Caros leitores e caros colegas escritores - caro crítico,
É mais
escritor aquele que escreve do que aquele que publica? Não estou certa disso.
Sempre me senti um pouco escritora. Cá na rua cantei bastante em criança, e daí
me chamavam “a cantora”. Depois a minha avó denunciou os meus hábitos nocturnos
de escrita, e vai daí chamavam-me “a escritora”. Fiquei-me por aqui, creio.
Hoje terminei
a revisão de 430 páginas d’O Funeral da Nossa Mãe. É um trabalho que não
voltarei a ter na vida respeitante a esta obra e, em respeito à Célia de 2022,
mais do que um suspiro pelo trabalho exaustivo terminado, ergo um copo a este
momento. Se é algo em grande? Nem por isso. Nem tão pouco em casa o
comunicarei, até porque ninguém compreenderia e ninguém daria valor. É simples;
escrever é-me tão natural que há pouco de extraordinário nisso. É mais comum
que eu escreva do que veja novelas, ou que escreva do que vá à praia. É, até,
um hábito aborrecido e por vezes inconveniente, porque se mete no caminho
quando os outros reclamam a minha atenção ou, somente, a minha presença na
Terra.
Em relação a
esta revisão, confesso que não tive metade do ânimo que dispensei ao
“Demência”. Não porque ame menos este meu fruto – e quem os tem sabe que, por
mais orgulho que se tenha neste ou naquele, um rebento é um rebento e é sempre
amado por isso. Talvez eu até ame este livro mais do que o anterior, porque é
todo um processo de aperfeiçoamento e uma segunda chance de me superar que o
primeiro proporcionou. Mas eu já sabia no que me estava a meter. São horas e
horas a tentar focar a vista em letrinhas pequeninas que escrevemos há meses e
que, de tão bem as conhecermos, se misturam e soam todas à nossa mesma voz. Se
forem como eu, isto é, loucamente embevecidos pelo que de nós sai em parto
natural, perdemo-nos até no prazer que a escrita nos proporciona, e que se
danem as gralhas, gafes e erros de gramática, que eu de gramática também nada
sei.
Falaram-me em
estruturas de romance; lamento, não sei o que isso é. Não estudei jamais
Literatura, não tenciono faze-lo. Quero que, o que quer que desta
ideia saia, pertença primeiro a mim e, só depois, ao mundo. E não ao mundo – às
ciências humanísticas e literárias – antes de a mim. Espero que,
com isto que crio, consiga tocar as profundezas da compreensão e da comoção
(quem sabe) de quem me lê. Tal como o “Demência”, este livro é uma reflexão
sobre culpas e consequências. Não sei fazer livros muito felizes – mas não nego
algum humor, alguma ironia, a quem se atrever a ler-me.
Poderá até
vir a encontrar neste livro amores maiores; daqueles que murcham quem deles padece,
e amores menores – aqueles que vivem do benefício do momento, da circunstância.
Sim, neste Funeral há mais amor do que no “Demência” e há mais
reflexões em torno desse amor do que no “Demência”.
Também hoje sucedeu outra situação curiosa. Descobri que uma opinião que dei a respeito de uma crítica – na minha opinião despropositadamente maldosa – é ainda recordada meses depois. E só nós, escritores, sabemos o peso que as palavras têm quando repercutidas no tempo. Não sei se me envaideça por ter causado tal eco, não sei se estremeça de decepção pela pobreza de espírito das pessoas. As pessoas que, dando saltos como os de Descartes, esquecem que há vida para além de tudo isto e dedicam tempo ao que as aborrece. A mim nada me aborrece, pelo que qualquer reflexão é, infrutuosamente, uma tentativa de trazer paz também aos outros. É a minha veia budista que fala a respeito das coisas de importância maior. E assim me explico, numa tentativa vã de fazer-me compreender; não em meu benefício, que da fadiga de me tentar fazer compreender não o obtenho, mas em benefício de quem se sente lesado, ofendido, conspurcado pela minha vilania.
Pus-me a
reflectir se não teria sido exagerada a minha defesa da obra em questão - não
tanto da obra, sobre a qual apenas posso expressar a minha opinião, e essa vale
o mesmo que a de todos numa democracia -, mas do trabalho da autora, e desta
feita concluo que fui até suave demais. Isto porque há escritores de grande
nome, grande fama, e pouco talento. Sim, há-os aos pontapés, há-os cada vez
mais, a receberem honras e a poderem passar aquilo que quiserem – mensagens de
paz ou de ódio, lições de amor ou de guerra – (que é o que de facto lhes
invejo) aos seus leitores, e a optarem por criar algo que renda, sem puxar
muito pela cabeça. O desperdício de ser ouvido sem que de algo importante se
queira falar! A deitarem para fora alimento de fogueira atrás de alimento de
fogueira. E aí andam, louvados pelo leitor fácil, pelo leitor de ouvido e de
cara, que ouviu falar dele aqui, o viu ali.
Alimentados ainda pelas editoras, que da literatura não exigem mais do que o
lucro garantido. E isto entristece-me. Entristece-me sempre que os pódios sejam
roubados a quem, talvez, os merecesse, em prol de quem fez mais vista. Isto
porque – e possivelmente excluindo-me disso, que a qualidade dum escritor é o
leitor que avalia e não o próprio criador – certamente que os há (escritores)
melhores do que estes que nos atiram para os tops de vendas.
Certamente que os tem de haver – se não, invista-se na educação, pois que não
haverá ninguém com nada pertinente a dizer? Não haverá ninguém a saber dizê-lo?
E depois
havemos nós. E por nós entendamos eu, Andreia, outros tantos. Nós que lutamos
afincadamente por trazer a nossa obra aos leitores e, enquanto houver um leitor
que retire prazer do nosso trabalho, continuaremos a escrever. Eu sim, pelo
menos - e com isto saliento que não falo em meu nome e da Andreia ( que dela, a
esta hora, nada sei. Jantará, talvez?). Nós que mergulhámos nisto de cabeça com
a força de quem dá os primeiros passos numa indústria destas, que investimos
tanto – de nós, do que é nosso – não para termos a cara nas
revistas de Sábado, nas crónicas dos magazines lidos pelos portugueses, mas
para nos termos na vossa mão, mão de quem nos lê…
E então há
pessoas que, estando estiraçadas confortavelmente a ler, acham por bem usar de
deboche para nos esmiuçar. Chico Buarque diz "devia ser proibido debochar
de quem se aventura em língua estrangeira". Eu digo, com o mesmo tom
corriqueiro: devia ser proibido debochar de quem trabalha e se empenha,
e "deboche" é, aqui, a palavra de ordem. Não se critica o criticar,
não se opina sobre o opinar, critica-se e opina-se sobre o
"debochar". E eu aceito – ninguém respeita liberdades de
expressão como eu, visto que rasgaria a pele a quem tentasse roubar-me a minha,
e se me mandassem fechar a boca, estando eu em silêncio, o certo seria morrer
pelo grito – que não se aprecie uma obra. Ah pois, eu não aprecio muitas
obras. Posso até ser menos diplomática com autores que, da minha opinião, fazem
papel higiénico, continuando a receber os respectivos cheques chorudos (se é
que alguém recebe bem por escrever neste país) e continuando a parir obras que
um terço do país – do país que lê -, certamente, sorverá. Mas
seria incapaz de, tendo experimentado o alívio que é terminar um trabalho tão
moroso, deitar abaixo um autor que tenha subido, a pezinhos e lã e a sua conta
e risco, até ao pequeno patamar que agora ocupamos. Dar-lhe-ia água fresca e um
pano para secar a testa. "Não gostei do teu livro, mas não consigo debochar de
quem subiu até aqui para mo passar". Falo de nós, mal
conhecidos, primeiros passos na indústria e sema cara no jornal e o livro na homepage da
Fnac Online.
E é a esses,
que se divertem a destruir com os pés os castelos de areia dos sonhadores, dos
lutadores, dos corajosos… - requer coragem expormo-nos a este nível,
sendo o livro um espelho fiel do autor; da sua inteligência ou falta dela, da
sua perspicácia, da sua concepção do mundo e dos outros, do seu nível de
observação ou de distracção para com tudo o resto, da sua vaidade até, por
vezes - que me dirijo. Não é preciso alguém, nos bastidores, a
esfregar as mãos e a citar partes íntimas da nossa história e a compará-la a
jogos de Lego. Não é preciso alguém que se gabe e se orgulhe de ser
“honesto”, porque a honestidade é um estado absoluto de opinião, diverge de
pessoa para pessoa, mas poderia ao menos ter em conta estas considerações que
lhe faço? Aliás, que lhe fiz e que pareceram tão desaforadas?
Tenho sido
frequentemente abordada por muito boa gente – muito inteligente e capaz, que
inclusive me apresentam textos com evidentes rasgos de brilhantismo – e que me
dizem que não conseguem dar continuidade a uma ideia. Que não têm imaginação.
Ou que não sabem sobre o que escrever. E com isto entendi, finalmente, que
escrever não é natural. Que ter-se ideias – ser-se, até, perseguido por ideias
– não é natural, que ser-se capaz de terminar um livro não é natural, embora
seja cada vez mais banal, mas não é natural. Ser-se arquitecto no espaço e
jogar-se apenas com a assimetria e a dissonância das palavras não é natural.
Erguer castelos de letras de alicerces sólidos não é natural... Concluir uma
obra de 300 ou 400 páginas com pés e cabeça ainda é algo digno de
congratulações. Ainda é algo que nem toda a gente consegue.
E é por isso
que não me arrependo de ter defendido uma pessoa que vi investir tanto de si
numa obra que custou a nascer e que, em geral, foi bastante apreciada. A arte
tem esse efeito – afastar-nos da vida, geralmente tão dura, tão impiedosa, tão
pouco importada com o fazer sentido. A arte eleva-nos; perdoem-me, fãs do Fifty
Shades of Grey, se continuar a disparatar a seu respeito. Pensem “a Célia
acha um disparate e uma perda de tempo, mas a Célia sabe que uma pessoa deve
fazer o que for preciso para ser feliz e ela às vezes até lê a TV 7 Dias”. Seja
ler o Fifty Shades, seja gastar o ordenado de meio mês em livros. E
a liberdade é uma coisa doce. Por isso, digam o que quiserem. Eu digo o que
quero e calo o que, por respeito, considero melhor ficar silenciado. E que o
entendimento de cada um sobre respeito, esforço e dedicação seja só do seu
foro, e assim permaneça.
Quanto a mim,
estou em júbilo.
O Funeral da
Nossa Mãe tem 430 páginas, começa com um poema a respeito do indigno que é
desejar-se algo pelo qual não se luta, e termina com um gosto a vida. Um travo
de possibilidades.