terça-feira, 10 de dezembro de 2019

#236 AMY HARMON, O Que Sabe o Vento

Opinião: Mais uma das minhas desilusões literárias. A Irlanda convulsa dos anos 20 prometia um enredo intenso, com a complexidade quase indecifrável que a cultura (música, cinema) tanto tem tentado simplificar. A somar a essa expectativa, há uma desvantagem: eu acompanhei duas temporadas de Outlander, cuja publicação original é de 1991, por isso dei por mim a ter déjà-vus da história da Claire, a enfermeira de guerra do século XX, de caracóis negros, e do Jamie, o guerreiro escocês do século XVIII.
Destaco, como pontos positivos, a viagem do tempo. Aconteceu de modo subtil, com alguma inteligência. Pareceu-me credível (para quem tem a mente minimamente aberta ao surrealismo), que houvesse um portal do tempo no centro de um lago Irlandês, que afinal é a terra da magia e das fadas. Também a pesquisa me parece exaustiva e bem conseguida, embora depois falhe no encaixe no enredo.
O problema principal, em contra-partida, é a superficialidade das personagens e a ligeireza com que encaram situações inimagináveis. À excepção, talvez, do Dr. Thomas Smith, que tem ideais, uma história sólida, várias dimensões.
Várias coisas me causaram estranheza durante a leitura, e me impediram de vivê-la. Em primeiro lugar, estive na Irlanda por três vezes, e da primeira visitei o condado de Leitrim e de Sligo, entre os quais se estende o Lago Lough Gill, tantas vezes mencionado no romance. Também visitei Parke’s Castle, que se situa no lago e que surge mencionado por alto na narrativa. Conheço um pouco da história irlandesa, e gosto de pensar que compreendo a alma do Éire, por muito complexa que seja (e é).
O que dizer da Irlanda de 2019? É vasta, com povoações isoladas, com uma humildade próxima da terra e da lareira, simpática, acolhedora, tradicional. O que sei da Irlanda do século XX? Sofria de carência, de opressão, de miséria generalizada, de convulsões políticas. A Irlanda rural de 1916 e 1921, em que a autora se foca, tem casas de banho modernas, pronto-a-vestir, e ninguém passa fome. Vivem de idealismos, de honra, e falhou no retrato da opressão, do tratamento desumano que o Império Britânico lhes impôs. As informações estão lá, mas não se sentem. Pelo menos achei que não se sentiam. Os acontecimentos são desfiados quase como eventos alinhados numa cronologia, e o impacto direto nas personagens é amenizado pelo eixo central romântico da história.
Para mim tudo falhou logo de início, quando a vida da Anne se apresentou como unidimensional. Nada existia para esta mulher de 30 anos além do avô, o que começa por ser pouco credível. Segue-se a partida abrupta para a Irlanda, uma vez mais sem que se evidenciem laços à sua vida em Nova Iorque, quase como se não tivesse qualquer amarra (à exceção da agente literária). Na Irlanda as coincidências sucedem-se. Tudo muito conveniente.
O pior é a reação à viagem no tempo. Pânico? Intriga? Busca de respostas? Tentativa de regressar imediatamente a casa, como creio que seria humano fazer assim que se recuperasse do tiro? Nah, vai comprar um guarda-roupa novo na loja de pronto-a-vestir (cerca de 30 anos antes da invenção do pronto-a-vestir). Pareceu-me de uma futilidade atroz tendo em conta tudo o que se estava a passar, e páginas desperdiçadas com coisas sem importância.
O amor surge do nada, tipo wow?. Não se entende. Nada mais a acrescentar aqui.
A dada altura, o fio condutor do romance, que é o amor do Thomas e da nossa protagonista, perde-se no meio dos acontecimentos. E os acontecimentos, como mencionei antes, são difíceis de acompanhar. Significa que na última parte me desliguei tanto do casalinho quanto dos eventos políticos, e tudo se precipitou com muita rapidez.
Duas coisas de grande significância acontecem a velocidade de foguetão, o que mais contribuiu para que revirasse os olhos. A naturalidade da reação das personagens a esses revezes é exasperante. Não há consistência, lógica. As acções e decisões acabam por cimentar o caminho (mal pavimentado) para o fim almejado pela autora, tudo muito bam! In your face.
Não gostei, só a Irlanda me impediu de desistir.

Sinopse: Numa Irlanda dividida, uma história de amor épica quebra as barreiras do tempo.
«Só o vento sabe o que verdadeiramente vem primeiro.»
Anne Gallagher cresceu encantada pelas histórias do avô acerca da Irlanda. Destroçada pela morte dele, viaja até à sua casa de infância para espalhar as cinzas do avô no lago Lough Gill. Aí, invadida pelas lembranças do homem que adorava e consumida pela história que nunca conheceu, vê-se levada para uma outra época.
A Irlanda de 1921, à beira de uma guerra civil, é um sítio turbulento e instável… Mas é lá que Anne inesperadamente desperta, desorientada, ferida e ao cuidado do Dr. Thomas Smith, o homem que a resgatou do invulgar acidente que sofreu e que é tutor de um rapazinho que lhe é estranhamente familiar. Confundida por todos como a mãe perdida do rapaz, Anne adota a sua identidade, convencida de que o desaparecimento dessa mulher está ligado ao seu.
Com a tensão a escalar no país, levando Thomas a juntar-se à luta pela independência da Irlanda, Anne vê-se arrastada para o conflito e percebe que vai ter de decidir se estará disposta a desistir da vida que conhecia por um amor que nunca pensou vir a encontrar. Mas será mesmo dela a escolha?
Numa inesquecível história de amor, a viagem impossível de uma mulher através de décadas pode mudar tudo…

Classificação: 2**/5*****

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Planeamento de Leituras 2020


#1 História, Política e Personalidades
O Abismo de Fogo, Mark Molesky
A Direita e as Direitas, Jaime Nogueira Pinto
Maria Antonieta, Stefan Zweig

#2 Sátira, Distopias
A Quinta dos Animais, George Orwell
Farenheit 451, Ray Bradbury

#3 Ficção Científica
A Mão Esquerda das Trevas, Ursula Le Guin

#4 Clássicos Russos
Guerra e Paz, Leo Tolstoi
Os Irmãos Karamazov, Fiódor Dostoievski
A Morte de Ivan Iliitch, Leo Tolstoi

#5 Europa Central/Germânicos
A Marcha de Radetzky, Joseph Roth
A Oeste Nada de Novo, Enrich Maria Remarque
Morrer na Primavera, Ralf Rothmann

#6 Clássicos
Grandes Esperanças, Charles Dickens
Mansfield Park, Jane Austen

#7 Lusófonos
Memória de Elefante, António Lobo Antunes
Húmus, Raul Brandão

#8 Escandinavos
Paraíso e Inferno, Jón Kalman Stefánsson
Os Frutos da Terra, Knut Hamsun

#9 Autores favoritos
A Leste do Paraíso, John Steinbeck
Palmeiras Brancas, William Faulkner
As Paixões de Júlia, W. Somerset Maugham

#10 Grande desafio
A Morte do Comendador I, Haruki Murakami

domingo, 1 de dezembro de 2019

Leituras 2019 - Balanço

Este ano superei-me em termos de leituras. Desde 2015 que não lia tantos livros num ano (33 de momento, mas creio que consiga pelo menos acabar mais 2), e com certeza que não lia livros tão desafiantes.

O meu interesse por clássicos tem vindo a sobrepor-se aos livros contemporâneos, e sobretudo aquilo que chamo "os livros do momento". Best-sellers que surgem na lista do New York Times e que venderam aos milhões, mas que depois leio e meh. Não me inquietam. E eu, como tenho assumido várias vezes, leio para me inquietar.

Em resumo, olhando por sobre cada título a que me dediquei este ano, decidi escolher 5 que me apeteça comentar por algum motivo específico, e atribuir-lhes uma palavra que represente o que tirei da leitura.

#1 - SENTIDO
Em "O Estrangeiro", de Camus, nada faz sentido. Ou melhor, o sentido da narrativa com certeza transparece o caos da época em que foi escrito. Tendo sido publicado em 1942, é com certeza fruto da insegurança dos seus tempos, da guerra a nível global e do valor das vidas, diminuído pelos interesses das nações. Camus criou um homem indiferente, Mersault, que se deixa ir com as ondas. Um alheado da vida ao seu redor, a quem nada afecta, nada chega. Mersault é o homem inalcançável, um observador neutro do certo e do errado, sem vontade ou alento, que passa pela vida sem grande entusiasmo, mas sem se dizer, ao mesmo tempo, deprimido. O livro levou a que me questionasse se não será a nossa capacidade de reflectirmos, de nos iludirmos, de querermos, sonharmos, aquilo que nos torna humanos, espirituais. Ainda assim, não foi um livro que me tenha ficado. Não me apaixonei, e até já o vendi.




#2 CRU

Da primeira vez que tentei lê-lo, fiquei-me pela segunda página. Mas 2019 era o ano para me estrear com o nosso eterno candidato a Nobel. Fiquei surpreendida não pela narrativa do que foi o Ultramar, não pela escrita elaborada (que muito dificulta a leitura), mas pela crueza de tudo. Lobo Antunes leva-nos para um mundo frio e cruel, desprovido de calor humano, de compreensão, de abraços. Em Os Cus de Judas, é-nos apresentado um homem incapaz de esquecer África, ou de tirar a guerra da pele. Lobo Antunes lembrou-me que o Ultramar foi um desperdíciotremendo e embaraçoso para o regime português dos anos 60 e 70, e que também por isso o sofrimento dos envolvidos foi esmagado, obliterado pela ilusão colectiva de que podíamos vencer, ou de que valia a pena lutar. Apenas lamento que algumas frases levantassem voo de modo promissor, belas, pungentes, plenas de sentido, e que depois o autor as prolongasse por mais um, dois, vários raciocínios ou metáforas que despedaçavam a beleza simples da premissa inicial.


#3 MÁGICO
Creio que quando tinha uns 20 anos tentei ler Cem Anos de Solidão, sem sucesso. Não era a hora certa. Desta vez, tornou-se naquele prazer que levamos para toda a parte, que acarinhamos quando estamos distraídos e o temos no colo. Gabriel García Márquez, que recebeu o Nobel em 1982 pelo seu contributo para as letras, tem aqui a obra-prima do realismo mágico. É um Dali em versão romance, profundo, delicado, angustiante, maravilhoso. Daqueles que ficam para sempre, fruto da imaginação mais fértil com que me cruzei até hoje por estes caminhos. E pensar que as suas personagens, apesar de completamente loucas, originais, me são tão familiares!

#4 RÚSSIA
Este ano estive por duas vezes na Rússia. Primeiro em Fumo, de Ivan Turguénev, e depois nas páginas do famoso Crime e Castigo. Parece-me que a escola é à mesma, à qual também pertencia Tolstoi. O romance permitiu-me compreender melhor a natureza dos russos, os seus desafios, as suas dores, a sua melancolia. Os russos são loucos, de uma maneira maravilhosa e trágica, ou eram-no pelos olhos de Dostoievski. Um autêntico ensaio da natureza humana e da cultura de uma Rússia imensa; com rasgos de desespero, de humor negro, de esperança cega, de cobardia e de bravura, com lealdade, amizade, amor e sacrifício em boa medida. Não é um livro fácil, mas teve passagens inesquecíveis, como o banquete funerário do funcionário público, em que Katerina praticamente ofende cada um dos seus convidados com gargalhadas nervosas. Só tenho pena de não conseguir dizer (nem escrever!) o nome da personagem principal. Mas começa por R!


#5 TRANSCENDENTE

Há muito que não passava um Sábado na cama a ler (pelo menos sem me dar sono ao fim de dois parágrafos), mas foi o que aconteceu com O Fio da Navalha. Somerset Maugham é um dos meus escritores favoritos, e cada um dos seus livros que li guardei num cantinho especial da memória. Até ler este volume, julguei que Servidão Humana seria o meu livro favorito de sua autoria para sempre, mas mudei de ideias. Larry, o piloto da I Guerra Mundial em busca pelo sentido da vida - e pela resposta sobre a existência de Deus - que percorre o globo e abandona mesquinhices e materialismos conquistou-me. Esse espírito livre, ansioso por aprender, por conhecer, por descobrir, recordou-me das coisas essenciais à vida. Recordou-me o que é ser, em vez de simplesmente estar. Conduziu-me a dois momentos transcendentes, dois Nirvanas através da simples leitura dos êxtases das personagens. A compreensão da vida, a absorção da beleza da natureza pelos olhos de duas personagens, roubou-me o fôlego, encheu-me de paz. Larry é um aro de luz no centro de uma sociedade cinzenta, fútil, agarrada às tradições e encandeada pelo progresso na América e na Europa do entre guerras. Amei a passagem do tempo pelo seu punho, a evolução das personagens (oh, Elliott!), a subtileza de sentimentos, de acções, que o britânico sempre imprime nas pessoas que lhe saíram do punho... Admiro imenso o intelecto e a sensibilidade do autor, e guardo cada livrinho seu por ler como a um tesouro.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

#235 ORWELL, George, Animal Farm

Sinopse: A farm is taken over by its overworked, mistreated animals. With flaming idealism and stirring slogans, they set out to create a paradise of progress, justice, and equality. Thus the stage is set for one of the most telling satiric fables ever penned –a razor-edged fairy tale for grown-ups that records the evolution from revolution against tyranny to a totalitarianism just as terrible.
When Animal Farm was first published, Stalinist Russia was seen as its target. Today it is devastatingly clear that wherever and whenever freedom is attacked, under whatever banner, the cutting clarity and savage comedy of George Orwell’s masterpiece have a meaning and message still ferociously fresh.

Opinião: Ouvido em audiobook, em Inglês.

Beasts of England, beasts of Ireland,
Beasts of every land and clime,
Hearken to my joyful tidings
Of the golden future time.

Soon or late the day is coming,

Tyrant Man shall be o’erthrown,
And the fruitful fields of England
Shall be trod by beasts alone.

Rings shall vanish from our noses,

And the harness from our back,
Bit and spur shall rust forever,
Cruel whips no more shall crack.


Riches more than mind can picture,
Wheat and barley, oats and hay,
Clover, beans, and mangel-wurzels
Shall be ours upon that day.

(...)

For that day we all must labour,
Though we die before it break;
Cows and horses, geese and turkeys,
All must toil for freedom’s sake.


Publicado em 1946, O Triunfo dos Porcos, na minha opinião um título que lhe cai melhor do que A Quinta dos Animais (tradução literal), é uma alegoria assustadora do que vinha e viria a acontecer na Rússia Soviética durante as décadas seguintes, mas sobretudo durante o governo totalitário de Estaline.

Nesta obra do escritor britânico, também famoso por A Guerra dos Mundos e 1984, temos Mannor Farm como os limites do Estado Soviético, e os animais como os seus operários. O antigo caseiro, ou tratador, o demónio Mr. Jones, é possivelmente o czar assassinado, removido de cena para que os animais da quinta possam livrar-se das ordens, do chicote, dos símbolos da escravidão (as coleiras, os lacinhos e torrões de açúcar das éguas, as cercas, a sela, etc.). Tudo começa com uma revolução liderada pelos animais mais inteligentes e mais capazes de conduzir o discurso e, portanto, galvanizar os restantes: os porcos.



Os porcos abrem os olhos de todos os animais para a exploração de que são alvo, e para a brutalidade das condições que enfrentam, e para a injustiça da sua condição de servos dos homens. Alguns animais, como Boxer, um cavalo idealista, abraçam a essência desse espírito, vêem-lhe Verdade e sentido, e adoptam um mote "I will work harder", para que tudo seja melhor para todos, agora que os benefícios que a quinta tem para oferecer serão compartilhados por todos. Todos os animais são iguais é um dos sete mandamentos que conduzem o espírito da revolução e que servem de regras para a conduta de todos.


Esse espírito de união que os conduz, em colectivo, a uma viragem de "regime", rapidamente é deturpado a favor de um pequeno círculo de animais - os porcos, que de tanto se verem na liderança da revolução, das ideias, da criação de novas estruturas -, acabam por ser corrompidos pela própria ganância e começam eles próprios a explorá-los. Para isso valem-se de propaganda, de um discurso de medo que os recorda os horrores dos quais estão agora a salvo, da intimidação (usam cães que criaram desde o nascimento como seus guardas pessoais, diria que representam a máquina militar soviética), e em suma reescrevem a História a seu favor, convencendo os restantes de que sempre viram mais, melhor e mais além, e de que tudo o que levam a cabo é para o bem geral. Em breve os porcos estão afastados do trabalho em si, que é levado a cabo com mais ou menos entusiasmo pelos restantes animais, e começam a arrebatar-lhes os melhores frutos da terra. O Homem, inimigo da Quinta dos Animais, e do animalismo (socialismo), torna-se num parceiro conveniente de troca para os porcos, que o usam para obter luxos e extravagâncias (como álcool) que a Quinta não consegue produzir, e os quais cobiçam.

O lema de que todos os animais são iguais, com o passar dos anos, transforma-se em "Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros", e assim, de um modo simples, Orwell desmonta os princípios do socialismo. Para mim, tudo se resume a: não se pode confiar que os lobos e as ovelhas vivam em harmonia e trabalhem para a mesma causa, porque a natureza de uns e doutros leva sempre à exploração dos mais fracos.

Vou lê-lo assim que possa, não vá ter-me escapado algo no audiobook.

Delicioso!

PS: Estou apaixonada pelo Boxer e pela Molly! 

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

#234 LEVIN, Ira, Rosemary's Baby

Mia Farrow (Rosemary), no filme de Roman Polanski

Ouvi o audiobook abaixo:



Opinião: Rosemary's Baby é o primeiro livro do género "terror" que me atrevi a tocar. Ouvi o audiobook completo, disponível no Youtube.

Trata-se do segundo livro publicado por Ira Levin em 1966, e vendeu milhões de cópias, despertando o mercado da época para o potencial lucrativo do género. Creio que a adaptação para o cinema, em 1968 por Roman Polanski, tenha ajudado a imortalizar esta dona de casa dos anos 60, bem como a realidade dos nova iorquinos nessa década.

Segundo o livro nos leva a crer, não é fácil encontrar um lugar decente para viver no centro de Nova Iorque nos anos 60. O casal Woodhouse acabou de alugar um apartamento a custo, mas são surpreendidos pela notícia de que está um outro disponível, com 4 quartos, construção pré-II guerra e vista para Oeste do Central Park. É um sonho tornado realidade para o casal Woodhouse, sendo que Rosemary, de 24 anos, se mostra muito insistente para que agarrem a oportunidade de se mudar para o Bramford. Em conversa com um amigo, Hutch, os dois anunciam a boa nova sobre a mudança, e Hutch tem algumas histórias macabras para lhes contar acerca do local e dos seus antigos rendeiros. Desde mortes misteriosas a cultos satânicos, Hutch aconselha-os a ficarem longe daquele edifício porque, apesar de bem localizado, as coisas más tendem a acontecer com maior frequência nele do que em outros prédios da Big Apple.

O casal Woodhouse decide ignorar o aviso e afastar as crendices do amigo mais velho, pelo que selam o negócio e em breve se vêem no 7º Piso do Bramford. Guy é um ambicioso aspirante a ator e Rosemary é um tanto simplória e ingénua - talvez devido à juventude -, e também me parece muito submissa, de tal modo que permite que todos ao seu redor tomem disposições a seu respeito por ela. Creio que Rosemary é uma vítima da prisão domiciliária que era tantas vezes o casamento no século XX, em que o marido é o sustento da casa e a mulher lhe deve gratidão e obediência. É também vítima absoluta das circunstâncias que a rodeiam - do desejo de ascensão social do marido, das convenções sociais que a impedem de recusar a atenção desmesurada dos vizinhos, etc. A sua liberdade - inclusive ao nível do corte de cabelo - é constantemente castrada pelas exigências e palpites de quem com ela priva.

Julguei que a história tivesse a casa - e os seus ruídos e antigos ocupantes - como fonte dos horrores, mas o Mal nesta obra tem outra origem. Em breve, Rosemary vê-se prisioneira da vontade do marido, dos vizinhos Minnie e Roman, do seu obstetra aconselhado por estes últimos, e dá por si isolada, assustada, desconfortável na sua condição de grávida e enclausurada. É como se a sua gravidez fosse propriedade de todos, e todos tivessem algum interesse macabro a seu respeito.

Creio que o grande feito de Levin, nesta obra, é a de transformar uma cidade tão ampla e cheia de vitalidade, como Nova Iorque, num retiro lúgubre, claustrofóbico, onde Rosemary se sente sufocada de atenções e envolvida numa conspiração que, quando revelada, é demasiado cruel - e horripilante - para que possa acreditar!

Aconselho e estou louca por embarcar em outros enredos do género.

Classificação: 4/5*****

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

#233 STEINBECK, John, O Inverno do Nosso Descontentamento


"Now is the winter of our discontent;Made glorious summer by this sun of York"


Se considerar O Inverno do Nosso Descontentamento avulso, atribuir-lhe-ia um 5. À luz de outros trabalhos de Steinbeck, seria um 4 - falta-lhe a pujança e a pertinência de um As Vinhas da Ira, ou a espiritualidade de um A Um Deus Desconhecido, ou mesmo a nota de desconcerto final que nos deixa um Ratos e homens.
Na minha percepção, este é um romance mais contido, mais reflexivo e até mais pessoal. A sociedade está presente, as suas injustiças, hierarquias, vícios e manias. E, uma vez mais, estamos perante a narrativa de um homem honesto, de bom fundo, perante as vilezas que o rodeiam. Não é uma história de sobrevivência, como outras do autor, mas sim de ganância, de status social, e também de idoneidade. Declínio e ascensão na sociedade é o que molda e o que move Ethan Allen Hawley e a sua pequena família, no seio de uma cidade fictícia que o autor inventou para urdir o seu enredo.
Acompanhamos, ao longo das cerca de 300 páginas, a decadência moral que tem lugar por detrás das fachadas de New Baytown, que mina a política e a autoridade local. E Steinbeck presenteia-nos com uma personagem principal complexa, multidimensional, cujas ações nos surpreendem e nos chocam, sem que nunca deixem de nos importar.
Mais um romance de excelência daquele que se tem consagrado como o meu autor favorito, a par com o grandioso Somerset Maugham.

Sinopse: O Inverno do Nosso Descontentamento, o último romance que Steinbeck publicou, em 1961, é dominado pelos temas sociais, que conferiram à obra do autor uma unânime ressonância internacional.
O núcleo do romance é o dinheiro, a hipocrisia e os falsos valores, a crítica serena mas implacável às engrenagens de uma sociedade que mutila o homem no que ele tem de mais autêntico.
Na ponta final da sua carreira literária, John Steinbeck reencontra o fulgor de As Vinhas da Ira, o seu romance mais famoso, galardoado em 1940 com o Prémio Pulitzer

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

As Mulheres e o Nobel

Prémios Nobel atribuídos a mulheres
Apesar de me propor a um texto sobre as mulheres e o Nobel, na realidade este é um texto sobre as mulheres e o sucesso, em geral

Nos últimos 12 meses, reeditei um romance (Demência @ Coolbooks), com todo o trabalho envolvente (revisão, por exemplo), escrevi dois romances de raiz (coloquei ambos em prémios literários, porque a esperança é a última a morrer, e por isso abstenho-me de revelar os seus títulos de momento), e revi um quarto romance para publicação nos próximos seis meses (Os Pássaros @ Coolbooks). Além de todo este trabalho de escrita, li 32 livros nos últimos 12 meses. Não é um número muito elevado, tendo em conta que há quem leia 30 por mês, mas estou orgulhosa de mim mesma porque entre os títulos lidos encontram-se O Som e a Fúria, À Espera no Centeio, Crime e Castigo, O Adeus às Armas, O Fio da Navalha, etc., etc. Nessa lista constam alguns dos melhores livros da minha vida. Dão trabalho e obrigam a pensar - contam em peso na questão da "disponibilidade emocional". Acrescentam inquietação (mesmo porque leio para me inquietar) a uma vida já de si muito exigente.

Mas não foi só isso que fiz nos últimos 12 meses, e é por isso que, quando oiço dizer (a propósito de o Nobel da Literatura de 2018 ter sido atribuído a uma escritora polaca) que "ultimamente as mulheres andam a escrever quase tão bem como os homens", fico um bocado aborrecida.

De algum modo, em 2019, continuo a ver as mulheres mais ancoradas à casa do que os homens. Não todas, mas muitas. Ainda há mulheres a engomar as camisas dos seus homens. Mas eu não tenho homem, então o que me impede de "escrever melhor", segundo esse tipo de comentário? Ou de ter mais visibilidade do que os homens na literatura? Bom em primeiro lugar, talvez, talento. Eu gosto de considerar que os prémios são atribuídos por mérito e meramente apoiados na qualidade do conteúdo dos manuscritos a concurso, embora entenda que isto soa muito ingénuo. Muitas vezes, a nível internacional, os prémios são política e regionalismo. Muitas vezes importa mais o objetivo da obra a concurso, a sua pertinência, do que a execução da mesma. Tudo bem, estou a fugir ao tema.

Voltando à premissa: porque é que eu escrevo pior do que os homens, ou porque é que as mulheres, em geral, imaginam e executam pior literatura do que os homens, segundo algumas vozes ou até segundo a análise das quotas de vencedores de prémios literários em geral, em que o sexo masculino sai sempre beneficiado? Não pôr de lado o facto de a sociedade, em geral, considerar os homens mais capazes para as áreas do intelecto, isso com certeza terá o seu peso. Mas serão os júris assim tão quadrados, hoje em dia?

Ontem, enquanto varria o chão da cozinha pela segunda vez, perguntava-me o que há de biológico em mim que me obriga a tomar atenção ao que se passa na casa. Passei em revista a quantidade de detalhes insignificantes que fazem da vida num lar uma coisa mais higiénica e confortável. Coisinhas às quais empresto o meu cérebro, o meu tempo, a minha "disponibilidade emocional" desde os 23 anos, e que me roubaram tempo e disposição para sonhar, para imaginar. Se eu não andasse pela casa a varrer rodapés, a lavar a parede da bancada da cozinha, a desengordurar o exaustor, a encher o dispensador de sabão, a lavar a gaveta do amaciador da máquina de lavar roupa, a meter sal na de lavar loiça, a lavar o tacho dos gatos, a desentupir o ralo do duche, a verificar o nível de óleos essenciais dos ambientadores da tomada elétrica, a comprar saquetas anti-traças para os guarda-fatos, a ir ao supermercado perder horas nas compras e depois na fila, a pagar contas e a verificar se os débitos diretos não me andam a roubar, a rearranjar os tachos e suas tampas no armário que anda sempre de pernas para o ar, a cozinhar, a estender roupa, a fazer máquinas de roupa, a arrumar a loiça da máquina nos armários, a varrer, a aspirar, a passar o pano na parede branca onde alguém fez um risco, a escovar os gatos, a arrastar o sofá para endireitar a proteção e as mantas, a passar o pano do pó por cima da televisão e pelas prateleiras dos livros... 

Bom, se não tivesse tudo isto para fazer, quem sabe eu e milhentas mulheres mundo fora não pudessem ser Nobel. Escrever melhor. Sonhar mais, sei lá...

O meu tempo (para mim) por dia começa pelas 21h30 durante a semana e pelas 17h ao fim-de-semana. Depois da casa, das compras, de toda a gente que depende de mim. Cortar as unhas ou fazer uma máscara capilar são um luxo. E é assim desde os meus 23 anos. É por isso que dizerem-me que a casa está muito arrumadinha, quando há visitas, me sabe quase melhor do que ganhar um prémio literário. É o bendito reconhecimento do meu trabalho diário. Do meu trabalho a tempo inteiro que roça a escravatura. E, uff, pelo menos não tenho filhos (pequenos). Se tivesse, podia bem arrumar a caneta pelos próximos 10 anos, pelo menos.

A verdade é que o sucesso da mulher, seja em que área for para lá do emprego das 9h às 18h, está sempre dependente da casa. Do dinheiro que dispõe para se comprar mais tempo, contratando uma empregada doméstica, trazendo refeições já feitas, metendo a roupa na lavandaria, comprando uma casa no centro para diminuir o tempo de deslocação de casa ao trabalho (o meu chega a ser de 3 horas diárias), dos recursos para ter uma ama que apanhe as crianças na escola, se as tiver, e que quem sabe vá adiantando os banhos? Sem filhos, sem "casa", sem emprego (ou com um emprego em jornalismo!) é mais fácil chegar-se lá na escrita. É por isso que os homens tiveram esta vantagem civilizacional durante o tempo em que é conhecida a civilização - sempre livres para imaginar que extraterrestres invadem a sua aldeia natal, livres para filosofarem, para terem visões e para serem visionários. E ainda castravam as mulheres que também viviam do ócio em séculos distantes, embora algumas, apesar dos grilhões, tenham sido capazes de dar cartas nas mais diversas áreas do conhecimento.

Ainda assim, há quem consiga, no meio disto tudo, ter excelência em áreas relacionadas com hobbies, como a escrita. É a essas mulheres (e homens) que dou os parabéns: a essas mulheres com filhos e sem dinheiro para empregadas que conseguem levar também uma vida longe do fogão e das reuniões de pais e do condomínio. Posto tudo isto, imagino que sejam poucas, mas bato-lhes palmas. Parabéns, são as minhas heroínas.


As mulheres não andam a escrever melhor do que os homens. Algumas mulheres conquistaram as mesmas circunstâncias dos homens, o que as liberta para as Artes e o pensamento, o que, com certeza, os põe em pé de igualdade pelo menos na qualidade (não digo na premiação). Também discordo de qualquer tipo de pressão que sugira que se devem atribuir prémios a mulheres só porque sim, porque elas também são capazes, coitadinhas! 

A arte deve falar mais alto. Mesmo que seja um elefante quem a criou.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Ainda o Desacordo Ortográfico

Descobri que não sei escrever e isso, para uma pessoa que tem nas letras um hobby, uma terapia, um possível sonho, é inquietante. Antes do Acordo Ortográfico ser implantado, em 2009, eu sabia que «flôr» já não tinha acento circunflexo, como me ensinaram que tinha quando, entre 1995 e 1999, fiz o ensino primário. Quando publiquei o meu primeiro romance, em 2011, não me passava pela cabeça convertê-lo para uma grafia que me era desconhecida, que em certa medida não me parecia lógica e que foi, acima de tudo, controversa. Já se falava no Acordo, mas envolto em tanta polémica que se tornou fácil contorná-lo, ignorá-lo. 

Segui publicando romances de cariz histórico, e consegui contornar o Acordo. De algum modo, parece que é facultativo escrever-se no Português que está instituído legalmente, e que tanto trabalho e esforço deve ter arrancado a uma boa comitiva de intelectuais linguísticos (perdoem-me por não saber como se escreve intelectuais ao dia de hoje – com C ou sem C, eis a questão). Entretanto aportei no facto de que o Português das edições antigas de livros que leio – como “As Vinhas da Ira”, da coleção do Jornal Público   não é o mesmo que o das edições que adquiro recentemente, pelo que ao ler já não estou a aprender a escrever, pelo contrário, estou inclusive a desaprender algo que me era adquirido. Como se uma capacidade da qual me orgulhava me tivesse sido arrebatada sem mais. 

Mas o que me custou mais foi ter entregado um novo manuscrito à minha editora  o primeiro manuscrito em que julguei ter cedido à pressão do Acordo Ortográfico, em que julguei que simplificava, que me aproximava dos muitos mundos e letras portugueses no globo, em que, de modo ingénuo, considerei que a intuição haveria de me ajudar a pôr a minha língua por escrito na sua correta forma  e descobrir que a língua em que escrevi não existe. Há um limbo entre o que era e o que é. Escrevo na antiga grafia e afinal há uma nova para aquele vocábulo, ou arrisco eliminar um C que afinal ficou, e o manuscrito é-me devolvido rasurado a cada página. A cada parágrafo uma nota do revisor a questionar em que me baseei para escrever aquela palavra assim. Menções a vários acordos, pré e pós, isto e aquilo, e a palavra a fundar-se no lodo da incerteza, da imprecisão gráfica. “A autora tem de optar se quer manter Acordo ou não”. Ah é uma opção? Desde 2009 que cada cidadão luso tem o seu próprio Português? Faz a sua própria escolha dependendo da versão do Google Chrome e do Microsoft Word que tem instalado no computador? E quando isso está em colisão com o Outlook que tem instalado no trabalho?

Estou magoada. Não me interessam os motivos do Acordo, as intenções do Acordo. Interessa-me saber que me interesso pela Língua Portuguesa, que a tenho usado como instrumento de trabalho e de lazer, de ócio, de prazer, e que agora me é estranha. Interessa-me – desconcerta-me – saber que escrevo de um modo, os meus avós de outro, e a minha irmã mais nova de outro. Esse fosso geracional linguístico era escusado, pelo menos entre mim e ela. Não nos entendemos nos recados e nos post-its, e nem sequer temos autoridade para corrigir o Português uns dos outros. Sabemos lá nós.

O Acordo Ortográfico roubou-me a palavra, a língua, a certeza. Agora os meus manuscritos têm de ser corridos no conversor do Acordo Ortográfico. Há outro modo de registar corretamente o que tentei atabalhoadamente dizer no meu texto. O meu texto está todo errado. Tornei-me uma iletrada, o que é trágico quando se ama assim as palavras. 

Os Portugueses já não sabem escrever  o AO atirou-nos para o lodo do analfabetismo, iliteracia entre Licenciados, entre Doutores. Quantos de nós, não vivendo dire(c)tamente das Letras (como Tradutores, Editores, Professores, Linguistas), estão certos de saber escrever em Português? Quantos de nós compraram os livrinhos “Português para totós” para reaprender a sua língua, em efe(c)tivo? 

Bom, talvez alguns Portugueses ainda saibam escrever na sua língua. Eu descobri ontem que já não sei. Obrigada, Cavaco Silva.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

#232 HARRIS, Joanne, A Menina que Roubava Morangos

Sinopse: O coração de Vianne Rocher, a encantadora e inquieta maga do chocolate, parece ter finalmente serenado. A vila de Lansquenet-sous-Tannes, que em tempos a rejeitou, é agora o seu lar. Com a filha mais velha, Anouk, a viver em Paris, Vianne dedica-se por inteiro à chocolaterie e a Rosette, a filha mais nova, a sua menina "especial". A acompanhá-las estão os seus amigos do rio, os extravagantes vizinhos, e o circunspecto padre Reynaud. Mas o vento, quando sopra, traz sempre mudanças… E estas começam com a morte de Narcisse, o temperamental florista. A vila fica em alvoroço pois Narcisse deixa não só uma surpreendente herança a Rosette, mas também uma inesperada confissão.

Nada voltará a ser como dantes. E quando uma loja nova abre onde antes se dispunham as magníficas flores de Narcisse, tudo parece um prenúncio de algo: um confronto, alguma turbulência, ou talvez até… um crime? Conseguirá Vianne impedir que o vento leve tudo o que lhe é mais querido?


Há magia no ar. Há luz e sombra. Vingança e amor. Vinte anos depois da publicação de Chocolate, Joanne Harris regressa à pitoresca vila francesa num romance sobre a força do passado, o poder da memória e a aceitação das marcas que a vida deixa em nós.


Opinião: Joanne Harris foi das primeiras autoras que li e adorei, ainda em tenra idade. Comecei pelo Chocolate, segui por todos os seus outros clássicos. Mais tarde adorei reencontrar essas personagens em Sapatos de Rebuçado e O Aroma das Especiarias. Julgo ter entendido que este volume encerra o mundo de Vianne Rocher, com certeza a chocolateira mais famosa do universo literário.

Senti o a narrativa mais fraca, a entrar um bocadinho por aquele campo do espremer uma fórmula ao máximo. Como se a autora não estivesse tão inspirada como nos restantes volumes, apesar de se ler bem, porque me é território confortável. Vianne Rocher cede o protagonismo à sua filha de 16 anos, Rosette, e a M. le Curé, o Père Reynaud. Sem dúvida que as complexidades deste homem de Deus, atormentado pela própria natureza falível, dão substância à melhor personagem (pelo menos à minha favorita) criada pela autora neste universo de uma aldeia francesa à beira-rio, na qual aportam os barcos dos ciganos, onde há uma comunidade muçulmana (Les Marauds) e onde colidem o mundo tradicional das beatas e dos hipócritas com as minorias que despertam a mesquinhez nessas almas cristãs.

Adoro a temática dos livros da autora, que giram sempre em torno da diferença; do ser-se diferente e do aceitar-se o diferente. Neste volume, Rosette é a personagem diferente. Tem um discurso próprio (Bam!) pontilhado dos seus limites de discurso (terá uma doença que a arrasta para tiques nervosos?). Traz alguma pureza à narrativa. É a sua voz, mas também a de Vianne, a de Reynaud e os relatos na primeira pessoa de Narcisse, o antigo florista que morre e que deixa o seu bosque de carvalhos e morangos silvestres à curiosa Rosette que instiga a ação deste último tomo da série. É que os habitantes de Lansquenet-sous-Tannes não compreendem o porquê de um homem inescrutável ter deixado um bosque de valor precioso a uma criança com limitações, e a justificação que oferece ao executor do seu testamento, bem como a nova ocupante da sua loja de flores desocupada, diante da porta da Chocolaterie vão desenterrar os segredos de outro habitante da pequena povoação.

O interessante é a premissa de que ninguém é o que parece, combinada com a mestria da autora em criar universos mágicos, místicos, plenos de superstição e de maravilha, em que o chocolate, os desenhos, a arte em geral, o fogo nas fogueiras dos ciganos, os amuletos islâmicos, as tradições maias, se tornam formas de praticar feitiçaria e de pôr o vento a nosso favor, ou contra os nossos inimigos.

Ocorre-me uma questão interessante sobre a obra da autora: os homens costumam ser personagens voláteis, pouco confiáveis, que vêm e vão com o vento, egoístas. As mulheres têm-nos como adereços temporários. O amor nunca se sobrepõe à razão e, quando o faz, é para desgraça da mulher (recordo-me de algumas das suas mulheres, desgraçadas por homens ignóbeis). Que significa isto? Gostaria de perguntar à autora se é de algum modo feminista, e se conhece homens de integridade inabalável.

Despeço-me com saudade, e um dia regresso com o Hurakan a Lansquenet-sous-Tannes, para reencontrar todos estes amigos de longa data.

Classificação: 4/5*****

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

#231 LOCKHART, E., Quando éramos mentirosos

SinopseA família Sinclair parece perfeita. Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção. É sob o encantamento da ilha que Cadence, a mais jovem herdeira da fortuna familiar, comete um erro: apaixona-se desesperadamente. Cadence é brilhante, mas secretamente frágil e atormentada. Gat é determinado, mas abertamente impetuoso e inconveniente. A relação de ambos põe em causa as rígidas normas do clã. E isso simplesmente não pode acontecer. Os Sinclair parecem ter tudo. E têm, de facto. Têm segredos. Escondem tragédias. Vivem mentiras. E a maior de todas as mentiras é tão intolerável que não pode ser revelada. Nem mesmo a si.

Opinião: "Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção."

Narrativa simples, despretensiosa, que dispensa demasiadas questões.Os Sinclair são perfeitos, e são-nos apresentados pela voz de Candace, de 17 anos - umas das netas e futura herdeira da sua fortuna. Ela e os dois primos, Johnny e Mirren, juntamente com Gat, são "os Mentirosos". Os Mentirosos são jovens idealistas que convivem com a família completa Sinclair e os seus tesouros, segredos, ambições, todos os verões na sua ilha privada. Os Sinclair têm uma ilha privada onde cada uma das três filhas de Tipper e Harris tem a sua casa, sendo que depois se reúnem todos em Clairmont, a casa dos pais, para discutir quem tem mais direito a herdar o quê, e quem tem a cozinha melhor equipada, e quem deve ficar com as pérolas da mãe depois da sua morte.O que mais gostei no livro foi a prosa acessível, sem trejeitos desnecessários, que me pareceu adequada a uma adolescente com algumas preocupações existenciais, para lá da sua juventude e do seu estatuto de privilegiada. E também do contraste jovem/idealista e adulto/cínico. Li-o em dois fôlegos, fiquei surpreendida com o final e recomendo-o como uma leitura leve com alguma substância.Os Sinclair não são nada do que apregoam ser.


Classificação: 4/5*****