfeita para si.

Classificação: 4****/*

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

#180 SMITH, Deborah, Segredos do Passado

Sinopse: Filha de uma respeitada família de Dunderry, na Geórgia, Claire Maloney era uma menina caprichosa e mimada, mas isso não a impediu de travar amizade com Roan Sullivan, um rapaz feroz, órfão de mãe, que vivia numa caravana com o pai alcoólico. Nunca ninguém conseguiu compreender o laço que unia as duas crianças rebeldes. Mas Roan e Claire pertenciam um ao outro¿ até à violenta tarde em que o terror tomou conta das suas vidas e Roan desapareceu.
Durante vinte anos, Claire procurou o rosto do seu amor de infância por entre a multidão. Durante vinte anos, esperou ansiosamente uma carta e sobressaltou-se a cada toque do telefone. No entanto, quando Roan surge novamente na sua vida, a alegria de Claire não é completa, pois ao contrário do que se afirma o tempo não apaga todas as feridas.
Algumas permanecem ocultas, prestes a reabrir-se ao mais pequeno incidente. Que segredos do passado envenenam o presente e minam o futuro?

Opinião: Sou super fã da Deborah Smith, pelo que este é o quarto livro que leio da autora. Comecei a lê-la numa idade bem tenra, em que “A Doçura da Chuva” me surpreendeu pela profundidade e complexidade das personagens. Depois avancei para “O Café do Amor”, em que uma mulher muito bonita e muito ferida regressava a casa para se reconciliar com a vida. De seguida, e de longe o meu favorito, li “Milagre”, onde a autora criou um amor devastador entre o casal protagonista, das vinhas da Califórnia para uma mansão em França.
E, por fim, li “Segredos do Passado”. Se não tivesse lido os outros, talvez não me tivesse aborrecido tanto com este livro. No topo da pilha, torna-se só “mais do mesmo”, apesar de ter sido escrito antes de alguns deles.
A primeira parte do livro valeu-lhe cinco estrelas. O tecido do passado está imaculado: os traumas a adensarem-se, o desejo de redenção, o jogo de sentimentos entre o orgulho e a vergonha, a necessidade e a resistência, foram-me preciosos. A relação entre a Claire e o Roan nasce numa pequena localidade da Georgia, quase totalmente povoada de imigrantes irlandeses. O modo como a família da personagem principal transpôs as tradições do Éire para este estado americano é muito agradável de ler, através de baptismos de montanhas, festividades e cantorias. A Claire é a menina da vila, filha da família mais influente da região – os que a povoaram e encheram de serviços. O Roan é o filho de um antigo veterano do Vietname, um homem violento e torturado que só sabe azedar-lhe a existência. O modo como duas crianças tão improváveis se unem contra o mundo é enternecedor. O meu coração estive sempre numa montanha russa nessa primeira parte do livro, oscilando entre o horror perante a crueldade e o deleite quando por fim é demonstrado algum carinho para com a criança indigente da cidade.
Na minha opinião, a escritora não soube resumir nem trazer um toque de especial à segunda parte do livro. Não era fácil, uma vez que a primeira foi tão soberba. Ainda assim, a segunda parte é como que um eco da primeira. Não há momentos muito marcantes, não há a picardia das avós da Claire, não há o oscilar de emoções da primeira. Há um reencontro e depois há muita reminiscência. Recordam-se do que passou, do que os afastou, do que gostariam de ter feito no passado. E há uns quantos segredos, mas pulsam mais ou menos à superfície, e depois de os conhecermos andamos várias dezenas de páginas a acompanhar as personagens torturadas, à espera de vê-los revelados a quem de direito.
Achei que o livro peca por cento e cinquenta páginas. Bastavam cerca de trezentas páginas para se cortarem todas as repetições, todas as personagens que nada vêm acrescentar, todas as historietas paralelas que nos afastam do foco principal e nos vão cansando. Demorei imenso tempo a ler o livro – ainda que me importasse de modo genuíno com a Claire e o Roan -, porque quando esperava algo simples vinha mais uma recordação de algo que havia lido há cem páginas atrás. Foi doce e desolador, no início, e depois doce e chato, no fim. No entanto, voltarei sempre a ler Deborah Smith, quem sabe pulando as partes que me cheirarem a palha.


Classificação: 3***/**

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

#23 As Cinquenta Sombras Mais Negras

Título oficial: Fifty Shades Darker @ 2017
Realizador: James Foley
Actores principais: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Kim Basigner

Classificação IMDb: 4,9
 Minha classificação: 2

No Dia dos Namorados, decidi cultivar o meu lado masoquista e, numa de desportiva, fui com uma amiga ao cinema ver “As Cinquenta Sombras mais Negras”. O primeiro tinha oferecido bastante material para risadas, e a minha única expectativa quanto ao filme é que pudesse rir-me do ridículo. Começo logo a rir-me pela tradução portuguesa da coisa, que lhe roupa o sentido, se é que tem algum...
De salientar que nunca tinha lido os livros (li apenas 30 páginas do primeiro, por ser tão mau que o meu cérebro se recusou a prosseguir). Já a ver “Crepúsculo” – outra vez o meu lado masoquista –, o meu cérebro vai ameaçando desligar-se, tipo corte eléctrico. Sofre assim uns apagões e tal, mas ao menos conseguia ir lendo as falas sem encontrar defeitos em todas as palavras. Mas nunca me tinha acontecido, durante uma sessão de cinema, sentir-me a ponto de explodir por não poder assinalar todas as absurdidades, e por as minhas pernas terem quase vida própria e quererem sair dali. Felizmente fui com a melhor das companhias, e apesar de sermos as duas mais odiadas da sala - devido às risadas, aos suspiros, aos "oh my God", "ridiculous" e etc., pude respirar a meio da película e despejar na língua inglesa o mal que aquilo me estava a fazer à saúde. Depois mentalizei-me que era só mais uma horinha, e que se estivesse com cólica renal seria pior, e lá assisti à segunda parte também.

Que fenómeno é este que encheu, ontem às 21:40, a sala 2 de cinema do Almada Fórum? Fileiras inteiras de mulheres de todas as idades e casais jovens pejavam o cinema de uma ponta a outra, até a Primark estava vazia ontem, porque 70% do público-alvo estava de bilhete em punho dois andares acima. Seis anos depois de sair o primeiro livro, continuo sem resposta.

Dakota Johnson continua embaraçosamente má no seu papel. Eu entendo, não é fácil ler aquelas saídas “Sim, aceito jantar contigo, mas só porque estou com fome”, ou gaguejar a cada três linhas, ou gemer a cada duas, ou soltar gritinhos de surpresa a cada vez que muda de direcção ao caminhar. 

Jamie Dornan está bem melhor neste filme, parece que conseguiu ultrapassar o pouco à-vontade do primeiro (arrumando falas como “eu não faço amor, eu fodo à bruta”), mas ainda assim teve de passar por dois momentos em que teriam de me pagar muito bem como actriz: o primeiro ao fingir que está a ter pesadelos, a rebolar-se nos lençóis e a gritar “não”, de modo a que a sua cara-metade venha consolá-lo a meio da noite. Só expliquei em que consiste a cena porque nunca viram isso em lado nenhum. O segundo é quando é obrigado a debitar estas palavras: “tu ensinaste-me a foder, ela ensinou-me a amar”. De salientar que também está bem melhor fisicamente, é da barba. Está mais confortável no personagem e acaba por ser a única coisa menos má do filme, basta imaginarem aquele perfil a dizer-vos ao ouvido “tira as cuecas”, e acabou-se. Está comprado, vamos todas ver o filme. Foi mais ou menos isso que aconteceu. Só que não… até isso se dilui no dilúvio de estupidez. Quando o filme começava a aleijar-me demasiado, punha a vista nele e ligava o piloto automático, e lá aguentava até à próxima panorâmica de Seattle.
É do livro, entende-se à terceira linha. É a escritora que não tem talento, pertinência, tacto, substância, profundidade. Acredito plenamente nela quando diz que ia escrevendo o livro no seu Blackberry, porque a preguiça está lá e qualquer pessoa sabe como se tem de abreviar a lista de compras quando usamos o bloco de notas do telemóvel. Podia ter podido a coisa depois, mas parece que não se deu ao trabalho.

A ideia do ciúme e da posse levados ao extremo é perigosa. A ideia de que uma mulher possa virar as costas a compromissos de trabalho porque o namorado tem ciúmes do seu chefe, pior ainda. E que a escritora acabe por mostrar que o namorado tinha motivos (quando nenhum tinha sido apresentado) para desconfiar do chefe *porque o chefe acaba por se atirar à rapariga* é a gota de água. O facto de este sétimo sentido do Grey acerca de quem quer comer a sua namorada desinteressante, se provar assertivo é um livre passe para que os homens deem ordens às mulheres sob o pretexto do “vais ver, acredita em mim”. Não sendo linear, porque conheço inúmeras mulheres inteligentes, independentes e capazes, mas não são elas as que metem um dia de folga para ir ver este filme. E essas não se sabem proteger, e os homens ao lado delas, ao ouvido dos quais elas explicavam que ele tem um trauma de infância (que ninguém que não tenha lido o livro entende – como eu), começam a achar que como as mães lhes bateram com a concha da sopa, agora podem usar-se de violência para com as namoradas, porque elas estavam ali a rir-se, a torcer as pernas e a soltar longos suspiros enquanto o Grey aplica umas palmadas bem energéticas nas nádegas da Miss Steele. Para quem nada entende do franchising, há palmadas e palmadas. E estas não são do tipo palmadita, são mais do tipo que a pessoa não se consegue sentar no dia seguinte.

Supondo que o cinema e as artes não influenciam assim tanto as pessoas, e que a cena da manteiga em "O Último Tango de Paris" não impulsionou a prática de sexo anal, ficamos só com uma história estúpida, vazia e cheia de incongruências. Uma escrita preguiçosa e desinspirada, em que cada conflito é uma preparação para a cena de sexo seguinte, e em que o protagonista é dono do mundo, viaja em colunas de carros para ir a uma festinha em casa da mãe, refugia-se num barco quando acha que a casa está a ser ameaçada e mantém dossiers acerca de todas as gajas com quem privou. Uma história impossível sobre um homem que compra a empresa onde a namorada trabalha, só porque é maluco, e em que lhe enfia dinheiro pela goela abaixo, quer ela queira, quer não. E ela, claro está, não quer.

De tudo o que me irritou nisto das Cinquenta Sombras de $, o pior é a fingida aura de sucesso e de independência da protagonista, sendo que toda a gente a aborda para lhe dizer que o Christian gosta de mandar e que as mulheres lhe sejam submissas, e que ela não é o tipo de mulher que se deixa controlar. Certo. Ela não é o tipo de mulher que se deixa controlar. Quando, nestas quase três horas de dois filmes assistidos, é que a personagem feminina tomou uma iniciativa? Fez uma pergunta pertinente? Tomou uma decisão? Uma mulher que deixa de cumprir compromissos de trabalho por ordem do namorado, que dá dois minutos de luta só para não ser demasiado óbvio que é unidimensional, para depois ceder sempre? Ah, está bem. No fim do primeiro, quando ele a espanca e ela lhe diz que aquilo não é para ela. (Porém, contudo, no seguimento…) De resto, da pouca vida que E.L. James soprou a esta personagem, só lhe resta gaguejar e falar para dentro, por sorte com toda a gente ao redor muito interessada em escutar o que ela tem a dizer. Nunca a expressão “mosquinha morta” se aplicou melhor.

Por último a questão do ardente, escaldante, alucinante, inigualável sexo entre as personagens principais…

O que vejo é uma história escrita por mulheres e para mulheres, em que o homem cumpre as suas fantasias, certo, mas visualmente o que se vê, o que se ouve, o que se respira são as fantasias de uma mulher. Engraçado que a câmara, como é hábito, esteja focada no corpo feminino, mas é um erro de marketing. O olhar deste lado é de mulheres, pelo que surge assim mais uma coisa para corrigirem. Entendo que depois de um século a explorarem o corpo das mulheres no cinema, a favor dos homens, agora tenham de admitir que as mulheres também têm dinheiro no bolso para gastar, por isso basta mudarem a câmara das pernas da Anastasia para os abdominais do Jamie Dornan, como na cena em que ele está a fazer ginástica em casa, para verem o que são as gajas a gritar mais alto ainda
E em que consistem essas fantasias de mulher que o Mr. Grey cumpre com tanto entusiasmo? São as de um homem que tome iniciativa, que se mexa, que paire acima dela, que lhe dê ordens (geralmente relacionadas com a roupa interior dela, não com a sua carreira), que mostre que a deseja, que se aplique em dar-lhe prazer. Pelo menos pelo filme, não parece que a Steele dê grande retorno ao pobre homem. Uma vez mais, a sua falta de iniciativa a impor-se, e também nunca a vemos empenhada em satisfazê-lo a ele. Neste sentido, não me parece que os casais possam beneficiar muito desta promessa de sexo fantabulástico. Se a mulher não se mexer, e se o homem for como muitos, à espera de ser atendidos, não me parece que as brincadeiras vão muito longe, pelo menos sob o signo das Cinquenta Sombras. Lá está: escrito por mulheres e para mulheres, num universo onírico em que o homem não busca nada e dá tudo, ou, mais perfeito ainda, em que o homem descobre nos gemidos (ainda que de dor) da mulher a sua própria satisfação, e não precisa de mais nada.

Há coisas que sinceramente preferia não saber do universo íntimo destes dois personagens monocromáticos. É que isto não é bem pornografia, mas também não é bem a típica história “rapaz conhece rapariga”, e por várias vezes pensei “já estou a saber demais”. Não quero saber em que posições eles fazem sexo – o que é esquisito, porque o assunto interessa-me. Eles é que não. Este casal tão pouco nítido, em nada palpáveis, nem através da prometida quebra de tabus ganha cor. Fica por ali, fora da sala de cinema, sem alma nem contornos reais. Como o meu cérebro, que também se recusou a entrar na sala e que só me voltou a falar hoje de manhã.
A cada vez que ele dizia que aquela casa também era dele, e a outra propriedade, e as jóias, e os carros, e as empresas, só me perguntava como tudo isto, esta inverosimilhança flagrante, pode apelar a todas as raparigas que estavam sentadas na sala de cinema, e como os seus homens, quem sabe de ordenado mínimo em carteira, podem sentir-se excitados perante uma história de um tipo novo, bom de cama e podre de rico, que faz o que quer de uma miúda descompensada. 

Para entenderem o quão má a coisa é, deixo uma lista de inconsistências. Só não escrevo mais porque não estou desempregada:
Portanto atenção spoiler alert:
- A rapariga passa a vida metida na casa dele, mas quando vai a casa para buscar algumas coisas, é na escova de dentes que pega – porca!
- Há uma antiga submissa do Grey à solta, apostada em assassinar a sonsinha de serviço, e apesar de ser uma pessoa frágil e desequilibrada, consegue infiltrar-se na garagem do Grey, cuja casa é tipo uma fortaleza, mas nunca explicam como;
- Quanto à mesma rapariga, o Grey diz que tem “o seu pessoal” em cima do acontecimento para a encontrar, mas a rapariga entra na casa da Anastasia na boa – sem chave, sem arrombar a porta, sem partir uma janela, para vê-los dormir. Como? Fica por nossa conta.
- Ainda quanto à mesma rapariga, que é o grande conflito e suspense do filme, o pessoal do Grey continua em cima dela, mas uma vez mais ela entra tranquilamente na casa da Anastasia, sem que se saiba como posto que não há nada arrombado nem fora do sítio, para a surpreender com outra das suas inspirações. Acham que nos explicariam porquê? Que se lixe a lógica;
- O matulão despenca-se com grande aparato num helicóptero acompanhado de uma assistente (julgo), acham que morre? Não, primeiro é socorrido não se sabe por quem, faz todo o caminho de Portland para Seattle não se sabe como, chega todo desgrenhado a casa sem que uma equipa de socorros tenha notificado a família de que está inteiro, e apresenta-se em casa a dizer que perdeu o telemóvel e por isso não pode ligar, enquanto a televisão notifica a sua provável morte e a família chora reunida;
- Acham que, no seguimento do acidente, o homem foi descansar e quem sabe reflectir sobre a vida? Não, foi fazer aquilo que pagámos para vê-lo fazer;
- Acham que uma pessoa com sangue na fronte vai ao hospital ou fica em repouso? Nope, o todo-poderoso Grey vai à sua festa de aniversário, com direito a foguetes, e a empregada que se despencou com ele está lá, sem uma entorsezita que seja;
- Christian Grey, com tantas empresas e investimentos, que toca piano e pilota helicópteros e barcos, que viveu uma vida de horror e traumas que o marcaram para sempre, tem que idade? Este bilionário (milionário está fora de moda, a E.L. James quis fazer tudo em grande) que no meio de todo o seu sucesso ainda tem tempo para dar uns tautaus às moças com chicotes e fivelas e coleiras na sua sala vermelha, tem que idade, vá? Um palpite? Trinta e cinco, como eu pensava? Não, não, senhores. Tem vinte e sete. Now deal with it;
- Está sempre lua cheia em Seattle, espero que a NASA já esteja em cima do acontecimento.

Para terminar, concordo com o anónimo – estou a varrer a internet à procura dessa crítica, mas não encontro –, que diz que a coisa mais profunda sobre o filme são o cordão de bolas metálicas que a Anastasia Steele usa. Agora deixo-vos a reflectir onde.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

#22 Manchester by the Sea

Título oficial: Manchester by the Sea @ 2016
Realizador: Kenneth Lonergan
Actores principais: Casey Affleck, Michelle Williams, 
Classificação IMDb: 8,5
 Minha classificação: 9

Opinião: "Manchester by the Sea" é o primeiro filme que vi em 2017 e dificilmente verei melhor, pelo menos durante este ano. A sinopse é simples: o irmão de Lee Chandler (Casey Affleck) morre, e ele é chamado como guardião do sobrinho, Patrick (Lucas Hedges). Mas isto é apenas o aflorar da questão. Lee tem um passo mal-resolvido, se bem que o seu semblante, a todos os instantes, denuncia essa mágoa. A grandiosidade do filme assenta nos diálogos, no modo despretensioso como o filme não procura passar nenhuma lição, e na autenticidade dos sentimentos das personagens. (Por exemplo, o filho que acaba de perder o pai mas que se embrenha o mais possível nos melhores anos da sua adolescência para superar isso, ou o amigo que, sem ter qualquer responsabilidade sobre o assunto, retrocede nas suas intenções para ajudar alguém que lhe é importante). Fica consolidada a ideia de que uma história não precisa de ser épica para se entranhar sob a nossa pele - e também não se celebra aqui o culto da perda no momento (do choque, do grito, das lágrimas e do desespero), explora-se sim a estrada para superá-la. São duas horas em que as perdas moldam cada personagem de um modo diferente, nada fantasioso, e em que cada actor dá o melhor de si para mostrar a miríade de emoções que compõem o seu ângulo na trama. Casey Affleck agiganta-se a cada cena, o modo como os impulsos e a inanimidade lhe dançam no olhar é sublime. Julgo que seja o género de enredo que, quando vivido, nos suga um pouquinho da alma. Como escritora, só tenho pena de não ter escrito algo assim. Mas ficou-me na alma. Ando há dias a repensar o filme, as reacções, os picos de fraqueza e de fúria, e a saborear com isso as muitas nuances da natureza dos homens.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

#179 LONDON, Julia, A Vingança de Lorde Eberlin


Sinopse: Inglaterra, 1808 - De novo em Hadley Green após quinze anos, o jovem Tobin Scott, agora Lorde Eberlin, tem apenas um objetivo em mente: vingar a morte do pai, acusado injustamente de roubar as joias fabulosas dos Ashwood. Mas quando se vê do outro lado da rua em relação ao objeto do seu ressentimento, o plano pacientemente preparado toma um rumo surpreendente. Lily Boudine, condessa de Ashwood, já não é a menina que ele recordava, é uma bela mulher que está a fazer o possível por restituir à propriedade da família o seu antigo esplendor. Convencida da inocência de Joseph Scott, ela propõe a Tobin unirem forças para encontrar as famigeradas joias e restaurar a honra do seu pai. Em breve, porém, a paixão entre os dois incendeia-se, e um novo segredo chocante vem lentamente ao de cima...
Em 1793, um homem pagou com a vida por um crime que provavelmente não cometeu. Anos mais tarde, o mistério de Hadley Green continua sem solução. 

Opinião: Este livro deu-me sentimentos controversos. Estava desesperada por descobrir se ainda consigo começar e acabar um livro, pelo que o comprei por impulso no aeroporto. O início foi lento e não sabia o que esperar. Já li tantos livros do género... Mas foi ficando melhor. As personagens ficaram mais profundas e mantiveram o factor humano. Se leram a sinopse entenderam: a Lily testemunhou que viu o pai do Tobin a sair da mansão na noite em que umas jóias preciosas desapareceram. Tinha oito anos na altura e os juízes concluíram que o pai dele fora o autor do roubo. É condenado a morte e o Tobin e a família são destituídos. É mais original do que a maioria dos enredos do género. Há um óbvio dilema moral, mas a autora desenvolveu-o com graciosidade. As personagens não são unidimensionais, vão assimilando novos sentimentos enquanto lutam por lidar com os anteriores. Alguns momentos foram muito ternos. Percebe-se porque é que aquelas duas pessoas imperfeitas e feridas se apaixonam um pelo outro. Também há algum humor no livro, e alguma consideração pela época. Não é que toda a gente vá aceitar o Tobin só porque é bonito e rico. Comprou um título na Dinamarca, o que na maioria dos livros seria suficiente para atirar as solteiras para os pés da personagem principal masculina. Mas neste livro a Julia London respeitou as convenções. Ele é ainda mais desprezado por ter comprado o título. Não é bem recebido sequer pelas personagens simpáticas dos outros livros da série, apenas porque não é assim que as coisas funcionavam.
Há muitas dificuldades a ultrapassar neste livro, pelo que estive sempre na expectativa, sem saber que caminho a autora ia tomar. Felizmente, não escolheu o mais fácil - não houve perdões falsos nem alguém a dizer "se gostas dele esquece a tua posição, o que é a posição social comparada com o amor?", etc. Gostei disso. Para mais, o Tobin não é uma figura toda-poderosa. Não consegue subjugar as suas origens, o que o deixa frustrado porque também é orgulhoso. Além disso, ele tem (view spoiler), o que lhe acrescenta outro factor humano. Portanto ele tem falhas e é de carne e osso. Adorei a Lucy - uma menina que diz tudo o que lhe apraz - e McKenzie, o amigo escocês um tanto inconvencional do Tobin.
Houve algumas falhas, no entanto. Não sei se o problema é da tradução portuguesa - pejada de erros, a propósito (gralhas e verbos misturados, além de que ora se dirigem um ao outro por "tu" ora por "você" - mas estavam sempre a mencionar uma "lama negra" dentro do Tobin, e que estar perto da Lily abria frestas de luz nessa lama. Tudo bem se mencionado uma ou outra vez, mas sempre que estão juntos, a mesma metáfora? Foi parvo e aborrecido, a dada altura. Além disso, não havia grande negrume no carácter dele. Estava magoado e furioso com a injustiça no seu passado, mas conforme os factos lhe são apresentados, tem a mente aberta e vai aceitando. Também nunca é descrito como cruel ou maldoso. Simplesmente quer que alguém pague pelas consequências dos seus actos - e "alguém" é a Lily. Outra coisa é o facto de saltarem muito rápido do desprezo mútuo para o envolvimento físico, como se na época fosse assim tão fácil andar-se aos beijos. Teria apreciado alguma consideração pela época aqui também.
Em geral foi uma leitura agradável. Mal posso esperar por voltar para Portugal e comprar o primeiro livro da série. O terceiro já foi publicado? Vou ler de certeza!


Classificação: 3,75***/**

#178 CACHAPA, Possidónio, Viagem ao Coração dos Pássaros

Sinopse: Viagem ao Coração dos Pássaros remete-nos para um universo único mas que de repete sempre no tempo dos seres humanos. Fala-nos das contradições e dialética do mundo, do amor, da vida, mas também dos seus opostos. É um livro que se lê num sopro, como se fosse um instante, numa viagem que o leitor faz ao coração, o seu próprio, e o dos  protagonistas da história, realista, autêntica e bela. Possidónio Cachapa conduz-nos através da sua escrita profunda, revelando-nos os dons que todos temos e as nossas virtudes mas também as nossas debilidades e fraquezas, numa simplicidade narrativa que nos prende da primeira à última página.

Opinião: 

“— Kika – pediu ele, em lágrimas. – Gostas de mim?
Kika virou-se na cama e respondeu:
– Não.
E, dizendo isto, rodou no leito, onde uma mancha de pena se espalhara e lhe humedecera a face humana. O Escritor voltou a chorar, roído de piedade de si próprio e perguntando a ele mesmo o nome da fraqueza que o diminuía diante da mulher.
Ela, se não fosse ela, ter-lhe-ia passado a mão na face e dito que ele era tão perfeito quanto um homem pode ser. E se isso não lhe bastava, era porque a sua natureza era ruim e ambiciosa. Que todos a tomavam por boa por equívoco. E que amá-la era o mesmo que meter uma jibóia na cama; que nem com a barriga cheia de ratos a impediria de cumprir a sua natureza.”

Não fazia ideia do que esperar desta minha primeira abordagem a Possidónio Cachapa. Decerto não a dimensão que encontrei, nem as incertezas para onde a mesma me atirou. A história resume-se de modo simples: Evangelina casa-se com Filipe numa ilha que creio ser a Madeira, devido à menção às levadas. Têm uma menina que nasce prematuramente, chamada Maria Joaquina (Kika) e Filipe não consegue ficar, apesar de as amar, e sai de cena. Tudo o resto é preenchido por uma extensão da dimensão do espaço e do tempo, em que cada um é o que é, o que foi e o que há-de ser, e que esta é só uma vida de várias, sendo que se toma diversas formas a cada uma. E os mortos andam lado a lado com os vivos, e alguns vivos já transportam um pouco da morte consigo, porque os mal estares vêm da alma e acabam por levar ao enterro dos corpos. É então evidente que não há, realmente, nada de simples neste livro. Gosto quando os autores me atiram para este limbo, em que não sei onde acaba o criador e onde começa o narrador (isto é: alter-ego emprestado ao livro). Mais inquietante ainda: não sei onde acabam as crenças de quem o escreveu e onde começa o propósito com que o escreveu. Viagem ao Coração dos Pássarosé, assim, despretensioso. No entanto demonstra grandeza a cada virar de página. A condição da vida na Terra (mais do que a “humana”) é explorada de modo inventivo e desconcertante. Lê-se sobre um pássaro como se lê sobre gente. Lê-se sobre a carne como se fosse a mera morada do espírito no mundo sólido, e que por isso limita e por vezes até corrompe o dito espírito - é tudo parte de um plano maior. A existência singela por toda a parte, mas as luzes que se voltam para uma menina com um dom; e que fala por dentro da cabeça das pessoas, porque fez a promessa de se manter de boca fechada até o pai voltar. Uma menina que começa por contrariar o seu próprio destino, porque o universo dispõe de nós como lhe apraz, e apesar de não podermos fugir ao que nos foi traçado, por vezes perdemos alguma energia a tentar...
Vale a pena, lê-se bem. Não é fácil, contudo. Tira-nos de onde estamos e traz mais dúvidas do que respostas. Felizmente para mim – seja, ou não, um reflexo das crenças do autor -, acompanhei algumas coisas por serem familiares àquilo que também eu acredito. Coisas como sermos todos parte de um mesmo plano. Ou como termos várias passagens pela terra, umas como homens, outras como flores, outras ainda como pássaros. Vou estar atenta às suas obras, de modo a separar os universos “autor” e “livro”. Parecem-me ambos bastante interessantes. 

Classificação: 4****/*

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

#177 PLATH, Sylvia, A Campânula de Vidro


Sinopse: «The Bell Jar surgiu em Inglaterra, em 1963 com autoria atribuída a Victoria Lucas. O motivo que terá levado Sylvia Plath a recorrer a um pseudónimo, prende-se com a óbvia coincidência existente entre personagens, eventos e lugares ali descritos, e a realidade biográfica da autora.»

Do Posfácio

Opinião: Tentei gostar. A Sylvia Plath foi-me sempre incontornável. Infelizmente, sinto-me mais compreensiva quanto à sua história de vida (e ao seu desfecho) do que quanto a este romance. Começou lento, nada levava a crer que a personagem principal, Esther Greenwood, acabasse por cair em depressão e a sofrer de insónias e consequentes tendências suicidas. Não entendi de onde isso veio. Gostei do modo como o romance percorre a vida desta personagem com recurso a analepses, o que de início faz crer que a vida dela é perfeita, mas mais para o meio começa a entender-se que tinha uma relação distante com a mãe, e quase no fim finalmente menciona o pai, que morreu quando a Esther era pequena. Esther é escritora e tem um pseudónimo – Elaine. Faz questão de que partilhem o mesmo número de letras no nome. Elaine é Esther e Esther é Sylvia, ao que parece têm imenso em comum. São ambas americanas deslocadas, andaram pelos mesmos sítios e algumas personagens da vida de Sylvia reveram-se no leque de pessoas que, em “A Campânula de Vidro”, vieram cruzar-se com a Esther. Houve até quem viesse a público clamar que a Sylvia mentira quanto a alguns aspectos da sua vida, quando era demasiado óbvio que x na ficção era y na vida real. Acontece que este romance, publicado sob o pseudónimo Victoria Lucas, deve ter sido quase de imediato associado à sua verdadeira autora, porque poucos meses depois da sua publicação, a autora protegeu os filhos do frio londrino como pôde, isolou-os e isolou-se na cozinha e meteu a cabeça no forno. Já por várias vezes tentara suicidar-se, mas dessa foi bem sucedida.

Entende-se que o livro quebre com algumas tendências da literatura da época – diz-se que Sylvia Plath é uma percursora do feminismo pelo modo como, nesta mesma obra, se entende que a mulher deve procurar o sucesso, a carreira, a sua realização pessoal. O casamento surge como uma prisão e um modo de satisfazer apenas os homens, que são descritos como um tanto infantis e pouco dignos de confiança. É esse mundo de oportunidades e de frustrações que traz o caos à vida da menina Greenwood (ou quem sabe na da menina Plath). Não sabe o que fazer, o que escolher. Quando dá por si está no consultório de um psiquiatra, e depois de outro. Está ora a fazer terapia de choques, ora a admirar as cicatrizes da lobotomia da sua amiga Valerie, ou a tomar comprimidos que a arrastam para o limiar da inconsciência. 
Há uma altura mais negra do livro em que a personagem pensa constantemente em suicídio. Analisa todas as possibilidades com a sua mente lúcida e lógica: pondera uma lâmina Gilette nos pulsos, uma faca, nadar até fica sem pé, enforcar-se no laço de seda do robe, atirar-se de uma altura considerável, que garanta que morre e que não fica paralisada e impossibilitada de voltar a tentar. Tudo a desgosta: ler, comer, dormir. Quando se desprende de tudo o que era, sente que se fecha uma campânula de vidro em torno da sua existência, e que não pode respirar. 
Gostava que o desespero fosse mais evidente. A depressão é a doença do pensamento, mas aqui não se entende ao certo o que a desgosta. Aborrece-lhe que seja virgem – é para ela um fardo e um obstáculo no caminho da sua emancipação. Mas fora isso não são apresentados motivos que a angustiem. É apenas um pormenor. É até perigoso procurar-se razões para alguém estar deprimido. Apenas está.
Não deixa de ser um excelente retrato do estado depressivo e, creio, dos tratamentos disponíveis nos anos cinquenta na América para as doenças da mente. 
As metáforas, que lhe são elogiadas no estilo literário – sendo o próprio título uma –, são o meu odiozinho particular na escrita. Tenho procurado afastar-me o mais possível delas. Não gosto de ler, em vinte páginas, duas vezes a menção a “olhou para x como o gato perante o leite”. Ou mesmo a famosa citação: “To the person in the bell jar, blank and stopped as a dead baby, the world itself is a bad dream.” Imóvel, parado como um bebé morto... Não lhe encontro sentido. E por aí fora, era sempre x como y, e a repetição exaustiva deu-me vontade de corrigir o texto e de limar a palha. 
Mas quem sou eu? Nada entendo de literatura, só posso expor a minha opinião sincera, por muitas incongruências que possa apresentar.
Tenho de experimentar ler os poemas dela, talvez me venham mais directos à alma.

Classificação: 3***/**