Classificação: 4,5****/*
Muitos anos depois, vai ser o polícia da aldeia, que desde o início duvidara da culpa atribuída ao rapaz, a relembrar o dia do crime e a cadeia de acontecimentos que o precederam e que se lhe seguiram. Uma história que termina com a tomada de consciência de que, na fronteira entre o bem e o mal, todos somos a um tempo culpados e inocentes, justos e injustos, almas cinzentas e atormentadas.
Um romance que, em jeito de thriller, toca o universal para revelar o ser humano em toda a sua fragilidade e grandiosidade.
Inverno de 1917. Numa pequena povoação da Lorena, a poucos quilómetros do campo de batalha onde decorre uma das maiores carnificinas da história da Europa, é descoberto o cadáver de uma menina de dez anos. O assassino é encontrado na figura de um jovem desertor que é imediatamente executado, ainda que uma testemunha diga que viu a criança encontrar-se com o insondável Procurador da terra na noite do crime.
Opinião: De vez em quando
acontece-me desenvolver expectativas elevadas acerca de um romance. Em relação
a este a capa seduziu-me. O título ainda mais. Sempre defendi que não há
pessoas brancas nem pretas, que esbracejamos todos num mar de cinzento com
altos e baixos. E o livro desenvolve essa ideia da melhor forma possível.
Confesso que talvez ainda não o tenha entendido na sua imensidão complexa
(compressa em 185 páginas), e que ainda nutro sentimentos ambíguos para com as
personagens.
Dos poucos livros
franceses que li, há um toque especial… uma atenção especial à comida, ao
vinho, aos ventres, ao calor, aos ventos, aos bigodes e aos vermelhidões de
rosto. Algo que se prende com as necessidades básicas humanas, longe da
realização e que, de um modo ou de outro, constituem os pecados que a todos
compõem.
Eu esperava algo em
grande deste livro. Esperava ficar boquiaberta, despedaçada, surpreendida. A
surpresa foi o modo desconcertante como o autor conduz a narrativa, entrecruza
os factos. A vida é feita de coincidências, de ocasiões para nos revelarmos
pior do que o esperado, e da união destas duas. O acaso, nesta obra premiada
com o Renaudot de 2003 (no cinema
como Les Âmes Grises), não passa
disso. O acaso. A ocasião que faz o ladrão. O nada que influencia. Que induz em
erro. Que cria a oportunidade para algo impulsivo, doentio, entranhado. Que
gera suspeitas erróneas. Que fixa mentes na direcção errada durante uma vida
inteira quando a verdade estava ali e era óbvia.
O livro é bom a tantos
níveis… as personagens francesas são sempre almas próximas. Gostam de comer
bem, beber melhor, agasalhar-se. São preguiçosas, por vezes de mente um pouco
suja, língua um pouco solta, actos dificilmente justificados. São humanas,
multidimensionais, cinzentas. Mil e
uma sombras de cinzento.
A guerra é o pano de
fundo nesta pequena aldeia sem nome, e a morte de uma criança, estrangulada e
deixada na neve à beira de um canal, é a divisa para uma cisma de vida inteira
de um polícia também ele sem nome. A guerra é um inimigo invisível, que vai
chegando em colunas de soldados magoados, que trazem no corpo balas e memórias
de braços outrora funcionais deixados para trás, na frente. Não se fala dos
motivos da guerra. A guerra é a guerra e, como bem diz o Ashley Wilkes no E Tudo o Vento Levou, quando acaba já
ninguém se lembra porque começou.
Há a Joséphine, que
curte peles, caça animais e passeia os coelhos e as raposas para esfolar no seu
carrinho de mão. Há o Destinat, no seu Palácio,
sempre saudoso da sua esposa falecida. A Lyse, uma brisa de ar fresco, a ocupar
o novo lugar de professora. A Clémence, esposa perfeita, dócil e compreensiva. Os
odiosos juízes e inspector, com nomes estranhos começados com M. Ambos
desprezíveis… Mas estarão certos? O odioso, o asqueroso, terá necessariamente de
ser o errado? O radioso representará o bem e o certo?
O autor mexe com a
nossa percepção. Ultraja-a. No fim, recusamo-nos a pôr de lado as nossas
certezas, mesmo perante as evidências. Testa-nos nas ideias mais simples.
Manipula as nossas emoções. Leva-nos a desejar bem ao mau, sem sabermos se é o
mau, e a querer aliviar as dores da voz que nos narra a história, e que julgamos benigna, e que, no fim,
também se revela cinzenta. Se não até
negra.
Continuo a sentir que
algo me escapou. Não, um romance não pode conseguir deixar-nos neste estado de
atordoamento…
And
yet…
«- Confessas?
- Tudo o que quiser.
- E quanto à menina?
- Matei-a. Fui eu. Vi-a. Segui-a. Dei-lhe três facadas nas costas.
- Não, estrangulaste-a.
- Sim, é verdade, estrangulei-a, com estas mãos, o senhor tem razão eu nem tinha faca.
- Na margem do pequeno canal.
- Exactamente.
- E arrastaste-a para a água.
- Sim.
- Porque fizeste isso?
- Porque me apeteceu.
- Violá-la?
- Sim.
- Mas ela não foi violada.
- Não tive tempo. Ouvi barulho. Desatei a correr.»
«- Confessas?
- Tudo o que quiser.
- E quanto à menina?
- Matei-a. Fui eu. Vi-a. Segui-a. Dei-lhe três facadas nas costas.
- Não, estrangulaste-a.
- Sim, é verdade, estrangulei-a, com estas mãos, o senhor tem razão eu nem tinha faca.
- Na margem do pequeno canal.
- Exactamente.
- E arrastaste-a para a água.
- Sim.
- Porque fizeste isso?
- Porque me apeteceu.
- Violá-la?
- Sim.
- Mas ela não foi violada.
- Não tive tempo. Ouvi barulho. Desatei a correr.»
Sem comentários:
Enviar um comentário